Números mostram que femicídios não têm vindo a diminuir. O que está a falhar?

22-06-2020
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Parecia ter aceitado o fim, mas quatro meses depois mostrou, afinal, que não. A relação tinha acabado em dezembro e, em abril, João (nome fictício) começou a enviar mensagens e a telefonar sistematicamente a Inês (nome fictício), que acabou por bloquear o número do antigo companheiro. João começou então a aparecer à porta de sua casa, no trabalho e na escola da filha de sete anos da antiga companheira. Em 13 de junho de 2017, Inês foi à PSP apresentar queixa de várias situações: numa delas, João forçou a entrada da casa de Inês, agarrou-lhe no braço e arrastou-a para a sala. Depois de vários episódios de ameaças e agressões, com uma ida ao hospital, a PSP_terminou o inquérito no dia 4 de agosto, enviando-o ao Ministério Público (MP), que solicitou mais provas, como os SMS que João enviou a Inês ao longo de vários meses. Enquanto isso, a perseguição continuou, Inês teve novamente de receber tratamento hospitalar e a 15 de setembro ela e o ex-companheiro foram notificados para diligência no MP, marcada para dia 21.

Mas não chegaram lá: no dia 20 de setembro, Inês saiu do trabalho ao fim da tarde, dirigiu-se ao carro, sentou-se e João apareceu de repente com um martelo, uma faca e uma mochila às costas. Partiu o vidro do carro à martelada e desferiu facadas na direção de Inês, que as conseguiu evitar. Mas João tinha tudo pensado: na mochila levava um garrafão de cinco litros com combustível, que atirou para dentro do carro. Em reação, Inês fugiu do carro e João foi atrás dela. Agrediu-a, fazendo-a cair, regou-se com o combustível que restava, acendeu um isqueiro e atirou-se para cima de Inês. Ambos morreram.

Esta é a história de Inês – o último caso a ser analisado pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, num relatório publicado em janeiro –, mas, simbolicamente, é também a história dos outros 19 femicídios que aconteceram em 2017 e, em boa verdade, de todos os casos de assassinato em contexto de violência doméstica.

As contas são do Observatório de Mulheres Assassinadas da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), que em 2018 – ano cujo relatório não foi ainda publicado –, de acordo com informação avançada ao i, contabilizou um total de 28 mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica. Os números, de resto, não são muito diferentes dos registados nos anos anteriores: em 2016 houve 22 femicídios, enquanto em 2015 ocorreram 29 e, em 2014, 43. Este ano, desde 1 de janeiro, já morreram nove mulheres.

“Aquilo que estamos a viver é sem dúvida um drama. Não obstante, desde 2004, quando o Observatório surgiu, não é a primeira vez que um mês assinala uma mortandade tão grande. Já tivemos meses com 12 mulheres assassinadas, o que nunca aconteceu foi termos um janeiro tão fatídico. Agora, claro que os números são preocupantes e permitem-nos tirar conclusões”, diz ao i Elisabete Brasil, presidente da UMAR. E que conclusões são essas? “Aquilo que percebemos é que há uma constante no femicídio em Portugal. Os números globais apontam para uma estabilização em termos dos femicídios e é preocupante. Quando falamos do homicídio como criminalidade violenta e grave, aquilo que percebemos na curva europeia e na portuguesa é que ela tem uma tendência de diminuição. Contudo, o homicídio praticado contra as mulheres não baixa”, esclarece a responsável da associação, que facilmente identifica possíveis motivos. “A estabilização do número leva-nos a questionar que as estratégias de prevenção que estão a ser equacionadas para o femicídio global não são as adequadas, uma vez que tem uma caracterização distinta do homicídio e precisa de um combate que parece estar a conseguir resultados positivos no âmbito do homicídio, mas o femicídio não está a ter nenhuma diminuição. Portugal não é eficaz nem a prevenir o fenómeno, nem a apoiar as mulheres”, continua a presidente da UMAR.

Para o presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), o número de mulheres mortas em janeiro em contexto de violência doméstica “não se justifica”. Não querendo “minimizar o alerta e a gravidade que nove mulheres mortas significa, João Lázaro defende que “é preciso esperar mais tempo para ver como se comporta o ano”, ainda que os números “mostrem a necessidade de redobrar esforços, a todos os níveis, desde a prevenção, à intervenção”.

Outro indicador que ajuda a caracterizar o fenómeno e que não deve ser esquecido é o número de denúncias de violência doméstica apresentadas todos os anos às autoridades. E um aumento “pode até ser uma coisa positiva: significa que as pessoas toleram menos a violência doméstica e queixam-se mais”, defende João Lázaro. De acordo com o mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), relativo a 2017, registaram-se nesse ano 22599 participações, um número inferior a 2016, quando se registaram 22773 denúncias. Em 2015, foram participadas 22469 ocorrências, contra 22965 em 2014.

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“O femicídio está muito relacionado com as relações de intimidade e tem uma relação com o número de denúncias de violência doméstica anual. O RASI aponta-nos todos os anos para uma média há muito tempo idêntica. Por outro lado, existem dois estudos de prevalência em Portugal: um primeiro, feito em 1995, saído em 1997, do professor Nelson Lourenço, e outro, de 2008, já com o professor Manuel Lisboa e ambos mantêm exatamente o panorama. Podemos afirmar com toda a certeza que uma em cada três mulheres em Portugal é vítima de violência nas suas relações de intimidade. Se temos estudos de 20 anos a dizer o mesmo, temos um problema de Estado em Portugal, não da polícia e dos tribunais, mas de Estado. Se oito deputados fossem assassinados num mês, certamente veríamos alguma medida”, lamenta ao i Elisabete Brasil, acrescentando que falta coordenação entre as várias entidades e que, no momento em que é preciso aplicar a lei, falha-se. “Há uma situação de terrorismo doméstico no país. Morrem mais mulheres de terrorismo doméstico em Portugal do que de terrorismo, mas a prevenção e as regras de atuação policial e de Estado são mais para o terrorismo, por isso há aqui alguma coisa que não está a funcionar”, defende a mesma responsável.

“É preciso uma aposta continuada na prevenção, que acaba por andar de mão dada com a intervenção. A montante, a prevenção pode sempre ajudar no futuro”, acredita por sua vez o presidente da APAV. “Sentimos que é necessária uma melhor articulação entre os vários organismos intervenientes nos processos de violência doméstica e nos procedimentos, e é isso aliás que as recomendações de vários organismos têm sugerido”, conclui o responsável.

O que está a falhar

Traçado o problema, o que está então a falhar e a impedir que os números diminuam? A questão tem vindo a ser analisada pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica. Criada em 2009, compete à equipa – constituída por representantes de vários ministérios, do Ministério Público e ainda de organizações da sociedade civil que tenham tido intervenção nos vários casos – analisar cassos de homicídio em violência doméstica, produzindo “recomendações tendo em vista a implementação de novas metodologias preventivas ao nível dos procedimentos”, lê-se na lei n.º 112/2009.

Até hoje, foram publicados cinco relatórios que se debruçam sobre casos de homicídio em contexto de violência doméstica e, em cada um deles, as recomendações apontam em direções semelhantes. Separadas por áreas – Saúde, Forças de Segurança, Justiça, Igualdade de Género, Segurança –, assinalam necessidades como o dever de “deteção de risco de existência de violência doméstica”, sendo para tal “colocadas questões objetivas sobre a ocorrência de violência no seio da família” em “todos os processos de triagem”; o reforço da “formação sobre violência nas relações de intimidade, violência contra as mulheres e violência doméstica, por forma a dotar um maior número de profissionais da 1ª linha das forças de segurança de conhecimentos que melhorem a sua compreensão sobre as características e dinâmica destes comportamentos e incrementem a qualidade da sua atuação, nomeadamente na receção e atendimento da vítima, na recolha de prova, na avaliação do risco e na definição e implementação do plano de segurança”; “que as diligências de implementação das medidas de proteção e do plano de segurança definidos para a vítima, bem como os incidentes da sua implementação, devem estar registados em documento próprio, que será junto ao processo crime, por forma a que seja possível conhecer e controlar a sua efetiva execução”; “em todas as situações em que ocorram episódios de violência contra as mulheres e violência doméstica, deverá averiguar-se se existem crianças/jovens direta ou indiretamente envolvidos ou afetados, proceder-se à avaliação do risco que correm e adotar-se as adequadas medidas de segurança, que atendam às suas específicas necessidades, bem como ser efetuada comunicação à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ou desencadear-se procedimento judicial com vista à sua proteção e promoção dos direitos”.

Num plano macro – da estratégia relativa ao combate da violência doméstica e não em específico dos casos que se tornam fatais –, o diagnóstico do que falha também já foi traçado por entidades a nível internacional. É o caso do Grupo de Especialistas na Ação contra a Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (GREVIO), que fez no mês de janeiro a primeira avaliação da aplicação da Convenção de Istambul – a convenção europeia sobre violência contra as mulheres, ratificada por Portugal. No relatório, o GREVIO identificou vários assuntos prioritários em relação aos quais é preciso que as autoridades portuguesas com competências na matéria ajam rapidamente, sob pena de o país continuar a não cumprir o estipulado na Convenção de Istambul.

Portugal tem ainda um longo caminho a percorrer, por exemplo, no que toca à “proteção das vítimas e ao apoio durante o processo legal”. Além disso, é urgente assegurar a coordenação entre os tribunais criminais e os tribunais de família: “Apesar dos passos iniciais dados pelo legislador para assegurar a coordenação entre os tribunais criminais e os tribunais de família, o relatório descobriu que as decisões dos tribunais de família sobre a custódia e os direitos de visita não dão a devida consideração aos direitos das vítimas e ao impacto da violência contra as mulheres no testemunho de crianças na determinação do melhor interesse da criança”, dá conta o grupo de especialistas. É preciso, também, entre outras prioridades, que o país tome medidas para assegurar que a violência doméstica é efetivamente julgada, incluindo a aplicação cumulativa das disposições penais relacionadas com várias infrações concorrentes e que as sentenças reflitam a classificação de violência doméstica.

A proteção das crianças

No caso mais recente, além de uma mulher, a sogra, o homicida acabou por matar também a filha, de dois anos. O caso é, na visão de Elisabete Brasil, uma evidência da insuficiência da lei de proteção de menores em Portugal. “Nós trabalhamos com a lei de promoção e proteção todos os dias e vemos que o grosso da população das casas de abrigo, aliás, são crianças. E vemos também que os tribunais estão cegos e continuam, por exemplo, a fazer guardas partilhadas em situações de violência doméstica e a alimentar àquele pai e àquela mãe que é possível chegar a um consenso – o que não é possível na violência doméstica – e estão a fazer um atentado aos direitos das crianças”, defende. Para a presidente da UMAR, a impunidade da violência doméstica em Portugal ensina aos rapazes e raparigas que um padrão de violência, uma vez que “não existem consequências”.

Já o diretor do Refúgio Aboim Ascensão, Luís Villas Boas, considera que o Estado “tem de conseguir intervir mais cedo, quando houver um sinal mínimo de risco”: “Não é quando a criança tem doze anos, é quando tem três ou quatro meses, quando é recém-nascido, é preciso intervenção precoce do governo. Não é a lei que está mal, que essa está sossegada, é preciso é alterar o padrão de intervenção não atempada”.

A deteção e intervenção são as falhas mais comuns, diz Luís Villas Boas, salientando que a sinalização de nada serve se não conduzir a uma intervenção: “Há muitos anos que assim é, não sei se é por não haver instituições preparadas para receber crianças de baixa idade, durante curtos espaços de tempo, entre as questões da Segurança social e os tribunais”.

E vai mais longe: “Na dúvida deve retirar-se crianças de casas onde se suspeite que haja maus tratos, nem que seja por excesso, retira-se. Se um mês depois se perceber que houve um erro há uma coisa que é certa é que a criança não morreu”.

Segundo o diretor do Refúgio Aboim Ascensão, há 34 anos, Portugal precisa de “emergência infantil” para evitar males maiores: “Precisamos de uma emergência infantil, que não é emergência social, não é emergência médica, não é emergência pedagógica. Quanto mais cedo interviermos mais depressa evitamos a delinquência juvenil”.

A terminar aplaudiu ainda a medida da secretária de Estado para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, de congelar as famílias de acolhimento, até que haja condições para garantir a fiscalização das mesmas: “Eu sou contra famílias de acolhimento para crianças com menos de seis anos, porque pensam que é a deles, quando vão sair de lá um dia. Outra coisa diferente são as famílias de acolhimentos para crianças a partir dos seis anos.

Parecia ter aceitado o fim, mas quatro meses depois mostrou, afinal, que não. A relação tinha acabado em dezembro e, em abril, João (nome fictício) começou a enviar mensagens e a telefonar sistematicamente a Inês (nome fictício), que acabou por bloquear o número do antigo companheiro. João começou então a aparecer à porta de sua casa, no trabalho e na escola da filha de sete anos da antiga companheira. Em 13 de junho de 2017, Inês foi à PSP apresentar queixa de várias situações: numa delas, João forçou a entrada da casa de Inês, agarrou-lhe no braço e arrastou-a para a sala. Depois de vários episódios de ameaças e agressões, com uma ida ao hospital, a PSP_terminou o inquérito no dia 4 de agosto, enviando-o ao Ministério Público (MP), que solicitou mais provas, como os SMS que João enviou a Inês ao longo de vários meses. Enquanto isso, a perseguição continuou, Inês teve novamente de receber tratamento hospitalar e a 15 de setembro ela e o ex-companheiro foram notificados para diligência no MP, marcada para dia 21.

Mas não chegaram lá: no dia 20 de setembro, Inês saiu do trabalho ao fim da tarde, dirigiu-se ao carro, sentou-se e João apareceu de repente com um martelo, uma faca e uma mochila às costas. Partiu o vidro do carro à martelada e desferiu facadas na direção de Inês, que as conseguiu evitar. Mas João tinha tudo pensado: na mochila levava um garrafão de cinco litros com combustível, que atirou para dentro do carro. Em reação, Inês fugiu do carro e João foi atrás dela. Agrediu-a, fazendo-a cair, regou-se com o combustível que restava, acendeu um isqueiro e atirou-se para cima de Inês. Ambos morreram.

Esta é a história de Inês – o último caso a ser analisado pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, num relatório publicado em janeiro –, mas, simbolicamente, é também a história dos outros 19 femicídios que aconteceram em 2017 e, em boa verdade, de todos os casos de assassinato em contexto de violência doméstica.

As contas são do Observatório de Mulheres Assassinadas da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), que em 2018 – ano cujo relatório não foi ainda publicado –, de acordo com informação avançada ao i, contabilizou um total de 28 mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica. Os números, de resto, não são muito diferentes dos registados nos anos anteriores: em 2016 houve 22 femicídios, enquanto em 2015 ocorreram 29 e, em 2014, 43. Este ano, desde 1 de janeiro, já morreram nove mulheres.

“Aquilo que estamos a viver é sem dúvida um drama. Não obstante, desde 2004, quando o Observatório surgiu, não é a primeira vez que um mês assinala uma mortandade tão grande. Já tivemos meses com 12 mulheres assassinadas, o que nunca aconteceu foi termos um janeiro tão fatídico. Agora, claro que os números são preocupantes e permitem-nos tirar conclusões”, diz ao i Elisabete Brasil, presidente da UMAR. E que conclusões são essas? “Aquilo que percebemos é que há uma constante no femicídio em Portugal. Os números globais apontam para uma estabilização em termos dos femicídios e é preocupante. Quando falamos do homicídio como criminalidade violenta e grave, aquilo que percebemos na curva europeia e na portuguesa é que ela tem uma tendência de diminuição. Contudo, o homicídio praticado contra as mulheres não baixa”, esclarece a responsável da associação, que facilmente identifica possíveis motivos. “A estabilização do número leva-nos a questionar que as estratégias de prevenção que estão a ser equacionadas para o femicídio global não são as adequadas, uma vez que tem uma caracterização distinta do homicídio e precisa de um combate que parece estar a conseguir resultados positivos no âmbito do homicídio, mas o femicídio não está a ter nenhuma diminuição. Portugal não é eficaz nem a prevenir o fenómeno, nem a apoiar as mulheres”, continua a presidente da UMAR.

Para o presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), o número de mulheres mortas em janeiro em contexto de violência doméstica “não se justifica”. Não querendo “minimizar o alerta e a gravidade que nove mulheres mortas significa, João Lázaro defende que “é preciso esperar mais tempo para ver como se comporta o ano”, ainda que os números “mostrem a necessidade de redobrar esforços, a todos os níveis, desde a prevenção, à intervenção”.

Outro indicador que ajuda a caracterizar o fenómeno e que não deve ser esquecido é o número de denúncias de violência doméstica apresentadas todos os anos às autoridades. E um aumento “pode até ser uma coisa positiva: significa que as pessoas toleram menos a violência doméstica e queixam-se mais”, defende João Lázaro. De acordo com o mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), relativo a 2017, registaram-se nesse ano 22599 participações, um número inferior a 2016, quando se registaram 22773 denúncias. Em 2015, foram participadas 22469 ocorrências, contra 22965 em 2014.

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“O femicídio está muito relacionado com as relações de intimidade e tem uma relação com o número de denúncias de violência doméstica anual. O RASI aponta-nos todos os anos para uma média há muito tempo idêntica. Por outro lado, existem dois estudos de prevalência em Portugal: um primeiro, feito em 1995, saído em 1997, do professor Nelson Lourenço, e outro, de 2008, já com o professor Manuel Lisboa e ambos mantêm exatamente o panorama. Podemos afirmar com toda a certeza que uma em cada três mulheres em Portugal é vítima de violência nas suas relações de intimidade. Se temos estudos de 20 anos a dizer o mesmo, temos um problema de Estado em Portugal, não da polícia e dos tribunais, mas de Estado. Se oito deputados fossem assassinados num mês, certamente veríamos alguma medida”, lamenta ao i Elisabete Brasil, acrescentando que falta coordenação entre as várias entidades e que, no momento em que é preciso aplicar a lei, falha-se. “Há uma situação de terrorismo doméstico no país. Morrem mais mulheres de terrorismo doméstico em Portugal do que de terrorismo, mas a prevenção e as regras de atuação policial e de Estado são mais para o terrorismo, por isso há aqui alguma coisa que não está a funcionar”, defende a mesma responsável.

“É preciso uma aposta continuada na prevenção, que acaba por andar de mão dada com a intervenção. A montante, a prevenção pode sempre ajudar no futuro”, acredita por sua vez o presidente da APAV. “Sentimos que é necessária uma melhor articulação entre os vários organismos intervenientes nos processos de violência doméstica e nos procedimentos, e é isso aliás que as recomendações de vários organismos têm sugerido”, conclui o responsável.

O que está a falhar

Traçado o problema, o que está então a falhar e a impedir que os números diminuam? A questão tem vindo a ser analisada pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica. Criada em 2009, compete à equipa – constituída por representantes de vários ministérios, do Ministério Público e ainda de organizações da sociedade civil que tenham tido intervenção nos vários casos – analisar cassos de homicídio em violência doméstica, produzindo “recomendações tendo em vista a implementação de novas metodologias preventivas ao nível dos procedimentos”, lê-se na lei n.º 112/2009.

Até hoje, foram publicados cinco relatórios que se debruçam sobre casos de homicídio em contexto de violência doméstica e, em cada um deles, as recomendações apontam em direções semelhantes. Separadas por áreas – Saúde, Forças de Segurança, Justiça, Igualdade de Género, Segurança –, assinalam necessidades como o dever de “deteção de risco de existência de violência doméstica”, sendo para tal “colocadas questões objetivas sobre a ocorrência de violência no seio da família” em “todos os processos de triagem”; o reforço da “formação sobre violência nas relações de intimidade, violência contra as mulheres e violência doméstica, por forma a dotar um maior número de profissionais da 1ª linha das forças de segurança de conhecimentos que melhorem a sua compreensão sobre as características e dinâmica destes comportamentos e incrementem a qualidade da sua atuação, nomeadamente na receção e atendimento da vítima, na recolha de prova, na avaliação do risco e na definição e implementação do plano de segurança”; “que as diligências de implementação das medidas de proteção e do plano de segurança definidos para a vítima, bem como os incidentes da sua implementação, devem estar registados em documento próprio, que será junto ao processo crime, por forma a que seja possível conhecer e controlar a sua efetiva execução”; “em todas as situações em que ocorram episódios de violência contra as mulheres e violência doméstica, deverá averiguar-se se existem crianças/jovens direta ou indiretamente envolvidos ou afetados, proceder-se à avaliação do risco que correm e adotar-se as adequadas medidas de segurança, que atendam às suas específicas necessidades, bem como ser efetuada comunicação à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ou desencadear-se procedimento judicial com vista à sua proteção e promoção dos direitos”.

Num plano macro – da estratégia relativa ao combate da violência doméstica e não em específico dos casos que se tornam fatais –, o diagnóstico do que falha também já foi traçado por entidades a nível internacional. É o caso do Grupo de Especialistas na Ação contra a Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (GREVIO), que fez no mês de janeiro a primeira avaliação da aplicação da Convenção de Istambul – a convenção europeia sobre violência contra as mulheres, ratificada por Portugal. No relatório, o GREVIO identificou vários assuntos prioritários em relação aos quais é preciso que as autoridades portuguesas com competências na matéria ajam rapidamente, sob pena de o país continuar a não cumprir o estipulado na Convenção de Istambul.

Portugal tem ainda um longo caminho a percorrer, por exemplo, no que toca à “proteção das vítimas e ao apoio durante o processo legal”. Além disso, é urgente assegurar a coordenação entre os tribunais criminais e os tribunais de família: “Apesar dos passos iniciais dados pelo legislador para assegurar a coordenação entre os tribunais criminais e os tribunais de família, o relatório descobriu que as decisões dos tribunais de família sobre a custódia e os direitos de visita não dão a devida consideração aos direitos das vítimas e ao impacto da violência contra as mulheres no testemunho de crianças na determinação do melhor interesse da criança”, dá conta o grupo de especialistas. É preciso, também, entre outras prioridades, que o país tome medidas para assegurar que a violência doméstica é efetivamente julgada, incluindo a aplicação cumulativa das disposições penais relacionadas com várias infrações concorrentes e que as sentenças reflitam a classificação de violência doméstica.

A proteção das crianças

No caso mais recente, além de uma mulher, a sogra, o homicida acabou por matar também a filha, de dois anos. O caso é, na visão de Elisabete Brasil, uma evidência da insuficiência da lei de proteção de menores em Portugal. “Nós trabalhamos com a lei de promoção e proteção todos os dias e vemos que o grosso da população das casas de abrigo, aliás, são crianças. E vemos também que os tribunais estão cegos e continuam, por exemplo, a fazer guardas partilhadas em situações de violência doméstica e a alimentar àquele pai e àquela mãe que é possível chegar a um consenso – o que não é possível na violência doméstica – e estão a fazer um atentado aos direitos das crianças”, defende. Para a presidente da UMAR, a impunidade da violência doméstica em Portugal ensina aos rapazes e raparigas que um padrão de violência, uma vez que “não existem consequências”.

Já o diretor do Refúgio Aboim Ascensão, Luís Villas Boas, considera que o Estado “tem de conseguir intervir mais cedo, quando houver um sinal mínimo de risco”: “Não é quando a criança tem doze anos, é quando tem três ou quatro meses, quando é recém-nascido, é preciso intervenção precoce do governo. Não é a lei que está mal, que essa está sossegada, é preciso é alterar o padrão de intervenção não atempada”.

A deteção e intervenção são as falhas mais comuns, diz Luís Villas Boas, salientando que a sinalização de nada serve se não conduzir a uma intervenção: “Há muitos anos que assim é, não sei se é por não haver instituições preparadas para receber crianças de baixa idade, durante curtos espaços de tempo, entre as questões da Segurança social e os tribunais”.

E vai mais longe: “Na dúvida deve retirar-se crianças de casas onde se suspeite que haja maus tratos, nem que seja por excesso, retira-se. Se um mês depois se perceber que houve um erro há uma coisa que é certa é que a criança não morreu”.

Segundo o diretor do Refúgio Aboim Ascensão, há 34 anos, Portugal precisa de “emergência infantil” para evitar males maiores: “Precisamos de uma emergência infantil, que não é emergência social, não é emergência médica, não é emergência pedagógica. Quanto mais cedo interviermos mais depressa evitamos a delinquência juvenil”.

A terminar aplaudiu ainda a medida da secretária de Estado para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, de congelar as famílias de acolhimento, até que haja condições para garantir a fiscalização das mesmas: “Eu sou contra famílias de acolhimento para crianças com menos de seis anos, porque pensam que é a deles, quando vão sair de lá um dia. Outra coisa diferente são as famílias de acolhimentos para crianças a partir dos seis anos.

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