Uma breve história da ficção portuguesa: Sapiens novelensis x Sapiens seriensis

22-04-2020
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O título é obviamente uma referência e uma modesta homenagem ao “best seller” do israelita Yuval Noah Harari: Uma breve história da humanidade – Sapiens. Mas já lá vamos.

Se a coqueluche do mercado audiovisual fossem as telenovelas, Portugal estaria na linha da frente de produção, encomendas e presença nas grandes plataformas de distribuição globais (Netflix, HBO, Amazon Prime…). Acho que hoje já ninguém duvida disso, depois dos prémios internacionais conquistados e do elevado nível de produção no género em nosso país, só superado pela gigante brasileira Rede Globo e talvez pela mexicana Televisa. O grande problema é que o formato estrela mundial são as séries…

Vem isto a propósito daquilo que foi discutido, na última quinta-feira, no CCB em Lisboa, durante o 6º Encontro de Produtores promovido e muito bem organizado pela APIT (Associação de Produtores Independentes de Televisão).

Ouvimos produtores, e até agentes políticos, clamar que Portugal vive neste momento – pasme-se! – a sua “era de ouro na ficção televisiva”. Assim, com todas as letras. Menos mal que anotamos também divergências entre os próprios pares: produtores e políticos.

Estou com os que reconhecem existir ainda um longo caminho a percorrer. Acredito no voluntarismo, mas há que saber onde estamos, de onde viemos, quem somos e o conteúdo que temos à frente.

Segundo Yuval Harari, “a força das civilizações está na sua capacidade de criar ficções”. Tracemos um paralelo e consideremos por hipótese que as séries são uma categoria da ficção que pertencem a civilizações mais avançadas do que a das novelas. Sabe-se também que os humanos surgiram há milhões de anos, mas que nós, os homo sapiens, aparecemos há cerca de 200 mil anos. Durante a maior parte desse tempo, convivemos com os nossos irmãos neandertais, erectus etc. Mas foi o Sapiens quem conquistou o mundo graças à sua linguagem, mas sobretudo àquela capacidade única de fazer ficção, ou seja, imaginar situações, criar e acreditar em coisas que nunca existiram.

Ora, certamente já perceberam onde quero chegar. Nós, portugueses, seríamos os neandertais de uma savana altamente agressiva dominada pelos sapiens americanos e de outros paragens, algumas aqui mesmo ao lado. Dados para reflexão:

70% das séries consumidas no Netflix são de origem americana.

Em França, o Netflix já é o 5º “broadcaster” (com séries francesas à mistura).

O Netflix inaugurou um Centro de Produção Europeu em Madrid.

O Netflix vai investir 20 mil milhões de euros em 2020 em conteúdos (gráfico).

Já inúmeros países do mundo beneficiam desse “festim” audiovisual. Mas quando irá Portugal tornar-se também um predador nesse ecossistema tão rico e cheio de oportunidades? Quando é que uma plataforma de streaming vai investir em conteúdos originais locais?

Segundo o próprio secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média, Nuno Artur Silva, no seu discurso de fecho do Encontro, “será um longo caminho convencer o Netflix a fazer ficção portuguesa”. Para o secretário de Estado, não somos encarados como “players” desse campeonato. Em contraposição até com Leis, Diretivas e Obrigações que forcem as grandes plataformas a cumprir quotas locais, o Secretário aponta um caminho: a co-produção. Cada vez mais em voga no mercado, Artur Silva dá o exemplo dos escandinavos, que sempre se juntaram para produzir séries de excelência. “Temos que encontrar a nossa Escandinávia”, conclui.

E porque não somos vistos como sapiens nessa imensa savana de bilhões? Os motivos são dos mais variados. Mas vamos considerar o mais trivial, embora não menos importante: na sua generalidade, as séries americanas, sobretudo, mas também as de outros países são melhores do que as nossas. Ponto.

Olhemos para os nossos “hermanos” de savana Ibérica, os homo espanholis, um exemplo frequentemente citado e que não foi ignorado durante o Encontro de quinta-feira passada. Enchemos a boca para dizer que a série espanhola “A Casa de Papel” chegou lá! Onde queremos. Onde almejamos. Se os espanhóis conseguiram, porque é que nós não, tão perto que estamos geograficamente… Ora, voltamos ao título: convivemos todos geograficamente, mas uns são os sapiens novelensis e outros os serienses.

Coincidentemente, iniciei meu percurso profissional em televisão em Espanha, onde tive a oportunidade de assistir ao nascimento de uma escola de dramaturgia, sobretudo de escrita, com “Médico de Família”, “Jornalistas”, “7 Vidas”, “Os Serrano”… Há 25 anos. 1995. A grande precursora dessa longa caminhada civilizacional no mundo das séries em Espanha terá sido “Farmácia de Guardia”, formato que estreou nos idos de 1991 e transformou-se num acontecimento social e sucesso de audiência. Esse mesmo grupo de Produtores, Guionistas, Diretores, Realizadores são os que agora produziram fenómenos globais como “A Casa de Papel”, “Vis-a-Vis”, “Elite”… Perspectivemos. Os “nuestros hermanos” estão a produzir séries de forma sustentada há quase três décadas… autênticos seriensis.

Precisamos de muito mais do que voluntarismo. É preciso tempo. É preciso fazer. Investir. É preciso caminhar, fracassar, vencer, morrer e matar na savana.

Acredito que a única forma de o conseguirmos será a través do apoio e do investimento das FTA em formatos mais elaborados como o são as séries. Leia-se também onerosos!

A RTP1 vem dando sinais mais consistentes dessa aposta. SIC e TVI definitivamente não abandonarão as novelas, mas é importante que sintam o apelo e o conforto dos espectadores. Mas sobretudo que encontrem formas de financiamento que lhes permitam correr o risco de atravessar esse território hostil.

Guionistas, produtores, realizadores, canais. Todos precisamos de uma política verdadeiramente sustentável de forma a conseguirmos dar o tal passo civilizacional para semear o gene do homo serienses entre nós, os homo novelensis, que sem dúvida alguma ainda dominaremos durante muito anos a terra portucalis.

O título é obviamente uma referência e uma modesta homenagem ao “best seller” do israelita Yuval Noah Harari: Uma breve história da humanidade – Sapiens. Mas já lá vamos.

Se a coqueluche do mercado audiovisual fossem as telenovelas, Portugal estaria na linha da frente de produção, encomendas e presença nas grandes plataformas de distribuição globais (Netflix, HBO, Amazon Prime…). Acho que hoje já ninguém duvida disso, depois dos prémios internacionais conquistados e do elevado nível de produção no género em nosso país, só superado pela gigante brasileira Rede Globo e talvez pela mexicana Televisa. O grande problema é que o formato estrela mundial são as séries…

Vem isto a propósito daquilo que foi discutido, na última quinta-feira, no CCB em Lisboa, durante o 6º Encontro de Produtores promovido e muito bem organizado pela APIT (Associação de Produtores Independentes de Televisão).

Ouvimos produtores, e até agentes políticos, clamar que Portugal vive neste momento – pasme-se! – a sua “era de ouro na ficção televisiva”. Assim, com todas as letras. Menos mal que anotamos também divergências entre os próprios pares: produtores e políticos.

Estou com os que reconhecem existir ainda um longo caminho a percorrer. Acredito no voluntarismo, mas há que saber onde estamos, de onde viemos, quem somos e o conteúdo que temos à frente.

Segundo Yuval Harari, “a força das civilizações está na sua capacidade de criar ficções”. Tracemos um paralelo e consideremos por hipótese que as séries são uma categoria da ficção que pertencem a civilizações mais avançadas do que a das novelas. Sabe-se também que os humanos surgiram há milhões de anos, mas que nós, os homo sapiens, aparecemos há cerca de 200 mil anos. Durante a maior parte desse tempo, convivemos com os nossos irmãos neandertais, erectus etc. Mas foi o Sapiens quem conquistou o mundo graças à sua linguagem, mas sobretudo àquela capacidade única de fazer ficção, ou seja, imaginar situações, criar e acreditar em coisas que nunca existiram.

Ora, certamente já perceberam onde quero chegar. Nós, portugueses, seríamos os neandertais de uma savana altamente agressiva dominada pelos sapiens americanos e de outros paragens, algumas aqui mesmo ao lado. Dados para reflexão:

70% das séries consumidas no Netflix são de origem americana.

Em França, o Netflix já é o 5º “broadcaster” (com séries francesas à mistura).

O Netflix inaugurou um Centro de Produção Europeu em Madrid.

O Netflix vai investir 20 mil milhões de euros em 2020 em conteúdos (gráfico).

Já inúmeros países do mundo beneficiam desse “festim” audiovisual. Mas quando irá Portugal tornar-se também um predador nesse ecossistema tão rico e cheio de oportunidades? Quando é que uma plataforma de streaming vai investir em conteúdos originais locais?

Segundo o próprio secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média, Nuno Artur Silva, no seu discurso de fecho do Encontro, “será um longo caminho convencer o Netflix a fazer ficção portuguesa”. Para o secretário de Estado, não somos encarados como “players” desse campeonato. Em contraposição até com Leis, Diretivas e Obrigações que forcem as grandes plataformas a cumprir quotas locais, o Secretário aponta um caminho: a co-produção. Cada vez mais em voga no mercado, Artur Silva dá o exemplo dos escandinavos, que sempre se juntaram para produzir séries de excelência. “Temos que encontrar a nossa Escandinávia”, conclui.

E porque não somos vistos como sapiens nessa imensa savana de bilhões? Os motivos são dos mais variados. Mas vamos considerar o mais trivial, embora não menos importante: na sua generalidade, as séries americanas, sobretudo, mas também as de outros países são melhores do que as nossas. Ponto.

Olhemos para os nossos “hermanos” de savana Ibérica, os homo espanholis, um exemplo frequentemente citado e que não foi ignorado durante o Encontro de quinta-feira passada. Enchemos a boca para dizer que a série espanhola “A Casa de Papel” chegou lá! Onde queremos. Onde almejamos. Se os espanhóis conseguiram, porque é que nós não, tão perto que estamos geograficamente… Ora, voltamos ao título: convivemos todos geograficamente, mas uns são os sapiens novelensis e outros os serienses.

Coincidentemente, iniciei meu percurso profissional em televisão em Espanha, onde tive a oportunidade de assistir ao nascimento de uma escola de dramaturgia, sobretudo de escrita, com “Médico de Família”, “Jornalistas”, “7 Vidas”, “Os Serrano”… Há 25 anos. 1995. A grande precursora dessa longa caminhada civilizacional no mundo das séries em Espanha terá sido “Farmácia de Guardia”, formato que estreou nos idos de 1991 e transformou-se num acontecimento social e sucesso de audiência. Esse mesmo grupo de Produtores, Guionistas, Diretores, Realizadores são os que agora produziram fenómenos globais como “A Casa de Papel”, “Vis-a-Vis”, “Elite”… Perspectivemos. Os “nuestros hermanos” estão a produzir séries de forma sustentada há quase três décadas… autênticos seriensis.

Precisamos de muito mais do que voluntarismo. É preciso tempo. É preciso fazer. Investir. É preciso caminhar, fracassar, vencer, morrer e matar na savana.

Acredito que a única forma de o conseguirmos será a través do apoio e do investimento das FTA em formatos mais elaborados como o são as séries. Leia-se também onerosos!

A RTP1 vem dando sinais mais consistentes dessa aposta. SIC e TVI definitivamente não abandonarão as novelas, mas é importante que sintam o apelo e o conforto dos espectadores. Mas sobretudo que encontrem formas de financiamento que lhes permitam correr o risco de atravessar esse território hostil.

Guionistas, produtores, realizadores, canais. Todos precisamos de uma política verdadeiramente sustentável de forma a conseguirmos dar o tal passo civilizacional para semear o gene do homo serienses entre nós, os homo novelensis, que sem dúvida alguma ainda dominaremos durante muito anos a terra portucalis.

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