Sefarditas portugueses e interesse nacional

17-09-2020
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1. No projeto de lei que o grupo parlamentar do Partido Socialista apresentou, em 7 de março de 2013, na Assembleia da República, com vista à alteração da lei da nacionalidade, podia ler-se que "faz todo o sentido promover o retorno dos descendentes dos judeus expulsos ou dos que fugiram do terror da Inquisição no seio do seu povo e da sua nação portuguesa". Tratou-se indubitavelmente de um reconectar de Portugal com a diáspora sefardita de sangue e património genético e cultural português, numa lógica de presente e de futuro, “ligando de novo o que fora rompido”, como escreveu Ribeiro e Castro há já cinco anos.

2. O objetivo do legislador tem sido materializado, nos últimos anos, no crescimento da comunidade judaica nacional a todos os títulos e na possibilidade de defesa dos interesses nacionais por parte de novos portugueses que vivem em Nova Iorque, Paris, Istambul, Moscovo, Hong Kong, Jerusalém e tantos outros lugares. Estes factos, que a poucos parecem interessar, representam o mais flagrante desmentido da tese que pretende reduzir a legislação de 2013/2015 ao simbolismo de um “ato de reparação histórica em relação ao passado”. Para atos de mera reparação histórica existem as resoluções e os memoriais, não as leis e os decretos-lei, muito menos aqueles que servem a genuinidade, o prestígio e o interesse de Portugal.

3. Em 2015, a comunidade judaica nacional equiparava-se, em termos de pequenez, às comunidades congéneres de Chipre e de Malta, enquanto hoje pode equiparar-se às de países como a Grécia e a Lituânia. Oxalá as mais altas instâncias políticas do país consintam o crescimento continuado desta população não desejada por todos, sendo certo que a diáspora sefardita que poderá pedir a nacionalidade nas próximas décadas corresponde talvez a 10% da diáspora portuguesa global, o que percentualmente está em linha de conta com a população judaica existente antes do Édito de D. Manuel I.

4. No debate político que tem decorrido, nas últimas semanas, em torno do direito à nacionalidade dos judeus sefarditas, nenhum efeito positivo da lei foi sequer aflorado. Sejamos claros, o conjunto dos argumentos apresentados no debate, encabeçados por um suposto ato de reparação histórica que, como todos os atos de generosidade simbólica, não pode ser eterno, pretendeu apenas criar um estado de espírito favorável a um limite temporal para a lei mais cedo ou mais tarde. Tudo foi circunscrito a números assustadores, má imagem de Portugal, publicidade abusiva, recortes de jornal, impressões da internet e anúncios os mais diversos, relativos a operadores independentes estrangeiros, à mistura com conclusões escandalosas sobre favorecimento de judeus, negócios e passaportes de conveniência. A própria senhora conservadora dos registos centrais, que há poucos meses reconheceu perante o Governo que os judeus sefarditas são os “estrangeiros” que mais manifestam o seu orgulho quando recebem a nacionalidade, foi chamada à Assembleia da República só para falar de estatísticas.

5. Apresentou-se a lei espanhola como um bom exemplo, pelo facto de ter imposto um prazo e uma ligação efetiva actual a Espanha. A verdade, porém, é que dignitários da política daquele país já afirmaram que a devolução de um direito não pode ter prazo e que os judeus sefarditas continuam à espera de uma verdadeira lei de retorno, dado que a assinalada excluía os judeus sefarditas que falavam ladino em detrimento de não-judeus da América latina que falavam castelhano e tinham a sorte de contar com um ancestral judeu há 20 gerações. O facto de ter havido quase duzentos mil pedidos é estranho. Na imprensa internacional, houve quem chamasse à lei "uma nova inquisição espanhola, com uma diferença, pois quando os judeus foram expulsos da Espanha e de Portugal não realizaram marcações e exames em notários”.

6. Para desmerecimento ainda maior do regime encontrado pelo legislador português foi utilizado o argumento da “discriminação dos muçulmanos”, encobrindo-se que os mesmos beneficiam do direito à nacionalidade se provarem que descendem de portugueses. Bom seria que, a partir de agora, a preocupação com os muçulmanos fosse dirigida à devida publicitação desse seu direito tão justo. Apesar de nunca terem existido comunidades muçulmanas de origem portuguesa, o que impossibilita, como no caso dos judeus sefarditas, a identificação das famílias tradicionais de tais comunidades, certamente será possível fazer prova de ancestralidade portuguesa em certos casos particulares.

7. Entretanto, nas palavras de Henrique Monteiro no Expresso, os judeus sefarditas portugueses são portugueses, residam ou não em Portugal. Fazem parte integrante da diáspora portuguesa, por vontade e sabedoria do legislador, que neste delicado processo de reabilitação histórica não se limitou a ouvir os representantes das comunidades judaicas portuguesas para os consultar, mas consagrou a sua colaboração futura nos processos administrativos, porquanto só elas possuíam o conhecimento da realidade, cultura, história, lei e religião judaicas.

Passaram cinco anos. Há 16.750 novos portugueses. Os arquivos das comunidades estão abertos para consultas. Num país que durante décadas assistiu a imensos escândalos e prisões em torno da lei da nacionalidade, ninguém foi capaz de apontar um único caso sequer suspeito de um certificado de sefardismo emitido erradamente. O próprio grupo parlamentar do Partido Socialista, que, diga-se em abono da verdade, demonstrou sentido de Estado ao reavaliar a proposta de residência prévia obrigatória que apresentou em 28 de maio, substituindo-a por uma ligação efetiva mais flexível, já fez saber pelo deputado e jurista qualificado Pedro Delgado Alves que "não está em causa o papel desempenhado pelas comunidades judaicas de Lisboa e do Porto, onde sabemos que os processos são conduzidos de forma extremamente minuciosa e criteriosa.”

8. A comissão de certificação de sefardismo da comunidade judaica do Porto, liderada pelo rabino-chefe da cidade, reconhecido pelo Grão Rabinato de Israel, concentra toda a sua ação na certificação de judeus à luz da halachá (a lei judaica, único critério consensual no mundo judaico sobre quem é judeu) pertencentes a famílias tradicionais das comunidades sefarditas de origem portuguesa que, aliás, o preâmbulo do decreto-lei n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro, situou, com bastante acerto, "em algumas regiões do Mediterrâneo (Gibraltar, Marrocos, Sul de França, Itália, Croácia, Grécia, Turquia, Síria, Líbano, Israel, Jordânia, Egito, Líbia, Tunísia e Argélia), norte da Europa (Londres, Nantes, Paris, Antuérpia, Bruxelas, Roterdão e Amesterdão), Antilhas e EUA, entre outras....”. A certificação é realizada atendendo à documentação oficial de Estados, certificados rabínicos, nomes, idioma, registos de cemitérios, contratos de casamento e outros objetos, ritos e costumes religiosos ou alimentares e outros elementos criticamente articulados com o conhecimento do mundo judaico e do idioma hebraico e com outros materiais reunidos ao longo do processo de avaliação.

Os processos aprovados e as comunicações trocadas são guardados em arquivo (aliás, arquivos, um físico e outro digital) para consulta, a qualquer tempo, por parte das instâncias formais de controlo, o que ao longo dos anos já aconteceu, e certamente continuará a acontecer, como é devido e de direito.

9. É interessante relevar que, em março de 2015, a comunidade judaica do Porto informou o Ministério da Justiça que não apreciaria casos de não-judeus com supostas origens judaicas mas sem uma tradição de pertença continuada à comunidade judaica. Por um lado, entendia não ter sido esse o espírito da lei. Por outro, aqueles casos, assentes em longas genealogias e intrincadas provas das informações ali contidas, porventura de grande beleza histórica mas laterais ao mundo judaico, redundariam num imenso prejuízo para a operacionalidade da comissão, dado serem matérias para historiadores e não para rabinos.

10. Num quadro de cooperação com o Estado com vista ao bem de Portugal no concerto das nações, a comunidade judaica do Porto já defendeu, junto do Governo, que o regulamento da lei da nacionalidade pode ser aperfeiçoado no sentido de exigir uma ligação efetiva dos candidatos a Portugal, como por exemplo o conhecimento suficiente do país, ou a promoção da cultura sefardita, ou a prestação de serviços relevantes ao Estado Português ou à comunidade nacional, ou a prática de atividades de beneficência, culturais, académicas, científicas, económicas, desportivas ou análogas a favor de pessoas, instituições portuguesas ou praticadas em território nacional ou outras circunstâncias que claramente mostrem essa ligação. Uma proposta nesse sentido foi apresentada, no passado dia 15 de junho, ao Ministério da Justiça.

1. No projeto de lei que o grupo parlamentar do Partido Socialista apresentou, em 7 de março de 2013, na Assembleia da República, com vista à alteração da lei da nacionalidade, podia ler-se que "faz todo o sentido promover o retorno dos descendentes dos judeus expulsos ou dos que fugiram do terror da Inquisição no seio do seu povo e da sua nação portuguesa". Tratou-se indubitavelmente de um reconectar de Portugal com a diáspora sefardita de sangue e património genético e cultural português, numa lógica de presente e de futuro, “ligando de novo o que fora rompido”, como escreveu Ribeiro e Castro há já cinco anos.

2. O objetivo do legislador tem sido materializado, nos últimos anos, no crescimento da comunidade judaica nacional a todos os títulos e na possibilidade de defesa dos interesses nacionais por parte de novos portugueses que vivem em Nova Iorque, Paris, Istambul, Moscovo, Hong Kong, Jerusalém e tantos outros lugares. Estes factos, que a poucos parecem interessar, representam o mais flagrante desmentido da tese que pretende reduzir a legislação de 2013/2015 ao simbolismo de um “ato de reparação histórica em relação ao passado”. Para atos de mera reparação histórica existem as resoluções e os memoriais, não as leis e os decretos-lei, muito menos aqueles que servem a genuinidade, o prestígio e o interesse de Portugal.

3. Em 2015, a comunidade judaica nacional equiparava-se, em termos de pequenez, às comunidades congéneres de Chipre e de Malta, enquanto hoje pode equiparar-se às de países como a Grécia e a Lituânia. Oxalá as mais altas instâncias políticas do país consintam o crescimento continuado desta população não desejada por todos, sendo certo que a diáspora sefardita que poderá pedir a nacionalidade nas próximas décadas corresponde talvez a 10% da diáspora portuguesa global, o que percentualmente está em linha de conta com a população judaica existente antes do Édito de D. Manuel I.

4. No debate político que tem decorrido, nas últimas semanas, em torno do direito à nacionalidade dos judeus sefarditas, nenhum efeito positivo da lei foi sequer aflorado. Sejamos claros, o conjunto dos argumentos apresentados no debate, encabeçados por um suposto ato de reparação histórica que, como todos os atos de generosidade simbólica, não pode ser eterno, pretendeu apenas criar um estado de espírito favorável a um limite temporal para a lei mais cedo ou mais tarde. Tudo foi circunscrito a números assustadores, má imagem de Portugal, publicidade abusiva, recortes de jornal, impressões da internet e anúncios os mais diversos, relativos a operadores independentes estrangeiros, à mistura com conclusões escandalosas sobre favorecimento de judeus, negócios e passaportes de conveniência. A própria senhora conservadora dos registos centrais, que há poucos meses reconheceu perante o Governo que os judeus sefarditas são os “estrangeiros” que mais manifestam o seu orgulho quando recebem a nacionalidade, foi chamada à Assembleia da República só para falar de estatísticas.

5. Apresentou-se a lei espanhola como um bom exemplo, pelo facto de ter imposto um prazo e uma ligação efetiva actual a Espanha. A verdade, porém, é que dignitários da política daquele país já afirmaram que a devolução de um direito não pode ter prazo e que os judeus sefarditas continuam à espera de uma verdadeira lei de retorno, dado que a assinalada excluía os judeus sefarditas que falavam ladino em detrimento de não-judeus da América latina que falavam castelhano e tinham a sorte de contar com um ancestral judeu há 20 gerações. O facto de ter havido quase duzentos mil pedidos é estranho. Na imprensa internacional, houve quem chamasse à lei "uma nova inquisição espanhola, com uma diferença, pois quando os judeus foram expulsos da Espanha e de Portugal não realizaram marcações e exames em notários”.

6. Para desmerecimento ainda maior do regime encontrado pelo legislador português foi utilizado o argumento da “discriminação dos muçulmanos”, encobrindo-se que os mesmos beneficiam do direito à nacionalidade se provarem que descendem de portugueses. Bom seria que, a partir de agora, a preocupação com os muçulmanos fosse dirigida à devida publicitação desse seu direito tão justo. Apesar de nunca terem existido comunidades muçulmanas de origem portuguesa, o que impossibilita, como no caso dos judeus sefarditas, a identificação das famílias tradicionais de tais comunidades, certamente será possível fazer prova de ancestralidade portuguesa em certos casos particulares.

7. Entretanto, nas palavras de Henrique Monteiro no Expresso, os judeus sefarditas portugueses são portugueses, residam ou não em Portugal. Fazem parte integrante da diáspora portuguesa, por vontade e sabedoria do legislador, que neste delicado processo de reabilitação histórica não se limitou a ouvir os representantes das comunidades judaicas portuguesas para os consultar, mas consagrou a sua colaboração futura nos processos administrativos, porquanto só elas possuíam o conhecimento da realidade, cultura, história, lei e religião judaicas.

Passaram cinco anos. Há 16.750 novos portugueses. Os arquivos das comunidades estão abertos para consultas. Num país que durante décadas assistiu a imensos escândalos e prisões em torno da lei da nacionalidade, ninguém foi capaz de apontar um único caso sequer suspeito de um certificado de sefardismo emitido erradamente. O próprio grupo parlamentar do Partido Socialista, que, diga-se em abono da verdade, demonstrou sentido de Estado ao reavaliar a proposta de residência prévia obrigatória que apresentou em 28 de maio, substituindo-a por uma ligação efetiva mais flexível, já fez saber pelo deputado e jurista qualificado Pedro Delgado Alves que "não está em causa o papel desempenhado pelas comunidades judaicas de Lisboa e do Porto, onde sabemos que os processos são conduzidos de forma extremamente minuciosa e criteriosa.”

8. A comissão de certificação de sefardismo da comunidade judaica do Porto, liderada pelo rabino-chefe da cidade, reconhecido pelo Grão Rabinato de Israel, concentra toda a sua ação na certificação de judeus à luz da halachá (a lei judaica, único critério consensual no mundo judaico sobre quem é judeu) pertencentes a famílias tradicionais das comunidades sefarditas de origem portuguesa que, aliás, o preâmbulo do decreto-lei n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro, situou, com bastante acerto, "em algumas regiões do Mediterrâneo (Gibraltar, Marrocos, Sul de França, Itália, Croácia, Grécia, Turquia, Síria, Líbano, Israel, Jordânia, Egito, Líbia, Tunísia e Argélia), norte da Europa (Londres, Nantes, Paris, Antuérpia, Bruxelas, Roterdão e Amesterdão), Antilhas e EUA, entre outras....”. A certificação é realizada atendendo à documentação oficial de Estados, certificados rabínicos, nomes, idioma, registos de cemitérios, contratos de casamento e outros objetos, ritos e costumes religiosos ou alimentares e outros elementos criticamente articulados com o conhecimento do mundo judaico e do idioma hebraico e com outros materiais reunidos ao longo do processo de avaliação.

Os processos aprovados e as comunicações trocadas são guardados em arquivo (aliás, arquivos, um físico e outro digital) para consulta, a qualquer tempo, por parte das instâncias formais de controlo, o que ao longo dos anos já aconteceu, e certamente continuará a acontecer, como é devido e de direito.

9. É interessante relevar que, em março de 2015, a comunidade judaica do Porto informou o Ministério da Justiça que não apreciaria casos de não-judeus com supostas origens judaicas mas sem uma tradição de pertença continuada à comunidade judaica. Por um lado, entendia não ter sido esse o espírito da lei. Por outro, aqueles casos, assentes em longas genealogias e intrincadas provas das informações ali contidas, porventura de grande beleza histórica mas laterais ao mundo judaico, redundariam num imenso prejuízo para a operacionalidade da comissão, dado serem matérias para historiadores e não para rabinos.

10. Num quadro de cooperação com o Estado com vista ao bem de Portugal no concerto das nações, a comunidade judaica do Porto já defendeu, junto do Governo, que o regulamento da lei da nacionalidade pode ser aperfeiçoado no sentido de exigir uma ligação efetiva dos candidatos a Portugal, como por exemplo o conhecimento suficiente do país, ou a promoção da cultura sefardita, ou a prestação de serviços relevantes ao Estado Português ou à comunidade nacional, ou a prática de atividades de beneficência, culturais, académicas, científicas, económicas, desportivas ou análogas a favor de pessoas, instituições portuguesas ou praticadas em território nacional ou outras circunstâncias que claramente mostrem essa ligação. Uma proposta nesse sentido foi apresentada, no passado dia 15 de junho, ao Ministério da Justiça.

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