“Parece David contra Golias.” A reportagem entre quem tenta travar o furo de gás na Bajouca

13-12-2019
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De repente, e chegando a um cruzamento, uma parte da fila separa-se e segue por uma estrada diferente. Fazemos o mesmo. Durante algum tempo, ainda conseguimos ouvir as vozes e os cânticos da manifestação, “não à prospeção, furo não”, e os tambores a marcar o ritmo. Afinal não nos afastámos assim tanto, estão quase aqui ao lado, pensamos, mas ao fim de algum tempo já só ouvimos o barulho dos paus a estalar sob os nossos pés. Para onde é que estamos a ir, afinal? Os que caminham mais atrás dizem não saber, respondem de forma evasiva ou não respondem de todo, mas há um dos ativistas que, enchendo-se de comiseração, ou percebendo que não haveria forma de manter o segredo durante muito mais tempo, desmonta a trama. “Sim, estamos a dirigir-nos para o terreno da Australis e somos um dos grupo que vai ocupá-lo.” Nos braços, todos têm escrito um número. “É o número do nosso advogado.“ A ocupação do terreno, na freguesia da Bajouca (concelho de Leiria), onde a empresa australiana Australis Oil & Gas pretende fazer um furo de prospeção de gás natural — um dos primeiros dos oito que a empresa tem contratualizados com o Estado português — fora anunciada aos órgãos de comunicação social durante a semana. Aconteceu no passado sábado. “Vamos ocupar os terrenos que a empresa já adquiriu para fazer a prospeção”, afirmou ao Expresso, na quarta-feira, João Costa, porta-voz da iniciativa “Camp-in-Gás”, acampamento de ação contra gás fóssil e pela justiça climática. As tendas foram montadas na quarta-feira e no domingo vão ser desmontadas. O programa incluía oficinas, workshops, sessões de yoga e meditação, formações e debates, sendo muitas destas atividades realizadas por membros da comunidade local, “preocupada com a possibilidade de se abrir um furo de prospeção ao pé das suas casas”, dizia também João Costa. E, de certo modo, tinha razão. “Se se conseguiu noutros lados, porque não havemos de conseguir aqui também?” Já passam das 9h30, hora a que os ativistas acampados deveriam chegar ao centro da freguesia, mas ninguém parece ter pressa. Há pessoas a chegar e ainda são muitas as cadeiras livres na esplanada do café do largo. Um grupo de quatro pessoas mantém-se parado, olhando em volta com curiosidade, à espera, mas só uma quer falar. “Porque aqui estou? Porque acho que uma exploração destas não é boa para a nossa zona”, começa por dizer Alcino Pedrosa, de 37 anos, oleiro na Bajouca. O terreno que Australis Oil & Gas adquiriu — comprou-o ao dono de um supermercado na freguesia — tem 6,8 hectares e fica a “200 metros” de algumas habitações (explicou João Costa na conversa tida durante a semana). “Se querem explorar gás, não venham para cá, há outros lugares para o fazer que não no meio da população e das nossas terras”, diz ainda Alcino Pedrosa, a quem choca o facto do “Estado português ter assinado um contrato e a população nem sequer ter sido ouvida”. “Talvez assim, com uma manifestação destas, sejamos ouvidos. Se se conseguiu noutros lados, porque não havemos de conseguir aqui também?”.

“Há tanto terreno abandonado por onde ninguém passa, podiam fazer lá e não aqui, no meio de uma aldeia. A empresa tem falado em benefícios para a terra, mas são mínimos. Isso não justifica o que pretendem fazer”, diz Alcino Pedrosa, recordando a sessão de esclarecimentos que a empresa australiana organizou no dia 29 de janeiro, no salão da ABAD (Associação Bajouquense para o Desenvolvimento) e em que Ian Lusted, o diretor-geral da Australis, esteve presente. “Entraram a dizer que era tudo muito bom, que a exploração de gás só iria trazer benefícios, mas as pessoas leem notícias e pesquisam na Internet e sabem que não é assim tão bom como dizem”, continua. A uns metros, outro grupo está à conversa enquanto, atrás, uma bola vai sendo chutada contra a rede que delimita o campo de futebol. Arsénio Gomes, 46 anos e ladrilhador, e Jairo Dias, 34 anos e técnico de manutenção, também estiveram presentes na sessão de esclarecimentos da Australis Oil & Gas. “Eles passam a vida a contradizer-se. O Ian Lusted trazia o tema bem estudado mas quando se pedia mais informação, ele não abria a boca. Só dizia que era tudo muito bom, que era um espectáculo. Até prometeu abastecer a freguesia de água no caso de alguma coisa correr mal e houver uma contaminação, mas nós não queremos a água dele para nada. Queremos viver em paz na nossa terra”, diz Arsénio Gomes. Jairo Dias aproveita a deixa, e conta a rir: “Ele passou quatro horas a dizer que não havia risco. Ao fim dessas horas, lá admitiu que havia um risco mínimo, e as pessoas levantaram-se e bateram palmas.” — Ele achava que isto era a Austrália e que as pessoas às onze iam para a cama, mas correu-lhe mal porque às duas da manhã ainda estávamos lá todos. — A tradutora que lá estava às vezes nem traduzia exatamente o que ele dizia, quer dizer, traduzia, mas atenuava, para a população não ficar furiosa — continua Jairo. — Não temos nada contra ele. É bem-vindo para beber café, e até já lhe disse que pode vir comer com a gente, agora furar é que não. Que esqueça! A reunião do dia 29 de janeiro não terminou bem, alguém furou os pneus dos dois carros em que a equipa da Australis tinha chegado a Bajouca, conforme noticiou o “Jornal de Leiria”. Mas Arsénio Gomes não contém a piada: “Oh, se calhar foram eles próprios, não? Eles é que são especialistas em furos, não nós”. logo depois, consciente de si. “A gente tem de se rir um bocado”. Nem um nem outro compreendem a decisão do Estado português de assinar um contrato para exploração de combustíveis fósseis, quando a União Europeia se comprometeu a reduzir as emissões de dióxido de carbono em 40% até 2030 e ser neutra em carbono em 2050, e quando as metas do atual Governo ainda são mais ambiciosas do que essas. “Há muita má fé aqui. E quem supostamente deveria defender os nossos direitos, que é o governo, não está a fazê-lo. Basta ver o que está a acontecer com o Pinhal de Leiria, já aqui ao lado. O Governo prometeu reflorestá-lo mas ainda não fez nada”.

Jairo Dias vive a 500 metros do terreno adquirido pela empresa australiano e, por isso, tem preocupações redobradas. “Os riscos ambientais são enormes, os gastos com água vão ser enormes, os poços ali à volta, de onde se retira água para consumo e para a agricultura, podem ficar contaminados.” O contrato da Australis com o Estado foi suspenso para a realização do estudo de impacto ambiental, que determinará se o furo de prospeção avança ou não. Arsénio Gomes quase aposta a vida num parecer positivo, mas isso não significa, pelo menos para si, que o furo seja feito. “Vamos fazer frente a quem vier para aqui furar. Se vai resultar? Não faço ideia, mas vamos lutar até ao fim. Se quiserem fazer o furo vão ter de nos remover de lá. Se nos quiserem calar, vão ter de nos mandar para Guatánamo”. Fala sobre as filhas, pensa nas filhas, “que não merecem o planeta que vamos deixar-lhes”. Do largo para a divisão das filas Os ativistas chegam finalmente ao largo. Não conseguimos contá-los, mas aparentam ultrapassar a centena. Vêm a cantar, dançar, uns tocam tambor, outros erguem bandeiras, cartazes, faixas e quase todos trazem uma planta na mão. Eis uma pequena lista não definitiva das mensagens que ali se leem: “Justiça climática já”, “Os nossos valores estão na natureza”, “Gás nem na Bajouca nem em lado nenhum”, “O gás não traz paz.” Há sobretudo jovens, uns, aliás, muito jovens, surpreendentemente jovens, mas também pessoas mais velhas. Sofia Alves está, claramente, entre os primeiros. Tem 15 anos e veio de Sintra para a Bajouca na segunda-feira para ajudar a montar o acampamento, uma decisão que, conhecendo o seu percurso, tomaríamos como previsível. Participou nas duas greve climáticas que se realizaram em Portugal e no mundo, a 15 de março e a 24 de maio. “Os meus pais vivem numa comunidade ambientalista, estamos perto de uma quinta biológica. Somos assim para o ecofreaks, por assim dizer. Portanto, há vários anos que as questões ambientais me preocupam, mas também é importante consciencializar os outros. É por isso que estou aqui”. Essa consciência, diz, em parte já existe, “sobretudo entre as novas gerações, graças à partilha facilitada pelas redes sociais”, mas é preciso fazer mais. No caso desta manifestação, o objetivo é claro: “Não ter quaisquer furos, porque a partir do momento em que eles são abertos, é muito mais difícil fechá-los”. No acampamento estiveram presentes ativistas de outros países que já participaram em várias manifestações e ações de desobediência civil como a ocupação de terrenos privados planeada. Sofia Alves começou por fugir às questões sobre a ocupação que se seguiria do terreno da Australis. “Pensava que era segredo. Mas é verdade, aprendemos sobre técnicas de manifestações e tivemos briefings legais. Estamos todos conscientes dos riscos que estamos a correr e sabemos que podemos ser detidos e levados para a esquadra”. Nada que a preocupe muito, na verdade. “Sim, vou participar na ocupação, o meu pai também está cá e, embora não vá entrar, concordou que eu o fizesse”.

De repente, e chegando a um cruzamento, uma parte da fila separa-se e segue por uma estrada diferente. Fazemos o mesmo. Durante algum tempo, ainda conseguimos ouvir as vozes e os cânticos da manifestação, “não à prospeção, furo não”, e os tambores a marcar o ritmo. Afinal não nos afastámos assim tanto, estão quase aqui ao lado, pensamos, mas ao fim de algum tempo já só ouvimos o barulho dos paus a estalar sob os nossos pés. Para onde é que estamos a ir, afinal? Os que caminham mais atrás dizem não saber, respondem de forma evasiva ou não respondem de todo, mas há um dos ativistas que, enchendo-se de comiseração, ou percebendo que não haveria forma de manter o segredo durante muito mais tempo, desmonta a trama. “Sim, estamos a dirigir-nos para o terreno da Australis e somos um dos grupo que vai ocupá-lo.” Nos braços, todos têm escrito um número. “É o número do nosso advogado.“ A ocupação do terreno, na freguesia da Bajouca (concelho de Leiria), onde a empresa australiana Australis Oil & Gas pretende fazer um furo de prospeção de gás natural — um dos primeiros dos oito que a empresa tem contratualizados com o Estado português — fora anunciada aos órgãos de comunicação social durante a semana. Aconteceu no passado sábado. “Vamos ocupar os terrenos que a empresa já adquiriu para fazer a prospeção”, afirmou ao Expresso, na quarta-feira, João Costa, porta-voz da iniciativa “Camp-in-Gás”, acampamento de ação contra gás fóssil e pela justiça climática. As tendas foram montadas na quarta-feira e no domingo vão ser desmontadas. O programa incluía oficinas, workshops, sessões de yoga e meditação, formações e debates, sendo muitas destas atividades realizadas por membros da comunidade local, “preocupada com a possibilidade de se abrir um furo de prospeção ao pé das suas casas”, dizia também João Costa. E, de certo modo, tinha razão. “Se se conseguiu noutros lados, porque não havemos de conseguir aqui também?” Já passam das 9h30, hora a que os ativistas acampados deveriam chegar ao centro da freguesia, mas ninguém parece ter pressa. Há pessoas a chegar e ainda são muitas as cadeiras livres na esplanada do café do largo. Um grupo de quatro pessoas mantém-se parado, olhando em volta com curiosidade, à espera, mas só uma quer falar. “Porque aqui estou? Porque acho que uma exploração destas não é boa para a nossa zona”, começa por dizer Alcino Pedrosa, de 37 anos, oleiro na Bajouca. O terreno que Australis Oil & Gas adquiriu — comprou-o ao dono de um supermercado na freguesia — tem 6,8 hectares e fica a “200 metros” de algumas habitações (explicou João Costa na conversa tida durante a semana). “Se querem explorar gás, não venham para cá, há outros lugares para o fazer que não no meio da população e das nossas terras”, diz ainda Alcino Pedrosa, a quem choca o facto do “Estado português ter assinado um contrato e a população nem sequer ter sido ouvida”. “Talvez assim, com uma manifestação destas, sejamos ouvidos. Se se conseguiu noutros lados, porque não havemos de conseguir aqui também?”.

“Há tanto terreno abandonado por onde ninguém passa, podiam fazer lá e não aqui, no meio de uma aldeia. A empresa tem falado em benefícios para a terra, mas são mínimos. Isso não justifica o que pretendem fazer”, diz Alcino Pedrosa, recordando a sessão de esclarecimentos que a empresa australiana organizou no dia 29 de janeiro, no salão da ABAD (Associação Bajouquense para o Desenvolvimento) e em que Ian Lusted, o diretor-geral da Australis, esteve presente. “Entraram a dizer que era tudo muito bom, que a exploração de gás só iria trazer benefícios, mas as pessoas leem notícias e pesquisam na Internet e sabem que não é assim tão bom como dizem”, continua. A uns metros, outro grupo está à conversa enquanto, atrás, uma bola vai sendo chutada contra a rede que delimita o campo de futebol. Arsénio Gomes, 46 anos e ladrilhador, e Jairo Dias, 34 anos e técnico de manutenção, também estiveram presentes na sessão de esclarecimentos da Australis Oil & Gas. “Eles passam a vida a contradizer-se. O Ian Lusted trazia o tema bem estudado mas quando se pedia mais informação, ele não abria a boca. Só dizia que era tudo muito bom, que era um espectáculo. Até prometeu abastecer a freguesia de água no caso de alguma coisa correr mal e houver uma contaminação, mas nós não queremos a água dele para nada. Queremos viver em paz na nossa terra”, diz Arsénio Gomes. Jairo Dias aproveita a deixa, e conta a rir: “Ele passou quatro horas a dizer que não havia risco. Ao fim dessas horas, lá admitiu que havia um risco mínimo, e as pessoas levantaram-se e bateram palmas.” — Ele achava que isto era a Austrália e que as pessoas às onze iam para a cama, mas correu-lhe mal porque às duas da manhã ainda estávamos lá todos. — A tradutora que lá estava às vezes nem traduzia exatamente o que ele dizia, quer dizer, traduzia, mas atenuava, para a população não ficar furiosa — continua Jairo. — Não temos nada contra ele. É bem-vindo para beber café, e até já lhe disse que pode vir comer com a gente, agora furar é que não. Que esqueça! A reunião do dia 29 de janeiro não terminou bem, alguém furou os pneus dos dois carros em que a equipa da Australis tinha chegado a Bajouca, conforme noticiou o “Jornal de Leiria”. Mas Arsénio Gomes não contém a piada: “Oh, se calhar foram eles próprios, não? Eles é que são especialistas em furos, não nós”. logo depois, consciente de si. “A gente tem de se rir um bocado”. Nem um nem outro compreendem a decisão do Estado português de assinar um contrato para exploração de combustíveis fósseis, quando a União Europeia se comprometeu a reduzir as emissões de dióxido de carbono em 40% até 2030 e ser neutra em carbono em 2050, e quando as metas do atual Governo ainda são mais ambiciosas do que essas. “Há muita má fé aqui. E quem supostamente deveria defender os nossos direitos, que é o governo, não está a fazê-lo. Basta ver o que está a acontecer com o Pinhal de Leiria, já aqui ao lado. O Governo prometeu reflorestá-lo mas ainda não fez nada”.

Jairo Dias vive a 500 metros do terreno adquirido pela empresa australiano e, por isso, tem preocupações redobradas. “Os riscos ambientais são enormes, os gastos com água vão ser enormes, os poços ali à volta, de onde se retira água para consumo e para a agricultura, podem ficar contaminados.” O contrato da Australis com o Estado foi suspenso para a realização do estudo de impacto ambiental, que determinará se o furo de prospeção avança ou não. Arsénio Gomes quase aposta a vida num parecer positivo, mas isso não significa, pelo menos para si, que o furo seja feito. “Vamos fazer frente a quem vier para aqui furar. Se vai resultar? Não faço ideia, mas vamos lutar até ao fim. Se quiserem fazer o furo vão ter de nos remover de lá. Se nos quiserem calar, vão ter de nos mandar para Guatánamo”. Fala sobre as filhas, pensa nas filhas, “que não merecem o planeta que vamos deixar-lhes”. Do largo para a divisão das filas Os ativistas chegam finalmente ao largo. Não conseguimos contá-los, mas aparentam ultrapassar a centena. Vêm a cantar, dançar, uns tocam tambor, outros erguem bandeiras, cartazes, faixas e quase todos trazem uma planta na mão. Eis uma pequena lista não definitiva das mensagens que ali se leem: “Justiça climática já”, “Os nossos valores estão na natureza”, “Gás nem na Bajouca nem em lado nenhum”, “O gás não traz paz.” Há sobretudo jovens, uns, aliás, muito jovens, surpreendentemente jovens, mas também pessoas mais velhas. Sofia Alves está, claramente, entre os primeiros. Tem 15 anos e veio de Sintra para a Bajouca na segunda-feira para ajudar a montar o acampamento, uma decisão que, conhecendo o seu percurso, tomaríamos como previsível. Participou nas duas greve climáticas que se realizaram em Portugal e no mundo, a 15 de março e a 24 de maio. “Os meus pais vivem numa comunidade ambientalista, estamos perto de uma quinta biológica. Somos assim para o ecofreaks, por assim dizer. Portanto, há vários anos que as questões ambientais me preocupam, mas também é importante consciencializar os outros. É por isso que estou aqui”. Essa consciência, diz, em parte já existe, “sobretudo entre as novas gerações, graças à partilha facilitada pelas redes sociais”, mas é preciso fazer mais. No caso desta manifestação, o objetivo é claro: “Não ter quaisquer furos, porque a partir do momento em que eles são abertos, é muito mais difícil fechá-los”. No acampamento estiveram presentes ativistas de outros países que já participaram em várias manifestações e ações de desobediência civil como a ocupação de terrenos privados planeada. Sofia Alves começou por fugir às questões sobre a ocupação que se seguiria do terreno da Australis. “Pensava que era segredo. Mas é verdade, aprendemos sobre técnicas de manifestações e tivemos briefings legais. Estamos todos conscientes dos riscos que estamos a correr e sabemos que podemos ser detidos e levados para a esquadra”. Nada que a preocupe muito, na verdade. “Sim, vou participar na ocupação, o meu pai também está cá e, embora não vá entrar, concordou que eu o fizesse”.

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