Miguel Cabrita: "Tem de se garantir uma melhor proteção ao trabalhador"

25-10-2020
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A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, acompanhada por Miguel Cabrita, secretário de Estado Adjunto, do Trabalho e da Formação Profissional. RODRIGO ANTUNES/LUSA © LUSA

O governo assume o compromisso de regulamentar a atividade das plataformas, por forma a garantir "melhores condições e mais direitos aos trabalhadores" a elas afetos, "sem esperar por decisões judiciais", como afirma Miguel Cabrita, secretário de Estado do Trabalho.

Qual é o ponto de partido do governo na proposta de regulamentação do trabalho das plataformas digitais?

A questão das plataformas é muito importante. É algo que já vem de trás, mas que ganhou durante a pandemia uma visibilidade e uma relevância muito grandes. É um sector claramente crescente, sobre o qual há pouca informação disponível e que no seu modo de funcionamento foge muito aos parâmetros normais do mercado de trabalho. É também um sector ainda pouco transparente para quem está fora, mas em que há a perceção de que há aspetos que têm de ser melhor regulados e em que se tem de garantir uma proteção melhor aos trabalhadores. Claramente, são trabalhadores com níveis de proteção tendencialmente muito inferiores àqueles que existem noutros segmentos do mercado de trabalho. Isto é muito típico de sectores emergentes. Há um debate que está a acontecer em vários países. Nalguns casos vão-se encontrando soluções a partir de soluções judiciais que vão existindo. Noutros casos tem havido propostas legislativas que vão sendo feitas. Gostaríamos que em Portugal o caminho seguido fosse o caminho de uma melhor regulação, sobretudo - e a grande orientação era essa - garantindo melhores condições de trabalho e mais direitos para estes trabalhadores.

No caso da decisão judicial espanhol recente, que reconhece as relações de trabalho dos estafetas da Glovo, o exemplo do governo espanhol será o de uma tentativa de garantir esse reconhecimento, mas com dificuldade em olhar para todo o tipo de plataformas. O governo português tem um levantamento, sabe o que pretende regular? Serão os trabalhadores de TVDE, serão também de outros serviços?

É preferível tentar encontrar uma regulação de todo este segmento do mercado de trabalho sem esperar por decisões judiciais que pudessem eventualmente um dia vir a existir, mas fazê-lo de maneira mais integrada, e, no fundo, tentando antecipar questões e problemas. Aliás, Portugal foi um dos primeiros países a avançar para a regulação daquilo que cá se chamou o TVDE, plataformas como a Uber de motoristas e afins. Estivemos relativamente à frente em relação a essa questão específica, e era importante continuar a acompanhar a evolução do mercado de trabalho e destas atividades e ter uma regulação sem esperar por um dia existirem eventuais decisões judiciais sobre casos em concreto. Não temos ainda uma posição final fechada sobre os contornos concretos da regulamentação que queremos propor. O que defendemos são dois princípios básicos: melhor regulação e mais transparência, e mais direitos e melhor proteção para os trabalhadores, seja em termos de condições de trabalho, segurança e saúde, proteção social. Por outro lado, defendemos que se devem aplicar a estes trabalhadores os mesmos princípios que se aplicam a outros. Quando objetivamente as condições em que prestam trabalho correspondem a um contrato de trabalho, ele deve ser reconhecido e deve existir. Se forem outros modelos mais flexíveis, que na verdade e no concreto da prestação de trabalho se revele que de facto há alguma autonomia dos trabalhadores, então poderá haver outro modelo de prestação de trabalho. Já foi esta a solução encontrada para o caso da Uber e dos TVDE.

Qual o universo para o qual se vai olhar?

É um universo muito difícil de estimar. Todos temos consciência que tem crescido, até pela visibilidade que têm, por exemplo, esses serviços de entrega de refeições, ou outras plataformas até menos visíveis. No caso dos TVDE, o que sabemos é que há cerca de oito mil operadores registados no IMT e aproximadamente 27 mil motoristas. Mas, depois, é muito difícil saber quantos estão em atividade, em que momentos. Uma das questões que pretendemos melhorar é esta questão da transparência do sistema. Foram dados passos muito importantes quando se criou o sistema de regulação de TVDE. O que é preciso agora é dar novos passos, aprender com o que foi melhor e o que foi pior. Nomeadamente, a questão da transparência de informação tem de ser melhorada para que este sector possa ser regulado como outros sectores da economia o foram no passado.

Eventualmente, este trabalho acabará por ser articulado com a questão da revisão da regulamentação do TVDE?

O que defendemos é que deve haver princípios comuns, porque hoje em dia o mundo das plataformas não se cinge à questão do transporte de passageiros. Mas, obviamente, há questões concretas, específicas, que devem ser tratadas em cada um dos tipos de atividades. No caso do transporte de passageiros, há evidentes questões que têm que ver com as qualificações das pessoas que operam, a responsabilidade que está envolvida num serviço de transporte de pessoas. Tudo isso começou a ser acautelado - no nosso ver, de forma adequada - num primeiro momento, quando foi feita a lei. Passado este tempo, temos algum tempo de aprendizagem, não só para esse sector específico, mas também porque todas estas plataformas ganharam uma dimensão e uma variedade maior de atividades do que tinham no passado.

Atualmente, a regulamentação TVDE prevê uma relação contratual entre operadores e os motoristas, mas não especifica que deve ser um contrato de trabalho. Esse é um dos aspetos que pode ser melhorado?

Sim, a regulamentação permite que haja aquilo que defendemos que deve ser o princípio básico, e que tem de se aplicar a qualquer trabalhador. Quando as condições correspondem a uma atividade subordinada, deve existir um contrato de trabalho. Caso as condições de prestação da atividade sejam de facto autónomas, pode haver uma outra relação que não é uma relação de contrato de trabalho. Esse é um princípio básico. Isso, na verdade, já representaria um avanço significativo. Sabemos que na esmagadora maioria, nos casos dos serviços de entrega de refeições e outros, não é esse o caso. Há uma relação laboral muito específica, muito autónoma e muito flexível. Seria um avanço grande e significativo no campo dos direitos. Tratando-se de uma atividade atípica, emergente, entre quem presta a atividade, aqueles que a ela recorrem, as plataformas, muito diferente daquilo que conhecíamos no passado, o que temos de fazer é reforçar esses mecanismo de reconhecimento dos contratos de trabalho, e permitir que mais facilmente, com maior solidez, se possa garantir que quem dever ter um contrato de trabalho tem acesso a essa forma de trabalho.

O Código do Trabalho já prevê o reconhecimento da relação laboral nessas situações.

Sim, mas na prática, tirando o caso TVDE, em que houve uma regulação para esse efeito, a perceção que existe - , mais uma vez, não é fácil ter dados sobre isto - é que para a esmagadora maioria das pessoas que prestam trabalho em plataformas a realidade não é o contrato de trabalho. É nessa direção que temos de nos movimentar. Mas, como digo, o que fizemos foi sinalizar estes grandes princípios, e esta orientação e prioridade que queremos dar a esta questão. A solução concreta vai decorrer daquele que for o caminho de diálogo e de auscultação com os diferentes parceiros, que é sempre importante para se chegar a uma boa solução.

Será reforçar o princípio de presunção do contrato de trabalho para estas plataformas?

Sendo uma relação mais atípica, é importante reforçar a ideia de que podem existir contratos de trabalho nestas plataformas. Os mecanismos de reconhecimento desse contrato de trabalho, quando ele exista, devem ser sólidos. No fundo, é progredir em várias direções na medida dos direitos das pessoas. Reforçar os mecanismos de reconhecimento dos contratos de trabalho quando eles são realidade. E, mesmo nos casos em que não haja contratos de trabalho, e se conclua que é uma relação flexível, muito autónoma, e que a pessoa não tem nenhum tipo de subordinação, que as pessoas têm mais direitos do ponto de vista da proteção social, da segurança e saúde no trabalho. Mesmo isso, hoje em dia, está muito pouco regulado, e tem claramente que ser.

Qual o calendário?

Nas próximas semanas será conhecida uma primeira versão do Livro Verde. Provavelmente, no mês de novembro. Será sujeito a discussão pública, e depois da discussão pública haverá uma versão final que o governo vai fazer.

A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, acompanhada por Miguel Cabrita, secretário de Estado Adjunto, do Trabalho e da Formação Profissional. RODRIGO ANTUNES/LUSA © LUSA

O governo assume o compromisso de regulamentar a atividade das plataformas, por forma a garantir "melhores condições e mais direitos aos trabalhadores" a elas afetos, "sem esperar por decisões judiciais", como afirma Miguel Cabrita, secretário de Estado do Trabalho.

Qual é o ponto de partido do governo na proposta de regulamentação do trabalho das plataformas digitais?

A questão das plataformas é muito importante. É algo que já vem de trás, mas que ganhou durante a pandemia uma visibilidade e uma relevância muito grandes. É um sector claramente crescente, sobre o qual há pouca informação disponível e que no seu modo de funcionamento foge muito aos parâmetros normais do mercado de trabalho. É também um sector ainda pouco transparente para quem está fora, mas em que há a perceção de que há aspetos que têm de ser melhor regulados e em que se tem de garantir uma proteção melhor aos trabalhadores. Claramente, são trabalhadores com níveis de proteção tendencialmente muito inferiores àqueles que existem noutros segmentos do mercado de trabalho. Isto é muito típico de sectores emergentes. Há um debate que está a acontecer em vários países. Nalguns casos vão-se encontrando soluções a partir de soluções judiciais que vão existindo. Noutros casos tem havido propostas legislativas que vão sendo feitas. Gostaríamos que em Portugal o caminho seguido fosse o caminho de uma melhor regulação, sobretudo - e a grande orientação era essa - garantindo melhores condições de trabalho e mais direitos para estes trabalhadores.

No caso da decisão judicial espanhol recente, que reconhece as relações de trabalho dos estafetas da Glovo, o exemplo do governo espanhol será o de uma tentativa de garantir esse reconhecimento, mas com dificuldade em olhar para todo o tipo de plataformas. O governo português tem um levantamento, sabe o que pretende regular? Serão os trabalhadores de TVDE, serão também de outros serviços?

É preferível tentar encontrar uma regulação de todo este segmento do mercado de trabalho sem esperar por decisões judiciais que pudessem eventualmente um dia vir a existir, mas fazê-lo de maneira mais integrada, e, no fundo, tentando antecipar questões e problemas. Aliás, Portugal foi um dos primeiros países a avançar para a regulação daquilo que cá se chamou o TVDE, plataformas como a Uber de motoristas e afins. Estivemos relativamente à frente em relação a essa questão específica, e era importante continuar a acompanhar a evolução do mercado de trabalho e destas atividades e ter uma regulação sem esperar por um dia existirem eventuais decisões judiciais sobre casos em concreto. Não temos ainda uma posição final fechada sobre os contornos concretos da regulamentação que queremos propor. O que defendemos são dois princípios básicos: melhor regulação e mais transparência, e mais direitos e melhor proteção para os trabalhadores, seja em termos de condições de trabalho, segurança e saúde, proteção social. Por outro lado, defendemos que se devem aplicar a estes trabalhadores os mesmos princípios que se aplicam a outros. Quando objetivamente as condições em que prestam trabalho correspondem a um contrato de trabalho, ele deve ser reconhecido e deve existir. Se forem outros modelos mais flexíveis, que na verdade e no concreto da prestação de trabalho se revele que de facto há alguma autonomia dos trabalhadores, então poderá haver outro modelo de prestação de trabalho. Já foi esta a solução encontrada para o caso da Uber e dos TVDE.

Qual o universo para o qual se vai olhar?

É um universo muito difícil de estimar. Todos temos consciência que tem crescido, até pela visibilidade que têm, por exemplo, esses serviços de entrega de refeições, ou outras plataformas até menos visíveis. No caso dos TVDE, o que sabemos é que há cerca de oito mil operadores registados no IMT e aproximadamente 27 mil motoristas. Mas, depois, é muito difícil saber quantos estão em atividade, em que momentos. Uma das questões que pretendemos melhorar é esta questão da transparência do sistema. Foram dados passos muito importantes quando se criou o sistema de regulação de TVDE. O que é preciso agora é dar novos passos, aprender com o que foi melhor e o que foi pior. Nomeadamente, a questão da transparência de informação tem de ser melhorada para que este sector possa ser regulado como outros sectores da economia o foram no passado.

Eventualmente, este trabalho acabará por ser articulado com a questão da revisão da regulamentação do TVDE?

O que defendemos é que deve haver princípios comuns, porque hoje em dia o mundo das plataformas não se cinge à questão do transporte de passageiros. Mas, obviamente, há questões concretas, específicas, que devem ser tratadas em cada um dos tipos de atividades. No caso do transporte de passageiros, há evidentes questões que têm que ver com as qualificações das pessoas que operam, a responsabilidade que está envolvida num serviço de transporte de pessoas. Tudo isso começou a ser acautelado - no nosso ver, de forma adequada - num primeiro momento, quando foi feita a lei. Passado este tempo, temos algum tempo de aprendizagem, não só para esse sector específico, mas também porque todas estas plataformas ganharam uma dimensão e uma variedade maior de atividades do que tinham no passado.

Atualmente, a regulamentação TVDE prevê uma relação contratual entre operadores e os motoristas, mas não especifica que deve ser um contrato de trabalho. Esse é um dos aspetos que pode ser melhorado?

Sim, a regulamentação permite que haja aquilo que defendemos que deve ser o princípio básico, e que tem de se aplicar a qualquer trabalhador. Quando as condições correspondem a uma atividade subordinada, deve existir um contrato de trabalho. Caso as condições de prestação da atividade sejam de facto autónomas, pode haver uma outra relação que não é uma relação de contrato de trabalho. Esse é um princípio básico. Isso, na verdade, já representaria um avanço significativo. Sabemos que na esmagadora maioria, nos casos dos serviços de entrega de refeições e outros, não é esse o caso. Há uma relação laboral muito específica, muito autónoma e muito flexível. Seria um avanço grande e significativo no campo dos direitos. Tratando-se de uma atividade atípica, emergente, entre quem presta a atividade, aqueles que a ela recorrem, as plataformas, muito diferente daquilo que conhecíamos no passado, o que temos de fazer é reforçar esses mecanismo de reconhecimento dos contratos de trabalho, e permitir que mais facilmente, com maior solidez, se possa garantir que quem dever ter um contrato de trabalho tem acesso a essa forma de trabalho.

O Código do Trabalho já prevê o reconhecimento da relação laboral nessas situações.

Sim, mas na prática, tirando o caso TVDE, em que houve uma regulação para esse efeito, a perceção que existe - , mais uma vez, não é fácil ter dados sobre isto - é que para a esmagadora maioria das pessoas que prestam trabalho em plataformas a realidade não é o contrato de trabalho. É nessa direção que temos de nos movimentar. Mas, como digo, o que fizemos foi sinalizar estes grandes princípios, e esta orientação e prioridade que queremos dar a esta questão. A solução concreta vai decorrer daquele que for o caminho de diálogo e de auscultação com os diferentes parceiros, que é sempre importante para se chegar a uma boa solução.

Será reforçar o princípio de presunção do contrato de trabalho para estas plataformas?

Sendo uma relação mais atípica, é importante reforçar a ideia de que podem existir contratos de trabalho nestas plataformas. Os mecanismos de reconhecimento desse contrato de trabalho, quando ele exista, devem ser sólidos. No fundo, é progredir em várias direções na medida dos direitos das pessoas. Reforçar os mecanismos de reconhecimento dos contratos de trabalho quando eles são realidade. E, mesmo nos casos em que não haja contratos de trabalho, e se conclua que é uma relação flexível, muito autónoma, e que a pessoa não tem nenhum tipo de subordinação, que as pessoas têm mais direitos do ponto de vista da proteção social, da segurança e saúde no trabalho. Mesmo isso, hoje em dia, está muito pouco regulado, e tem claramente que ser.

Qual o calendário?

Nas próximas semanas será conhecida uma primeira versão do Livro Verde. Provavelmente, no mês de novembro. Será sujeito a discussão pública, e depois da discussão pública haverá uma versão final que o governo vai fazer.

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