portugal dos pequeninos

07-05-2020
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Quando andava na universidade, lembro-me de colegas - rapazes e raparigas - que se dedicavam nas horas vagas a derramar caridade cristã no bairro pobre da Curraleira, em Lisboa. Eram quase sempre “betas” e “betos”, relativamente bem nascidos, uns, filhos de “novos ricos”, outros, todos devidamente industriados para a função pelo padre “vip” João Seabra. Esses rapazes e essas raparigas devem ser hoje homens e mulheres casados, de preferência com “famílias numerosas” e muito provavelmente ainda atraídos pelo “voluntariado” da adolescência. O estigma do “pobrezinho” sempre impressionou as classes ditas abastadas e, mesmo, as remediadas. Dormem sempre mais sossegadas uma vez praticado o “bem”. Não lhes interessa propriamente a irradicação da pobreza, a qual, a acontecer, as privaria da oportunidade de exibirem a sua infinita bondade e “consciência social”. Basta ouvir a dra. Isabel Jonet, do Banco Alimentar, para ficarmos esclarecidos. Neste contexto, Cavaco Silva tem razões para estar satisfeito. O seu “roteiro para a inclusão” foi bem acolhido por toda a gente, desde os que respiraram aliviados pelo facto de o Presidente se ter “esquecido” da crise, até aos que piedosamente crêem nas virtudes permanentes do “assistencialismo”. Não foi, aliás, por acaso que o “Expresso da Meia-noite” da semana passada acolheu o frade “progressista” Melícias para perorar sobre a “caritativismo” democrático. Nesta matéria, de Manuela Eanes a Maria José Ritta, passando por Guterres, não evoluímos muito desde os tempos da sra. D. Cecília Supico Pinto, a ilustre presidente do Movimento Nacional Feminino do dr. Salazar. Ao escolher um tema pacífico e relativamente “redondo” para estrear a sua versão das estafadas presidências abertas dos antecessores, Cavaco Silva procura “fugir” ao inevitável. E o inevitável chama-se economia e sanidade das finanças públicas sem as quais todos os “planos” e “roteiros” para a inclusão social não passam de vaga e generosa retórica. Para já, os indigentes, com ou sem abrigo, os velhinhos, as mulheres humilhadas e as criancinhas abandonadas, todos conhecidos pelo jargão de "mais desprotegidos" ou “mais carenciados”, têm garantido um batalhão de técnicos, de comentadores e de políticos para velar por eles. O pior é se, depois de produzidos os indispensáveis relatórios e de consumadas as "visitas" mediáticas aos abismos destas vidas, fica tudo mais ou menos na mesma. Aí, e definitivamente, o “roteiro” terá se ser, como lhe compete desde o ínicio, político.(publicado no Independente)


Quando andava na universidade, lembro-me de colegas - rapazes e raparigas - que se dedicavam nas horas vagas a derramar caridade cristã no bairro pobre da Curraleira, em Lisboa. Eram quase sempre “betas” e “betos”, relativamente bem nascidos, uns, filhos de “novos ricos”, outros, todos devidamente industriados para a função pelo padre “vip” João Seabra. Esses rapazes e essas raparigas devem ser hoje homens e mulheres casados, de preferência com “famílias numerosas” e muito provavelmente ainda atraídos pelo “voluntariado” da adolescência. O estigma do “pobrezinho” sempre impressionou as classes ditas abastadas e, mesmo, as remediadas. Dormem sempre mais sossegadas uma vez praticado o “bem”. Não lhes interessa propriamente a irradicação da pobreza, a qual, a acontecer, as privaria da oportunidade de exibirem a sua infinita bondade e “consciência social”. Basta ouvir a dra. Isabel Jonet, do Banco Alimentar, para ficarmos esclarecidos. Neste contexto, Cavaco Silva tem razões para estar satisfeito. O seu “roteiro para a inclusão” foi bem acolhido por toda a gente, desde os que respiraram aliviados pelo facto de o Presidente se ter “esquecido” da crise, até aos que piedosamente crêem nas virtudes permanentes do “assistencialismo”. Não foi, aliás, por acaso que o “Expresso da Meia-noite” da semana passada acolheu o frade “progressista” Melícias para perorar sobre a “caritativismo” democrático. Nesta matéria, de Manuela Eanes a Maria José Ritta, passando por Guterres, não evoluímos muito desde os tempos da sra. D. Cecília Supico Pinto, a ilustre presidente do Movimento Nacional Feminino do dr. Salazar. Ao escolher um tema pacífico e relativamente “redondo” para estrear a sua versão das estafadas presidências abertas dos antecessores, Cavaco Silva procura “fugir” ao inevitável. E o inevitável chama-se economia e sanidade das finanças públicas sem as quais todos os “planos” e “roteiros” para a inclusão social não passam de vaga e generosa retórica. Para já, os indigentes, com ou sem abrigo, os velhinhos, as mulheres humilhadas e as criancinhas abandonadas, todos conhecidos pelo jargão de "mais desprotegidos" ou “mais carenciados”, têm garantido um batalhão de técnicos, de comentadores e de políticos para velar por eles. O pior é se, depois de produzidos os indispensáveis relatórios e de consumadas as "visitas" mediáticas aos abismos destas vidas, fica tudo mais ou menos na mesma. Aí, e definitivamente, o “roteiro” terá se ser, como lhe compete desde o ínicio, político.(publicado no Independente)

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