O doce perfume do lápis azul

13-05-2020
marcar artigo

A direita julga-se no direito de decidir o que é a história, o que se pode ou não ensinar. Nuno Melo e o CDS decidem o que é ou não a história, decidem o que é história, o que é “marxismo cultural”.

Entre as medidas tomadas para resolver o problema do Corona Vírus nas escolas conta-se o ensino à distância pela TV. Basicamente os professores foram lançados às feras, entre as competências que tinham o dar aulas e as que não tinham, fazê-lo na televisão. A avaliar pelas opiniões de crianças, jovens e adultos (e era bom que os adultos vissem estas “aulas”) a coisa tem corrido bem.

Pelo menos ia correndo bem e sem polémicas, até quem é responsável pelas aulas de História e Geografia de Portugal se lembraram de usar um excerto de uma intervenção de Rui Tavares sobre a Exposição do Mundo Português de 1940. Não foi uma aula dada por Rui Tavares, mas professores a utilizar uma sua intervenção como recurso educativo. não que isso, a meu ver, seja fundamental na questão. Resumindo o que aconteceu: Professoras de história usaram uma parte de um documentário em que um historiador falou sobre o assunto da aula em questão. Esta utilização de recursos é um procedimento normal e até desejável. Esta aparição, ou a intervenção de Rui Tavares foi objeto de enorme burburinho, em especial com tweets inflamados feitos pelo eurodeputado Nuno Melo. Posteriormente os deputados Ana Rita Bessa e Telmo Correia apresentaram uma pergunta no Parlamento. Com a pergunta a forma tinha-se tornado menos agressiva, mas a intenção estava lá.

Esclareço aqui que sou doutorado em História e que tenho formação de ensino precisamente no 2º ciclo, o que me permite ensinar no ensino superior, mesmo a cursos de mestrado e doutoramento (o que tenho feito), no 2º ciclo, mas não no 3º ciclo e secundário. Incongruências de um sistema de habilitações e de grupos de recrutamento para o ensino que são arcaicos, mas que ninguém quer mudar. Além disso fui aluno da Telescola no seu início o que foi uma muito boa experiência.

Na pergunta feita pelo grupo parlamentar do CDS sobre este assunto, a primeira questão levantada é a de um político “independentemente do partido” poder ter ministrado aulas naquele projeto. Posso ter alguma dificuldade em definir um “político”, mas todos assistimos a “políticos” a ministrar aulas em todos os contextos. Esta talvez não seja bem a questão. O 2º ponto da pergunta é mais esclarecedor. O problema afinal é a “isenção política” e aqui chegamos ao busílis da questão. Rui Tavares, de acordo com toda a investigação histórica desde meados do século XX, terá dado uma visão da época da expansão que contradiz a visão dourada do Salazarismo (embora lhe fosse anterior). Já na introdução se diz que o assunto foi tratado com a “perspetiva crítica do historiador (e por isso deturpada)”. Ou seja, existe deturpação por ter apresentado a sua visão crítica. Lamento, mas o trabalho do historiador é mesmo essa visão crítica. Podia ser uma visão muito pessoal e polémica, mas nem isso. O que Rui Tavares apresentou está de acordo com o que é o entendimento consensual da historiografia portuguesa desde há décadas. Está também de acordo com os atuais programas de História e Geografia de Portugal. Estes programas, embora eu os considere desatualizados, são do início dos anos 90 e estão bem longe das visões douradas do Estado Novo reconhecendo a escravatura, o comércio desigual ou a evangelização forçada. O pecado foi a apresentação de uma visão da expansão que não está de acordo com a visão dourada do Estado Novo, porém essa visão está completamente ultrapassada. Outro seria o atrevimento de um político ser historiador, ou vice-versa, mas lembremos a esse respeito Alexandre Herculano. O CDS aqui faz o papel de miguelista.

Para o CDS a questão é clara, a sua deriva populista/nacionalista leva-os a um regresso à visão histórica do salazarismo. Mais do que à visão histórica, leva-os aos métodos, não há contra-argumentação, apenas o apelo à censura. O afã dos censores nem nos deixa perceber se o problema é o que foi dito por Rui Tavares, se o facto de um elemento da “extrema esquerda” poder ter contacto, ainda que televisivo, com jovens. Salazar apoiaria os dois casos. Uns meses antes tinha havido sururu semelhante por causa da “ideologia de género”.

A direita julga-se no direito de decidir o que é a história, o que se pode ou não ensinar. Quem pode ou não ensinar. Não interessa o que diz toda a investigação, não interessa que a visão dourada esteja completamente ultrapassada, não interessa que nenhum historiador tenha levantado a questão. Nuno Melo e o CDS decidem o que é ou não a história, decidem o que é história, o que é “marxismo cultural”. Querem situação semelhante ao que acontece em alguns estados do “Bible Belt” dos Estados Unidos, onde a teoria da evolução de Darwin é proibida e tem que se ensinar o criacionismo.

O que é importante é que hoje se atrevem, não só a desafiar os valores democráticos, como também a impor a sua visão. Isto é mais um sinal da ascensão da extrema direita, em conjunto com a triste decadência do CDS. A versão mais extrema nega o holocausto e o extermínio de seis milhões de judeus, a versão lusa proíbe a referência a quatro milhões de escravos, ao extermínio dos índios, à exploração colonial e inevitavelmente à guerra colonial.

Há aqui um eco que ultrapassa o extremismo reacionário de Nuno Melo e outros. O império caiu há 45 anos, mas a sua representação que provocou a grande comoção à volta do ultimato e que foi cuidadosamente tecida pelo Estado Novo, mantém-se parcialmente viva. A rutura prática foi conseguida com a independência das colónias, mas nunca se consumou completamente a nível das representações. A velha visão foi tendo reforços ao longo dos anos de democracia. Toda a teoria de “encontro de culturas” dos anos 90 vai contra a compreensão do fenómeno colonial. É claro que nunca houve tal encontro, mas sim domínio, extermínio, exploração (podia continuar nesta lista de palavras proibidas). Temas como a escravatura têm tido uma importância menor na historiografia portuguesa.

Há alguns argumentos interessantes para justificar o esquecimento ou a censura, o primeiro é: Então e os outros? É verdade que Portugal não foi o único país na exploração colonial, embora tenha sido o primeiro a iniciá-la e o último a terminar com ela. O segundo, e vindo diretamente do Neotropicalíssimo, é que o colonialismo português teria sido menos brutal que outros. É uma ideia reconfortante, mas não tem nada que a prove, antes pelo contrário, os indicadores demográficos, nomeadamente as taxas de mortalidade e reprodução dos escravos, apontam para a grande violência do colonialismo português.

Outro tipo de argumentação de quem quer evitar estas feridas é se haveria a necessidade de “nos autoflagelarmos” com os crimes coloniais? Não é uma questão de autoflagelação, é uma questão de ter uma representação correta e realista do passado, é uma questão de assumir esse mesmo passado.

A direita tenta controlar o passado, isso só mostra a importância da história. O que os preocupa não é o passado, é o presente. Sabem que controlando o passado podem impor o seu futuro. Não têm armas ideológicas, tentam a repressão e a censura. Afinal estes sempre foram armas da extrema direita.

A direita julga-se no direito de decidir o que é a história, o que se pode ou não ensinar. Nuno Melo e o CDS decidem o que é ou não a história, decidem o que é história, o que é “marxismo cultural”.

Entre as medidas tomadas para resolver o problema do Corona Vírus nas escolas conta-se o ensino à distância pela TV. Basicamente os professores foram lançados às feras, entre as competências que tinham o dar aulas e as que não tinham, fazê-lo na televisão. A avaliar pelas opiniões de crianças, jovens e adultos (e era bom que os adultos vissem estas “aulas”) a coisa tem corrido bem.

Pelo menos ia correndo bem e sem polémicas, até quem é responsável pelas aulas de História e Geografia de Portugal se lembraram de usar um excerto de uma intervenção de Rui Tavares sobre a Exposição do Mundo Português de 1940. Não foi uma aula dada por Rui Tavares, mas professores a utilizar uma sua intervenção como recurso educativo. não que isso, a meu ver, seja fundamental na questão. Resumindo o que aconteceu: Professoras de história usaram uma parte de um documentário em que um historiador falou sobre o assunto da aula em questão. Esta utilização de recursos é um procedimento normal e até desejável. Esta aparição, ou a intervenção de Rui Tavares foi objeto de enorme burburinho, em especial com tweets inflamados feitos pelo eurodeputado Nuno Melo. Posteriormente os deputados Ana Rita Bessa e Telmo Correia apresentaram uma pergunta no Parlamento. Com a pergunta a forma tinha-se tornado menos agressiva, mas a intenção estava lá.

Esclareço aqui que sou doutorado em História e que tenho formação de ensino precisamente no 2º ciclo, o que me permite ensinar no ensino superior, mesmo a cursos de mestrado e doutoramento (o que tenho feito), no 2º ciclo, mas não no 3º ciclo e secundário. Incongruências de um sistema de habilitações e de grupos de recrutamento para o ensino que são arcaicos, mas que ninguém quer mudar. Além disso fui aluno da Telescola no seu início o que foi uma muito boa experiência.

Na pergunta feita pelo grupo parlamentar do CDS sobre este assunto, a primeira questão levantada é a de um político “independentemente do partido” poder ter ministrado aulas naquele projeto. Posso ter alguma dificuldade em definir um “político”, mas todos assistimos a “políticos” a ministrar aulas em todos os contextos. Esta talvez não seja bem a questão. O 2º ponto da pergunta é mais esclarecedor. O problema afinal é a “isenção política” e aqui chegamos ao busílis da questão. Rui Tavares, de acordo com toda a investigação histórica desde meados do século XX, terá dado uma visão da época da expansão que contradiz a visão dourada do Salazarismo (embora lhe fosse anterior). Já na introdução se diz que o assunto foi tratado com a “perspetiva crítica do historiador (e por isso deturpada)”. Ou seja, existe deturpação por ter apresentado a sua visão crítica. Lamento, mas o trabalho do historiador é mesmo essa visão crítica. Podia ser uma visão muito pessoal e polémica, mas nem isso. O que Rui Tavares apresentou está de acordo com o que é o entendimento consensual da historiografia portuguesa desde há décadas. Está também de acordo com os atuais programas de História e Geografia de Portugal. Estes programas, embora eu os considere desatualizados, são do início dos anos 90 e estão bem longe das visões douradas do Estado Novo reconhecendo a escravatura, o comércio desigual ou a evangelização forçada. O pecado foi a apresentação de uma visão da expansão que não está de acordo com a visão dourada do Estado Novo, porém essa visão está completamente ultrapassada. Outro seria o atrevimento de um político ser historiador, ou vice-versa, mas lembremos a esse respeito Alexandre Herculano. O CDS aqui faz o papel de miguelista.

Para o CDS a questão é clara, a sua deriva populista/nacionalista leva-os a um regresso à visão histórica do salazarismo. Mais do que à visão histórica, leva-os aos métodos, não há contra-argumentação, apenas o apelo à censura. O afã dos censores nem nos deixa perceber se o problema é o que foi dito por Rui Tavares, se o facto de um elemento da “extrema esquerda” poder ter contacto, ainda que televisivo, com jovens. Salazar apoiaria os dois casos. Uns meses antes tinha havido sururu semelhante por causa da “ideologia de género”.

A direita julga-se no direito de decidir o que é a história, o que se pode ou não ensinar. Quem pode ou não ensinar. Não interessa o que diz toda a investigação, não interessa que a visão dourada esteja completamente ultrapassada, não interessa que nenhum historiador tenha levantado a questão. Nuno Melo e o CDS decidem o que é ou não a história, decidem o que é história, o que é “marxismo cultural”. Querem situação semelhante ao que acontece em alguns estados do “Bible Belt” dos Estados Unidos, onde a teoria da evolução de Darwin é proibida e tem que se ensinar o criacionismo.

O que é importante é que hoje se atrevem, não só a desafiar os valores democráticos, como também a impor a sua visão. Isto é mais um sinal da ascensão da extrema direita, em conjunto com a triste decadência do CDS. A versão mais extrema nega o holocausto e o extermínio de seis milhões de judeus, a versão lusa proíbe a referência a quatro milhões de escravos, ao extermínio dos índios, à exploração colonial e inevitavelmente à guerra colonial.

Há aqui um eco que ultrapassa o extremismo reacionário de Nuno Melo e outros. O império caiu há 45 anos, mas a sua representação que provocou a grande comoção à volta do ultimato e que foi cuidadosamente tecida pelo Estado Novo, mantém-se parcialmente viva. A rutura prática foi conseguida com a independência das colónias, mas nunca se consumou completamente a nível das representações. A velha visão foi tendo reforços ao longo dos anos de democracia. Toda a teoria de “encontro de culturas” dos anos 90 vai contra a compreensão do fenómeno colonial. É claro que nunca houve tal encontro, mas sim domínio, extermínio, exploração (podia continuar nesta lista de palavras proibidas). Temas como a escravatura têm tido uma importância menor na historiografia portuguesa.

Há alguns argumentos interessantes para justificar o esquecimento ou a censura, o primeiro é: Então e os outros? É verdade que Portugal não foi o único país na exploração colonial, embora tenha sido o primeiro a iniciá-la e o último a terminar com ela. O segundo, e vindo diretamente do Neotropicalíssimo, é que o colonialismo português teria sido menos brutal que outros. É uma ideia reconfortante, mas não tem nada que a prove, antes pelo contrário, os indicadores demográficos, nomeadamente as taxas de mortalidade e reprodução dos escravos, apontam para a grande violência do colonialismo português.

Outro tipo de argumentação de quem quer evitar estas feridas é se haveria a necessidade de “nos autoflagelarmos” com os crimes coloniais? Não é uma questão de autoflagelação, é uma questão de ter uma representação correta e realista do passado, é uma questão de assumir esse mesmo passado.

A direita tenta controlar o passado, isso só mostra a importância da história. O que os preocupa não é o passado, é o presente. Sabem que controlando o passado podem impor o seu futuro. Não têm armas ideológicas, tentam a repressão e a censura. Afinal estes sempre foram armas da extrema direita.

marcar artigo