Prioridades, avisos, braços de ferro e um milagre. O discurso de Marcelo para Costa ouvir nas entrelinhas

27-10-2019
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Elegeu o governo, como missões primeiras, o controlo do défice a estabilização do sistema bancário, a devolução de rendimentos, a redução do desemprego e o crescimento económico. Fê-lo quanto à generalidade desses objetivos com resultados que claramente superam as expectativas então existentes e muitas das fortíssimas objeções internas e externas na altura formuladas.

O Presidente da República começou a intervenção por elogiar o sucesso da governação de António Costa. Mas fê-lo com algumas nuances. Primeiro circunscreveu o sucesso às áreas que o Governo elegeu como prioritárias e aí admitiu que ultrapassou as previsões negativas e as dificuldades quer das instituições internacionais, quer as expectativas dos críticos internos. Marcelo foi ainda mais longe e disse mesmo que “olhando para o que era a situação de quase emergência nas áreas que mais ocuparam o labor inicial do governo, deve reconhecer-se que era por essa situação que se devia começar”. Ou seja, o Governo fez bem ao ter começado por onde começou. Mas lembrou que nem tudo foi mérito de Costa e sublinhou que houve “uma conjuntura internacional muito favorável” e também – como aliás faz questão de lembrar sempre – houve um “contributo herdado em matéria de défice e do início do crescimento” do governo de Passos Coelho. Aliás, Marcelo faz questão de atribuir também a quem veio antes algumas prioridades que Costa fez suas: a prioridade ambiental, a diversificação das exportações, o turismo, o digital, a WebSummit, as Renováveis. Mais: é preciso reconhecer ainda os méritos de Mario Draghi e das políticas favoráveis que impôs como presidente do BCE. E para o primeiro-ministro socialista, não sobrou nada? Sobrou: “Diversas medidas sociais designadamente para setores mais carenciados” e também a forma como o Governo conseguiu colocar portugueses (António Guterres, António Vitorino e Mário Centeno) no topo de instituições internacionais de relevo. O Presidente fez ainda elogios à resistência da solução governativa, mas misturou-os com críticas ao que correu mal na governação (os incêndios de 2017, Tancos, as insuficiências no Serviço Nacional de Saúde, as greves e protestos “inorgânicos” promovidos por novas associações sindicais, como a dos transportes de matérias pesadas – questões a que o primeiro-ministro fez referências vagas ou ignorou).

A par dos objetivos apontados em 2015 e 2016, outros foram prosseguidos mas deixando por resolver, ou resolver cabalmente questões essenciais para o nosso futuro coletivo.

Marcelo Rebelo de Sousa continua aqui a desconstruir a narrativa do Governo e a sublinhar que há várias matérias que ou não foram bem resolvidas, ou não estão resolvidas de todo. Não desvalorizando o esforço dos últimos quatro anos, o Chefe de Estado é claro ao elencar as questões que precisam até de entendimentos de regime (ou seja, com o apoio do PSD): “o sistema político vigente, o combate à corrupção, a transparência e o escrutínio coletivo, a durabilidade do crescimento e do equilíbrio das contas externas, o significativo avanço na produtividade e na competitividade, e a maior equidade salarial” (os salários foram a única questão à qual António Costa respondeu com medidas concretas). Marcelo puxou ainda de outras áreas onde quer compromissos menos vagos por parte do Governo, nomeadamente “o acesso em quantidade e qualidade a infraestruturas e sistemas sociais”, uma justiça mais rápida, e “atenção redobrada ao estatuto das Forças Armadas e das Forças de Segurança”. Ao que o Observador apurou, em Belém estranhou-se o facto de António Costa não ter feito qualquer referência no seu discurso à reforma administrativa, que era tida como uma prioridade, nem aos problemas por resolver nas carreiras da Função Pública. Duas áreas de que o Presidente falou quando alertou para “a superação de certas discriminações que subsistem entre pessoas, funções e territórios, vertentes importantes de atualização e renovação administrativa”, ou quando referiu “a equidade no tratamento de situações idênticas de servidores da causa pública”.

Senhor primeiro-ministro, sabe vossa excelência que não é fácil e que não será fácil a tarefa que o espera (…). Sabe, do mesmo modo, que as expectativas e as exigências dos portugueses hoje são muito superiores às de 2015. Seja porque decorrem de adiamentos, seja porque nascem de novos patamares de satisfação de necessidades, uma vez ultrapassada a fase mais aguda vivida durante as crises.

Não seria uma mensagem presidencial sem vários avisos à navegação e Marcelo cumpre alertando António Costa para as dificuldades que se avizinham para este Governo. Basicamente o que diz é que a fasquia está mais elevada e que Costa acaba por sofrer com os bons resultados económicos que conheceu durante o mandato anterior. Há, segundo o Presidente, “novos patamares de satisfação de necessidades”. Há também outras exigências que decorrem da falta de investimento público, ou “adiamentos”, como lhes chama Marcelo de forma um pouco mais eufemística. Mas aquilo a que se refere é mesmo à escassez de recursos, sobretudo no Serviço Nacional de Saúde e nos Transportes. Áreas que ficaram para trás na anterior legislatura e que agora, atira o Presidente, é uma tarefa que tem de estar no topo da lista de António Costa. Curiosamente, nas dificuldades que antevê para o novo Governo, Marcelo acabou por se encontrar com António Costa que, no discurso que fez a seguir, também assumia que “a governação é agora ainda mais exigente”. Embora a perspetiva de Costa se ficasse pela parte da fasquia mais elevada com sua própria prestação no primeiro mandato. Marcelo Rebelo de Sousa veio lembrá-lo que — como em tudo — existe a outra metade do copo e está vazia.

Sabe que não há recursos para tantas e tamanhas expectativas e exigências. E que o segredo da legitimidade de exercício deste Governo residirá na escolha, na hierarquização, na concentração e na clareza das respostas que entender ser possível dar.

Governar é fazer escolhas. E Marcelo Rebelo de Sousa puxa por isso e reforça que depois de uma legislatura em que Portugal viu o défice a reduzir, o desemprego a cair e os rendimentos a crescer, há hoje mais expectativas — e de maior exigência — da parte de quem votou nas eleições de 6 de outubro. O Presidente quer, por isso, o Governo com prioridades bem definidas e com compromissos claros e concretos, até porque os recursos não dão para satisfazer todas as necessidades. Mais ainda quando há a possibilidade de um arrefecimento da economia e de uma potencial crise externa no horizonte da próxima legislatura. No fundo, Marcelo recupera o essencial do que tinha pedido no discurso que fez no 25 de abril, quando pediu passos “concretos e rápidos” na demografia, na coesão, na era digital, no futuro do emprego e do trabalho. Mas também na educação, na saúde, na solidariedade social, no clima, nas respostas urgentes aos mais jovens e aos mais velhos.

Sabe que mais do que nunca será necessário agir com humildade no servir, com isenção e perseverança. Com sobreposição no interesse nacional a interesses de pessoas e de grupos, com proximidade aos portugueses que impeça a sensação de afastamento entre os que governam e os que são a razão de ser desse Governo.

Se o Partido Socialista saiu reforçado em votos e deputados das últimas legislativas, Marcelo Rebelo de Sousa pede aqui moderação na tentação habitual dos partidos políticos de ocuparem todos os espaços de poder. O Presidente quer que o Governo – que foi construído com muitos fiéis de Costa e muitos dirigentes do PS – tenha sempre como foco a satisfação do interesse nacional. Marcelo não quer um Executivo refém de pessoas, corporações, instituições, nichos de eleitorado ou, claro, partidos políticos. Por isso, pede “humildade no servir” e, sobretudo, “isenção”. Não quer um primeiro-ministro que dê a sensação de estar ausente ou desligado de acontecimentos cruciais (como aconteceu nos incêndios de 2017, quando Marcelo acabou a fazer um discurso muito duro) e quer que Costa não se esqueça de que os portugueses “são a razão de ser” do Governo. Por isso, deve evitar distâncias, “impedir a sensação de afastamento” e cultivar “a proximidade aos portugueses”. Governar mais à moda de Marcelo-Presidente?

Sabe que preferiu uma fórmula de Governo parcialmente, mas só muito parcialmente nova, para um quadro parlamentar em apreciável parte também novo. E que concebeu uma orgânica e formou uma equipa à sua medida e com o seu traço específico.

Ao contrário dos avisos — que são a prata da casa nestes momentos— já é mais raro ouvir um Presidente da República a apreciar de forma tão direta as escolhas governativas do primeiro-ministro. Mas aqui Marcelo não resiste à sua veia de comentador político e não deixa de dizer o que vê na equipa de António Costa: um Governo à imagem e semelhança do seu líder, diria Marcelo o comentador. Já Marcelo, o Presidente da República, diz que é uma equipa “à sua medida e com o seu traço específico”. É um conjunto de fiéis a António Costa, sobretudo no círculo mais próximo onde tem quatro ministros de Estado que já faziam parte do seu núcleo político, como Mariana Vieira da Silva, Augusto Santos Silva e Mário Centeno. Além de Pedro Siza Vieira que não só já era do seu núcleo como também é um amigo pessoal próximo de longa data e que agora se senta à sua direita no Conselho de Ministros. É uma caixa forte a que se juntam elementos com projeção no PS de António Costa, como Alexandra Leitão, Ana Mendes Godinho ou Pedro Nuno Santos. E nas secretarias de Estado mantém-se esta mesma lógica, com muitas promoções partidárias caso de Jamila Madeira, André Caldas (uma aposta sua ao nível local que depois foi para chefe de gabinete de Centeno), Susana Amador ou António Sales. Já para não falar dos que já lá estavam e que se mantiveram, caso do ministro Eduardo Cabrita ou dos secretários de Estado João Galamba, João Paulo Rebelo, Miguel Cabrita, João Torres, António Mendes ou José Apolinário. Não há forma mais segura de controlar do que manter o círculo o mais próximo possível e delegar as funções principais naqueles que, dentro desse círculo, são mais próximos ainda. Marcelo reconhece a utilidade desta decisão, já que neste tempo “caberá pilotar a viabilização e eficácia de orçamentos e medidas estruturais, desde logo, aliás, em plena preparação e exercício da presidência da União Europeia”. Mas também avisa para a necessidade de “agir com humildade, isenção e preseverança”, sem se deixar condicionar por “interesses de pessoas e de grupos”, colocando em causa a confiança dos portugueses no próprio Governo. Já quanto à tarefa interna de Costa, não é de somenos: um Governo dependente de acordos pontuais. Embora o Presidente sublinhe que a “fórmula é parcialmente, mas apenas muito parcialmente, nova”, analisou imputando a Costa o conhecimento dessa situação: “Sabe que preferiu” esta fórmula — é assim que inicia a frase. De resto, o próprio presidente do partido, Carlos César, disse à saída da cerimónia que a única coisa que muda face ao que existiu nos últimos quatro anos é só mesmo a ausência de um acordo escrito, tudo o resto é igual. Marcelo, na prática, não faz mais do que sublinhar a posição que o PS tem tornado pública sobre a nova distribuição de forças (a frase de Duarte Cordeiro, quando diz que “a geringonça não morreu é, talvez, um sinal máximo desse esforço em passar a mensagem que está tudo igual e a estabilidade vai manter-se). O Presidente analisa e sai de cena, deixando claro que a escolha do modelo foi da responsabilidade exclusiva do próprio PS e que este lhe reconhece crédito. No futuro, não se pode queixar.

Sabe que muitos dos nossos concidadãos pensam que a este Governo se não aplica a situação da parábola das Bodas de Caná, na qual o segundo vinho era melhor do que o primeiro. E não obstante, há que admiti-lo, a história regista exemplos de tal feito.

No episódio bíblico das Bodas de Caná, depois de acabar o vinho numa festa de casamento (uma falha grave de hospitalidade), Jesus transforma, a pedido da sua mãe, a água em vinho e esse segundo vinho servido era de melhor qualidade que o primeiro. É conhecido como o primeiro milagre público de Jesus, embora o próprio tenha hesitado dizendo a Maria: “Ainda não é a minha hora”. Para António Costa também não parece haver grande tolerância de tempo. Está aí a hora em que tem de contrariar as probabilidades e mostrar que o seu segundo Governo (vinho) poderá ser melhor do que o primeiro que serviu aos portugueses. A comparação coloca a fasquia ao nível dos milagres, é certo, mas o que Marcelo está a querer dizer é que não é facto inédito na história política portuguesa. Quando o lembra — “a história regista exemplos de tal feito” — Marcelo terá na cabeça, ao que o Observador apurou, o exemplo do segundo Governo de Francisco Pinto Balsemão (1981-1983) — em que o próprio Marcelo foi ministro dos Assuntos Parlamentares. As circunstâncias do seu primeiro Governo eram, no entanto, bem diferentes das que Costa teve na sua estreia como primeiro-ministro. A democracia ainda estava a estabilizar e tinha acabado de morrer o primeiro-ministro Sá Carneiro. E começava a guerra interna na Aliança Democrática (coligação PSD, CDS, PPM) que acabou por ser motivo para Balsemão se demitir, em 1981, com queixas da “oposição sistemática e permanente” na AD. Tanto que, no segundo Governo, Balsemão chama à sua equipa Freitas do Amaral, como vice, na tentativa de conseguir controlar a oposição que vinha do líder do CDS. Houve estabilidade, é certo, mas durou pouco tempo, e no final de 1982 é precisamente Freitas quem se demite insatisfeito com o resultado da direita nas autárquicas (42% em vez dos 45% que pretendia) — um pretexto para saltar fora. Balsemão não resistiu e também se demitiu justificando-se com a “muita oposição, muita incompreensão e mesmo de algumas traições” de que dizia ter sido alvo. A história toda — da Bíblia e da política nacional — para ver Marcelo a comparar um bom segundo Governo do mesmo primeiro-ministro a um milagre. Há hipóteses para António Costa ainda conseguir servir um vinho melhor do que o primeiro, confia Marcelo. Mas serão assim tão seguras?

O bom senso ensina na vida que nunca se pode dizer nunca a reencontros futuros, em particular se eles são razoavelmente conjeturáveis. O Presidente da República está onde sempre entendeu dever estar: representante uninominal de todos os portugueses, institucionalmente solidário e cooperante com os demais órgãos do poder político. A garantir a estabilidade, salvaguardando em permanência a sua indeclinável missão de fusível de segurança do sistema de governo Constitucional.

Estas são as frases que Marcelo Rebelo de Sousa nunca poderia ter dito se António Costa tivesse conseguido uma maioria absoluta. Mas Costa não conseguiu. E assim, entre o Palácio de Belém e o Palácio de São Bento vai continuar a servir-se chá e simpatia, com promessas de cooperação e solidariedade institucional. Mas vai também continuar o jogo de poder entre os dois Palácios. Costa já está eleito (e com um reforço de votos e de deputados), Marcelo ainda não. E se isso podia constituir uma desvantagem neste braço de ferro amigável, o Presidente faz aqui a demarcação do seu território. Primeiro, apela ao “bom senso” porque “nunca se pode dizer nunca a reencontros futuros”. Ou seja, é muito provável (“razoavelmente conjeturável”) que ambos se voltem a cruzar nas mesmas funções depois das próximas presidenciais. Depois, lembra Marcelo, a Presidência é o único orgão que é “uninominal”, ou seja, que representa todos os portugueses numa só pessoa, e para cuja eleição se vota num nome e não num partido ou movimento. E depois, neste quadro parlamentar, o Presidente lembra que mantém intacto o seu poder de “fusível de segurança do sistema de governo Constitucional”. Quer isto dizer que Belém tem uma palavra decisiva para evitar ou para resolver eventuais crises políticas.

Elegeu o governo, como missões primeiras, o controlo do défice a estabilização do sistema bancário, a devolução de rendimentos, a redução do desemprego e o crescimento económico. Fê-lo quanto à generalidade desses objetivos com resultados que claramente superam as expectativas então existentes e muitas das fortíssimas objeções internas e externas na altura formuladas.

O Presidente da República começou a intervenção por elogiar o sucesso da governação de António Costa. Mas fê-lo com algumas nuances. Primeiro circunscreveu o sucesso às áreas que o Governo elegeu como prioritárias e aí admitiu que ultrapassou as previsões negativas e as dificuldades quer das instituições internacionais, quer as expectativas dos críticos internos. Marcelo foi ainda mais longe e disse mesmo que “olhando para o que era a situação de quase emergência nas áreas que mais ocuparam o labor inicial do governo, deve reconhecer-se que era por essa situação que se devia começar”. Ou seja, o Governo fez bem ao ter começado por onde começou. Mas lembrou que nem tudo foi mérito de Costa e sublinhou que houve “uma conjuntura internacional muito favorável” e também – como aliás faz questão de lembrar sempre – houve um “contributo herdado em matéria de défice e do início do crescimento” do governo de Passos Coelho. Aliás, Marcelo faz questão de atribuir também a quem veio antes algumas prioridades que Costa fez suas: a prioridade ambiental, a diversificação das exportações, o turismo, o digital, a WebSummit, as Renováveis. Mais: é preciso reconhecer ainda os méritos de Mario Draghi e das políticas favoráveis que impôs como presidente do BCE. E para o primeiro-ministro socialista, não sobrou nada? Sobrou: “Diversas medidas sociais designadamente para setores mais carenciados” e também a forma como o Governo conseguiu colocar portugueses (António Guterres, António Vitorino e Mário Centeno) no topo de instituições internacionais de relevo. O Presidente fez ainda elogios à resistência da solução governativa, mas misturou-os com críticas ao que correu mal na governação (os incêndios de 2017, Tancos, as insuficiências no Serviço Nacional de Saúde, as greves e protestos “inorgânicos” promovidos por novas associações sindicais, como a dos transportes de matérias pesadas – questões a que o primeiro-ministro fez referências vagas ou ignorou).

A par dos objetivos apontados em 2015 e 2016, outros foram prosseguidos mas deixando por resolver, ou resolver cabalmente questões essenciais para o nosso futuro coletivo.

Marcelo Rebelo de Sousa continua aqui a desconstruir a narrativa do Governo e a sublinhar que há várias matérias que ou não foram bem resolvidas, ou não estão resolvidas de todo. Não desvalorizando o esforço dos últimos quatro anos, o Chefe de Estado é claro ao elencar as questões que precisam até de entendimentos de regime (ou seja, com o apoio do PSD): “o sistema político vigente, o combate à corrupção, a transparência e o escrutínio coletivo, a durabilidade do crescimento e do equilíbrio das contas externas, o significativo avanço na produtividade e na competitividade, e a maior equidade salarial” (os salários foram a única questão à qual António Costa respondeu com medidas concretas). Marcelo puxou ainda de outras áreas onde quer compromissos menos vagos por parte do Governo, nomeadamente “o acesso em quantidade e qualidade a infraestruturas e sistemas sociais”, uma justiça mais rápida, e “atenção redobrada ao estatuto das Forças Armadas e das Forças de Segurança”. Ao que o Observador apurou, em Belém estranhou-se o facto de António Costa não ter feito qualquer referência no seu discurso à reforma administrativa, que era tida como uma prioridade, nem aos problemas por resolver nas carreiras da Função Pública. Duas áreas de que o Presidente falou quando alertou para “a superação de certas discriminações que subsistem entre pessoas, funções e territórios, vertentes importantes de atualização e renovação administrativa”, ou quando referiu “a equidade no tratamento de situações idênticas de servidores da causa pública”.

Senhor primeiro-ministro, sabe vossa excelência que não é fácil e que não será fácil a tarefa que o espera (…). Sabe, do mesmo modo, que as expectativas e as exigências dos portugueses hoje são muito superiores às de 2015. Seja porque decorrem de adiamentos, seja porque nascem de novos patamares de satisfação de necessidades, uma vez ultrapassada a fase mais aguda vivida durante as crises.

Não seria uma mensagem presidencial sem vários avisos à navegação e Marcelo cumpre alertando António Costa para as dificuldades que se avizinham para este Governo. Basicamente o que diz é que a fasquia está mais elevada e que Costa acaba por sofrer com os bons resultados económicos que conheceu durante o mandato anterior. Há, segundo o Presidente, “novos patamares de satisfação de necessidades”. Há também outras exigências que decorrem da falta de investimento público, ou “adiamentos”, como lhes chama Marcelo de forma um pouco mais eufemística. Mas aquilo a que se refere é mesmo à escassez de recursos, sobretudo no Serviço Nacional de Saúde e nos Transportes. Áreas que ficaram para trás na anterior legislatura e que agora, atira o Presidente, é uma tarefa que tem de estar no topo da lista de António Costa. Curiosamente, nas dificuldades que antevê para o novo Governo, Marcelo acabou por se encontrar com António Costa que, no discurso que fez a seguir, também assumia que “a governação é agora ainda mais exigente”. Embora a perspetiva de Costa se ficasse pela parte da fasquia mais elevada com sua própria prestação no primeiro mandato. Marcelo Rebelo de Sousa veio lembrá-lo que — como em tudo — existe a outra metade do copo e está vazia.

Sabe que não há recursos para tantas e tamanhas expectativas e exigências. E que o segredo da legitimidade de exercício deste Governo residirá na escolha, na hierarquização, na concentração e na clareza das respostas que entender ser possível dar.

Governar é fazer escolhas. E Marcelo Rebelo de Sousa puxa por isso e reforça que depois de uma legislatura em que Portugal viu o défice a reduzir, o desemprego a cair e os rendimentos a crescer, há hoje mais expectativas — e de maior exigência — da parte de quem votou nas eleições de 6 de outubro. O Presidente quer, por isso, o Governo com prioridades bem definidas e com compromissos claros e concretos, até porque os recursos não dão para satisfazer todas as necessidades. Mais ainda quando há a possibilidade de um arrefecimento da economia e de uma potencial crise externa no horizonte da próxima legislatura. No fundo, Marcelo recupera o essencial do que tinha pedido no discurso que fez no 25 de abril, quando pediu passos “concretos e rápidos” na demografia, na coesão, na era digital, no futuro do emprego e do trabalho. Mas também na educação, na saúde, na solidariedade social, no clima, nas respostas urgentes aos mais jovens e aos mais velhos.

Sabe que mais do que nunca será necessário agir com humildade no servir, com isenção e perseverança. Com sobreposição no interesse nacional a interesses de pessoas e de grupos, com proximidade aos portugueses que impeça a sensação de afastamento entre os que governam e os que são a razão de ser desse Governo.

Se o Partido Socialista saiu reforçado em votos e deputados das últimas legislativas, Marcelo Rebelo de Sousa pede aqui moderação na tentação habitual dos partidos políticos de ocuparem todos os espaços de poder. O Presidente quer que o Governo – que foi construído com muitos fiéis de Costa e muitos dirigentes do PS – tenha sempre como foco a satisfação do interesse nacional. Marcelo não quer um Executivo refém de pessoas, corporações, instituições, nichos de eleitorado ou, claro, partidos políticos. Por isso, pede “humildade no servir” e, sobretudo, “isenção”. Não quer um primeiro-ministro que dê a sensação de estar ausente ou desligado de acontecimentos cruciais (como aconteceu nos incêndios de 2017, quando Marcelo acabou a fazer um discurso muito duro) e quer que Costa não se esqueça de que os portugueses “são a razão de ser” do Governo. Por isso, deve evitar distâncias, “impedir a sensação de afastamento” e cultivar “a proximidade aos portugueses”. Governar mais à moda de Marcelo-Presidente?

Sabe que preferiu uma fórmula de Governo parcialmente, mas só muito parcialmente nova, para um quadro parlamentar em apreciável parte também novo. E que concebeu uma orgânica e formou uma equipa à sua medida e com o seu traço específico.

Ao contrário dos avisos — que são a prata da casa nestes momentos— já é mais raro ouvir um Presidente da República a apreciar de forma tão direta as escolhas governativas do primeiro-ministro. Mas aqui Marcelo não resiste à sua veia de comentador político e não deixa de dizer o que vê na equipa de António Costa: um Governo à imagem e semelhança do seu líder, diria Marcelo o comentador. Já Marcelo, o Presidente da República, diz que é uma equipa “à sua medida e com o seu traço específico”. É um conjunto de fiéis a António Costa, sobretudo no círculo mais próximo onde tem quatro ministros de Estado que já faziam parte do seu núcleo político, como Mariana Vieira da Silva, Augusto Santos Silva e Mário Centeno. Além de Pedro Siza Vieira que não só já era do seu núcleo como também é um amigo pessoal próximo de longa data e que agora se senta à sua direita no Conselho de Ministros. É uma caixa forte a que se juntam elementos com projeção no PS de António Costa, como Alexandra Leitão, Ana Mendes Godinho ou Pedro Nuno Santos. E nas secretarias de Estado mantém-se esta mesma lógica, com muitas promoções partidárias caso de Jamila Madeira, André Caldas (uma aposta sua ao nível local que depois foi para chefe de gabinete de Centeno), Susana Amador ou António Sales. Já para não falar dos que já lá estavam e que se mantiveram, caso do ministro Eduardo Cabrita ou dos secretários de Estado João Galamba, João Paulo Rebelo, Miguel Cabrita, João Torres, António Mendes ou José Apolinário. Não há forma mais segura de controlar do que manter o círculo o mais próximo possível e delegar as funções principais naqueles que, dentro desse círculo, são mais próximos ainda. Marcelo reconhece a utilidade desta decisão, já que neste tempo “caberá pilotar a viabilização e eficácia de orçamentos e medidas estruturais, desde logo, aliás, em plena preparação e exercício da presidência da União Europeia”. Mas também avisa para a necessidade de “agir com humildade, isenção e preseverança”, sem se deixar condicionar por “interesses de pessoas e de grupos”, colocando em causa a confiança dos portugueses no próprio Governo. Já quanto à tarefa interna de Costa, não é de somenos: um Governo dependente de acordos pontuais. Embora o Presidente sublinhe que a “fórmula é parcialmente, mas apenas muito parcialmente, nova”, analisou imputando a Costa o conhecimento dessa situação: “Sabe que preferiu” esta fórmula — é assim que inicia a frase. De resto, o próprio presidente do partido, Carlos César, disse à saída da cerimónia que a única coisa que muda face ao que existiu nos últimos quatro anos é só mesmo a ausência de um acordo escrito, tudo o resto é igual. Marcelo, na prática, não faz mais do que sublinhar a posição que o PS tem tornado pública sobre a nova distribuição de forças (a frase de Duarte Cordeiro, quando diz que “a geringonça não morreu é, talvez, um sinal máximo desse esforço em passar a mensagem que está tudo igual e a estabilidade vai manter-se). O Presidente analisa e sai de cena, deixando claro que a escolha do modelo foi da responsabilidade exclusiva do próprio PS e que este lhe reconhece crédito. No futuro, não se pode queixar.

Sabe que muitos dos nossos concidadãos pensam que a este Governo se não aplica a situação da parábola das Bodas de Caná, na qual o segundo vinho era melhor do que o primeiro. E não obstante, há que admiti-lo, a história regista exemplos de tal feito.

No episódio bíblico das Bodas de Caná, depois de acabar o vinho numa festa de casamento (uma falha grave de hospitalidade), Jesus transforma, a pedido da sua mãe, a água em vinho e esse segundo vinho servido era de melhor qualidade que o primeiro. É conhecido como o primeiro milagre público de Jesus, embora o próprio tenha hesitado dizendo a Maria: “Ainda não é a minha hora”. Para António Costa também não parece haver grande tolerância de tempo. Está aí a hora em que tem de contrariar as probabilidades e mostrar que o seu segundo Governo (vinho) poderá ser melhor do que o primeiro que serviu aos portugueses. A comparação coloca a fasquia ao nível dos milagres, é certo, mas o que Marcelo está a querer dizer é que não é facto inédito na história política portuguesa. Quando o lembra — “a história regista exemplos de tal feito” — Marcelo terá na cabeça, ao que o Observador apurou, o exemplo do segundo Governo de Francisco Pinto Balsemão (1981-1983) — em que o próprio Marcelo foi ministro dos Assuntos Parlamentares. As circunstâncias do seu primeiro Governo eram, no entanto, bem diferentes das que Costa teve na sua estreia como primeiro-ministro. A democracia ainda estava a estabilizar e tinha acabado de morrer o primeiro-ministro Sá Carneiro. E começava a guerra interna na Aliança Democrática (coligação PSD, CDS, PPM) que acabou por ser motivo para Balsemão se demitir, em 1981, com queixas da “oposição sistemática e permanente” na AD. Tanto que, no segundo Governo, Balsemão chama à sua equipa Freitas do Amaral, como vice, na tentativa de conseguir controlar a oposição que vinha do líder do CDS. Houve estabilidade, é certo, mas durou pouco tempo, e no final de 1982 é precisamente Freitas quem se demite insatisfeito com o resultado da direita nas autárquicas (42% em vez dos 45% que pretendia) — um pretexto para saltar fora. Balsemão não resistiu e também se demitiu justificando-se com a “muita oposição, muita incompreensão e mesmo de algumas traições” de que dizia ter sido alvo. A história toda — da Bíblia e da política nacional — para ver Marcelo a comparar um bom segundo Governo do mesmo primeiro-ministro a um milagre. Há hipóteses para António Costa ainda conseguir servir um vinho melhor do que o primeiro, confia Marcelo. Mas serão assim tão seguras?

O bom senso ensina na vida que nunca se pode dizer nunca a reencontros futuros, em particular se eles são razoavelmente conjeturáveis. O Presidente da República está onde sempre entendeu dever estar: representante uninominal de todos os portugueses, institucionalmente solidário e cooperante com os demais órgãos do poder político. A garantir a estabilidade, salvaguardando em permanência a sua indeclinável missão de fusível de segurança do sistema de governo Constitucional.

Estas são as frases que Marcelo Rebelo de Sousa nunca poderia ter dito se António Costa tivesse conseguido uma maioria absoluta. Mas Costa não conseguiu. E assim, entre o Palácio de Belém e o Palácio de São Bento vai continuar a servir-se chá e simpatia, com promessas de cooperação e solidariedade institucional. Mas vai também continuar o jogo de poder entre os dois Palácios. Costa já está eleito (e com um reforço de votos e de deputados), Marcelo ainda não. E se isso podia constituir uma desvantagem neste braço de ferro amigável, o Presidente faz aqui a demarcação do seu território. Primeiro, apela ao “bom senso” porque “nunca se pode dizer nunca a reencontros futuros”. Ou seja, é muito provável (“razoavelmente conjeturável”) que ambos se voltem a cruzar nas mesmas funções depois das próximas presidenciais. Depois, lembra Marcelo, a Presidência é o único orgão que é “uninominal”, ou seja, que representa todos os portugueses numa só pessoa, e para cuja eleição se vota num nome e não num partido ou movimento. E depois, neste quadro parlamentar, o Presidente lembra que mantém intacto o seu poder de “fusível de segurança do sistema de governo Constitucional”. Quer isto dizer que Belém tem uma palavra decisiva para evitar ou para resolver eventuais crises políticas.

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