Fiscais das secretas puseram lugar à disposição: como devem as democracias lidar com o controlo destes serviços?

06-11-2020
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DA DIGNIDADE DAS INSTITUIÇÕES

1. Uma inscrição necessária

É-me imperioso, em consciência, partilhar por este meio com os meus concidadãos uma reflexão e um testemunho sobre um episódio muito recente em que se viu envolvido o Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (CFSIRP), a que presido por vontade dos meus pares, Filipe Neto Brandão e António Costa Rodrigues, duas pessoas profundamente éticas e com assinalável sentido de entrega à causa pública.

Trata-se de um episódio que não deve cair no habitual esquecimento, mesmo em tempos de pandemia, até porque constitui certamente um caso de estudo sobre os desafios que se colocam nas sociedades abertas ao funcionamento da Democracia e à dignidade da atuação das suas instituições.

2. Quis custodiet custodes?

Quem fiscaliza os fiscalizadores? Esta questão – que, agora formulada numa adaptação à situação ora em causa, tem uma origem satírica na nossa cultura latina mas que, ao longo dos tempos, se convolou num tema constante do pensamento sobre a justiça, o direito e o poder – adquire particularíssima pertinência quando colocada relativamente a um órgão como o CFSIRP.

O CFSIRP controla (acompanhando e fiscalizando) todo o Sistema de Informações da República Portuguesa, em qualquer das suas vertentes: informações estratégicas de defesa; informações de segurança; informações militares. Quer isto dizer que, conforme resulta da Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa – cfr. Lei n.º 30/84, de 5 de setembro, na sua atual redação –, o CFSIRP dispõe de amplos poderes e prerrogativas para verificar como atuam o Secretário-Geral do Sistema e os serviços comuns que dele diretamente dependem, o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), o Serviço de Informações de Segurança (SIS) e o Centro de Informações e Segurança Militares (CISMIL), este integrado no Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Estando o Sistema de Informações da República Portuguesa sob direção do Governo, como não pode deixar de ser, o CFSIRP protagoniza, em sede de Serviços de Informações, um modelo muito particular de efetivação da responsabilidade constitucional do Governo perante a Assembleia da República e de concretização das competências de fiscalização desta. Com plena autonomia e independência, os três membros do CFSIRP atuam com a legitimidade jurídica que lhes é diretamente emprestada pelos Deputados, funcionam junto da Assembleia da República e a esta permanentemente prestam contas da sua atuação.

Como bem se compreende, pela sua própria natureza o desempenho dos Serviços de Informações não pode deixar de estar sujeito a segredo; mas um segredo justificado e legitimado democraticamente. Tendo de garantir-se uma tal discrição da atuação de todo o Sistema de Informações da República Portuguesa e não se concebendo que este pudesse ser controlado diretamente por todos os Deputados, compete ao CFSIRP assegurar, imediatamente perante a Assembleia da República e mediatamente perante os Portugueses, que os Serviços de Informações atuam com eficiência e eficácia e sempre dentro dos limites que lhe são fixados pela Constituição e pela lei. Daí ter a Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa, logo desde 1984, erigido o CFSIRP à cabeça da orgânica de todo o Sistema.

Trata-se de uma missão tão delicada quanto responsabilizante aquela que é cometida ao CFSIRP, precisamente por se situar no âmago da garantia de que é, permanente e concretamente, preservada a legitimidade democrática da atuação dos Serviços de Informações. Na verdade, só o CFSIRP pode assegurar publicamente – mas sem expor os específicos desempenhos de cada um deles – que os Serviços de Informações agem sempre no respeito estrito pela Constituição, pela lei e pelos direitos dos cidadãos e, simultaneamente, que estão capacitados para produzir, de modo eficiente, eficaz e tempestivo, as informações necessárias, seja à preservação da segurança interna e externa dos Portugueses, seja à preservação da independência e dos interesses nacionais e da unidade e integridade do País.

O CFSIRP não se tem cansado de testemunhar que, sujeitos ao necessário e adequado controlo e criteriosamente enquadrados normativamente, os Serviços de Informações representam na Democracia Portuguesa uma contribuição insubstituível para a segurança nacional, para a garantia da liberdade dos Portugueses e para a própria defesa dos seus direitos fundamentais. Sobre isto não podem restar quaisquer dúvidas.

Compreender-se-á, pois, que a lei assuma especiais cuidados no sentido de garantir que este órgão fiscalizador de topo de todo o Sistema de Informações da República Portuguesa – que tem de conhecer os Serviços de Informações por dentro, na integralidade da informação que produzem e na especificidade das atuações que prosseguem – não seja passível de quaisquer desvios de funções ou abusos de poder por parte dos seus membros, os quais devem, isso sim, contribuir, com o seu zelo, a sua dedicação, o seu exemplo e o seu sigilo, para a consolidação de exigentes cânones de desempenho dos Serviços de Informações. Nesse sentido a lei conjuga diferentes momentos em prol de uma tal garantia.

Em primeiro lugar, a lei preocupa-se sobremaneira com o perfil e o percurso de vida de cada um dos membros do CFSIRP. Daí a estatuição de que o CFSIRP seja constituído por três cidadãos reconhecidamente idóneos e no pleno gozo dos direitos civis e políticos, que deem garantias de respeitar, mesmo depois da cessação de funções, os deveres decorrentes do cargo, nomeadamente de independência, imparcialidade, discrição e sentido de missão. São pessoas sujeitas a escrutínio muito amplo, permanente e transparente dos seus perfis, currículos e interesses, eleitas pela

Assembleia da República por voto secreto e maioria de dois terços dos Deputados presentes, nunca inferior à maioria dos Deputados em efetividade de funções.

A eleição é precedida de audição pela comissão parlamentar competente em matéria de assuntos constitucionais, direitos, liberdades e garantias, que aprecia, para além do perfil, o currículo dos candidatos. Deste currículo deve constar, obrigatoriamente, sob pena de inelegibilidade, um registo de interesses contendo detalhadíssimas informações, que têm de ser mantidas atualizadas uma vez consumada a eleição, sob pena de cessação do mandato (os registos de interesses dos atuais membros do CFSIRP estão disponíveis através de https://cfsirp.pt).

O mandato dos membros do CFSIRP tem a duração de quatro anos, mas pode cessar antecipadamente por demissão (para além de por impedimento definitivo ou renúncia). As imunidades de que gozam os membros do CFSIRP não abrangem quaisquer crimes puníveis com pena superior a 3 anos.

O segundo momento concebido na lei para garantir a inexistência de quaisquer desvirtuações da atuação do CFSIRP tem a ver com a sua própria colegialidade: o CFSIRP é constituído por três membros, cada um deles eleito pela Assembleia da República em igualdade de circunstâncias, que exercem as suas funções conjuntamente, observando-se mutuamente e em permanência e partilhando e confrontando sempre as suas apreciações sobre o caminho a seguir pelo Conselho, na busca de sínteses que permitam a expressão externa unitária (mas com rigorosa e detalhada preservação do labor interno em atas classificadas). Não existe sequer um primus inter pares, pois a presidência do CFSIRP tem sobretudo uma feição administrativa interna, resultando de deliberação tomada no seio do próprio órgão e nos termos das regras gerais sobre o funcionamento dos órgãos colegiais.

Em terceiro lugar, importa sublinhar que o CFSIRP é acompanhado por mais dois órgãos fiscalizadores dos Serviços de Informações, plenamente autónomos e independentes, embora de feição mais especializada. São eles a Comissão de Fiscalização de Dados (composta por três magistrados do Ministério Público, à qual compete sobretudo a fiscalização do centro de dados do SIED, do centro de dados do SIS e dos dados tratados pelo CISMIL, dando conhecimento ao CFSIRP de eventuais irregularidades ou violações da lei) e a formação de juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça responsável pelo controlo judicial e pela autorização prévia do acesso pelo SIS e pelo SIED a dados de telecomunicações e Internet (nos termos previstos na Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25 de agosto, a apelidada lei dos metadados).

Em quarto lugar, o CFSIRP tem o dever legal de prestação pública de contas da sua atividade. Na verdade, a lei manda que o CFSIRP emita “pareceres”, a apresentar à Assembleia da República com regularidade mínima semestral, “sobre o funcionamento do Sistema de Informações da República Portuguesa”. Sendo públicos e não classificados, os pareceres do CFSIRP (que estão disponíveis em https://cfsirp.pt) contêm tão só a informação compatível com essa natureza, devendo ser encarados como uma base da apresentação e discussão, necessariamente mais detalhadas, que dos mesmos – e da própria atuação do CFSIRP – é feita, à porta fechada e sujeita ao dever de sigilo, em sede de comissão parlamentar.

Mas a derradeira garantia de que o CFSIRP não possa deixar de atuar com exemplar integridade advém – permita-se-me muita clareza e desassombro – da exposição inerente ao exercício das suas funções de fiscalização perante as próprias entidades fiscalizadas. Estando em causa matérias de superlativa delicadeza, sujeitas a procedimentos rigorosos de segurança, bem se compreenderá que qualquer veleidade de desvio ou abuso de funções fiscalizadoras tenderia a ser imediatamente detetada e inviabilizada por quem, com padrões deontológicos sólidos (que posso bem testemunhar), está sujeito ao controlo do CFSIRP.

Deve, aliás, sublinhar-se que a legitimidade do múnus de um órgão como o CFSIRP não se basta, de todo, com os poderes e prerrogativas formalmente previstos na lei. A missão do CFSIRP só pode conceber-se e concretizar-se plenamente se assentar numa legitimidade de exercício, numa legitimidade substancial reconhecida e não imposta, decantada da autoridade natural e confiável que se vai sedimentando pelo merecimento do modo como se exerce o cargo, num modelo de lealdade recíproca.

Ora, uma tal autoridade natural e confiável, que leva algum tempo a erigir e que pode esfumar-se num ápice, não é de todo conciliável com determinadas suspeições sobre a honradez dos membros do CFSIRP.

Ora, uma tal suspeição insustentável surgiu de repente do nada. E não podia ter deixado de ser enfrentada, como foi; até às últimas consequências.

3. A suspeição

Bem sei que não se tratou do The Washington Post. Bem sei que o tema parece ter tido pouca repercussão pública, tendendo a ser imediatamente esquecido. Mas, ainda assim, a minha consciência, o meu sentido de responsabilidade e a minha educação política não me permitem conformar-me com a muito comum opção de deixar cair no esquecimento o que, no passado dia 15 de outubro, se escreveu sobre os três membros do CFSIRP, numa elaboração jornalística (facilmente pesquisável online) contida na edição semanal impressa de um órgão de comunicação social.

Essa elaboração jornalística fez ecoar na minha mente o processo Dreyfus; mas também, entre o mais, o ensaio de Francisco Louçã, na Revista do Expresso de 17 de outubro de 2020, no qual, sob o título Choque e pavor serão o futuro da política?, se referiu a lawfare como uma das mais perversas formas de a necropolítica corroer “a política dos dias de hoje, contra a razão democrática”.

Com chamada à capa e ainda ao sumário, sob o título “Fiscais das Secretas Suspeitos de Crimes”, disse a elaboração jornalística a que me refiro, em suma, que “apurou” a existência de “uma investigação que terá resultado de uma denúncia que visa indícios do crime de violação de segredo de Estado” e “a eventual prática de outro tipo de delitos”, visando “elementos da fiscalização das secretas”, referindo-se assim aos três membros do CFSIRP.

Lendo com atenção o conteúdo do escrito, constata-se que existiu a preocupação: de usar enunciados defensivos (“o que poderá eventualmente ter feito de ilegal”); de reproduzir os desmentidos sobre o conhecimento de qualquer “inquérito sob investigação” e sobre qualquer conduta violadora do segredo de Estado; de dar nota das afirmações de confiança recíproca dos membros do CFSIRP; de revelar que eu próprio sublinhei que, havendo qualquer indício de ilicitude, tudo deve ser “investigado até às últimas consequências”.

O ponto é que, fazendo uso das conhecidas técnicas editoriais e apelando às tradicionais fontes/denúncias sem cara, se confluiu para um só objetivo: escancarar, sob a forma de notícia, a afirmação de que os membros do CFSIRP (com destaque para mim próprio) podem ser uns violadores do segredo de Estado, mas também uns corruptos e uns traficantes de influências.

Claro que o sofrimento pessoal causado é já irremovível. Mas, tidas as necessárias conversas em família – que procurei se assumissem como uma lição de vida –, não é isso que, por ora, releva.

O que aqui me motiva tem sim a ver com as condições para a decência da vida pública e para a preservação do regular funcionamento das instituições democráticas.

O que, por ora, é da maior relevância, isso sim, é que, por muito que afirmassem terem sempre desempenhado irrepreensivelmente as suas funções, estava, de facto, lançada uma suspeição intolerável sobre a idoneidade dos membros de um órgão que, como afirmei e facilmente se reconhecerá, têm de estar acima de toda a suspeita para poderem atuar na plenitude das suas funções.

E foi precisamente esta seríssima preocupação com tal insustentável capitis deminutio que, num instante, passou a macular o CFSIRP que justifica esta minha reflexão, a qual entendo dever partilhar publicamente, sem mais delongas, por incidir sobre um desafio com que, amiúde, se confronta a nossa vida democrática e que, no caso presente, se revestiu de particularíssima delicadeza.

4. Que fique bem claro!

Permitam-me dizer, para que não restem quaisquer dúvidas, que qualquer violação do segredo de Estado constitui uma infração da maior gravidade, que deve ser investigada e sancionada, doa a quem tiver de doer, a começar pelos membros do CFSIRP, já que são eles os primeiros obrigados a respeitá-lo e os primeiros responsáveis por fazê-lo respeitar.

Permitam-me dizer, ainda, que tenho firmemente para mim que mais exigentes padrões de transparência na conceção e na execução das políticas públicas – o que passa, entre o mais mas determinantemente, pela prevenção e sancionamento da corrupção e dos favorecimentos ilegítimos de interesses – constituem uma condição sine qua non para a preservação da nossa vida democrática e para a modernização do Estado, conforme pude ajudar a escrever no âmbito dos trabalhos da Plataforma para o Crescimento Sustentável, seja no Relatório para o Crescimento Sustentável, Uma visão pós-troika, de 2012, seja no Manifesto para um Estado Moderno, de 2018 (ambos disponíveis em https://www.crescimentosustentavel.org).

Aí, entre o mais, surgem propostas capazes de ultrapassar os problemas inerentes à criminalização do enriquecimento ilícito/injustificado, numa linha que, sendo inovatória e incindindo sobre todos os cidadãos (evitando o estigma sobre os titulares de cargos políticos), apresenta pontos de contacto com as relevantes sugestões de Manuel Magalhães e Silva e, muito recentemente, de Manuel Soares (cfr. Enriquecimento ilícito: outra maneira de olhar, na edição do Público de 21 de outubro de 2020).

Permitam-me também dizer que, embora não tenha a mínima simpatia pelas denúncias anónimas – a via mais cobarde para fazer mal a alguém, procurando escapulir-se do crime público de denúncia caluniosa –, aceito que com elas tenhamos de viver e reconheço nelas, apesar de tudo, uma meio necessário de combate à corrupção.

Mas não pode haver canduras, importando dizer as coisas sem rodeios: se alguém pretendesse minar o relevantíssimo papel democrático do Sistema de Informações da República Portuguesa e, até, a sua inequívoca credibilidade perante os seus parceiros externos – algo que o CFSIRP não se tem eximido a realçar nos seus pareceres –, dificilmente esse alguém, naturalmente sem rosto, encontraria meio mais insidioso do que procurar abalar o órgão fiscalizador de topo desse mesmo Sistema.

E é a mesma candura que não pode existir que admite já a conclusão de que esse alguém sem rosto não será tanto um agente de poderosos e maquiavélicos interesses organizados mas mais alguma triste personagem que, como tantas vezes ocorre, terá sido nalgum momento confrontada com a suas incapacidades e, com a típica mesquinhez da frustração, tentou agora disseminar a calúnia.

Suspeita é, afinal, a inaudita, gravíssima e venenosa suspeição com que agora, lançando a pedra e escondendo a mão, alguém tentou macular, maculando os seus membros, o CFSIRP. Clara é, afinal, a causa de tal mácula tentada.

Permitam-me frisar um último ponto: prefiro, mil vezes, viver numa sociedade em que sejam possíveis elaborações jornalísticas como aquela que motiva esta minha reflexão – ainda que infundadas, injustas, incómodas e, até, porventura, manipuláveis por interesses pérfidos (mas sondáveis) – do que viver numa sociedade censória. Daí que, em momento algum, se insurgiu publicamente o CFSIRP contra a elaboração jornalística que o visou; nem sequer exercendo qualquer direito de resposta.

Só que uma coisa é fazer uma profissão de fé, muito genuína aliás, na liberdade de expressão responsável, maxime dos órgãos de comunicação social, como uma indispensável condição da vivência democrática, e outra é constatar a convolação factual do quarto poder numa mediacracia, isto é, num real desequilíbrio do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), com o funcionamento das demais instituições democráticas a correr o sério risco de ficar condicionado, senão mesmo peado e tolhido, pela propagação de meras suspeições.

Mas de suspeições que, como foi o caso, podiam impossibilitar realmente o funcionamento dos órgãos democráticos, seja porque são órgãos que não podem atuar sob a mínima suspeição, seja porque são suspeições que esses órgãos, por mais que as desmintam, como ocorreu, não podem ilidir e dissipar por si mesmos, pela simples razão de que são outras as instituições democráticas que possuem a informação necessária para o efeito.

Anote-se, aliás, esta caricatura, embora trágica: tal elaboração jornalística contamina o CFSIRP com a suspeição de violação do segredo de Estado, ao mesmo tempo que ela própria assentaria, muito possivelmente, na violação do segredo de justiça. É que outra não pode ser a conclusão lógica, face ao que ela diz ter apurado, de fontes não reveladas, quanto a investigação nas mãos do Ministério Público.

Mas o ponto sempre foi outro e há de nele ser-se muito claro e radical, pois das duas uma: ou existiam realmente indícios sérios de que os membros do CFSIRP podem ser violadores do segredo de Estado, corruptos e traficantes de influências, e então tinham eles de ser imediatamente afastados das suas funções, dada a superlativa sensibilidade para os interesses do País da informação com que lidam, ou tais indícios não existiam e, então, não era concebível sujeitar o CFSIRP ao perigo de um estado vegetativo, infetado por uma suspeição e sem que fosse tempestivamente disponibilizada por quem a detém a verdade das coisas.

Como podiam os membros do CFSIRP, face a tal infecciosa suspeição, confrontar qualquer pessoa que desempenhasse a sua missão nos Serviços de Informações com os seus pedidos, inerentes à atuação fiscalizadora, de revelação de informações e de atuações, sujeitando assim essa pessoa ao dilema diabólico de responder com verdade ou de arriscar fornecer informação a quem era suspeito de a não preservar?

Como podiam os membros do CFSIRP, face a tal infecciosa suspeição, sujeitar os Deputados, que àqueles emprestaram a sua legitimidade democrática de fiscalização dos Serviços de Informações – após um exigentíssimo escrutínio de perfis e de percursos de vida e mediante uma especialmente qualificada eleição – à dúvida, ainda que não expressada, sobre se tal patologia existia ou não?

E, já agora, como podiam os membros do CFSIRP, face a tal infecciosa suspeição, permitir-se a si mesmos protagonizarem tais óbvios perigos de disrupções funcionais e institucionais?

São questões de enorme densidade, que os membros do CFSIRP não podiam, muito responsavelmente, deixar de colocar às suas consciências.

5. O que tinha de ser feito e o que daí se deve concluir

Mesmo que em consciência encontrasse, para além dos poderes formais, a tal reserva de legitimidade substancial, reconhecida e não imposta, decantada da atuação pretérita no exercício das minhas funções como presidente do CFSIRP, que me permitisse interiormente prosseguir nessa minha missão, reforçando e não debilitando o Sistema de Informações da República Portuguesa, a verdade é que a transparência da vida pública não pode bastar-se com a intimidade da consciência, devendo antes pautar-se por atitudes muito claras e muito consequentes, desprendidas e desassombradas, por atitudes suscetíveis de serem publicamente conhecidas e compreendidas, sem meias-tintas.

Importava, pois, assumir a incumbência de, em sede própria (e só na sede própria), se procurar dissipar, inequivocamente e em tempo útil, a absolutamente infundada suspeição que se havia abatido sobre o CFSIRP e os seus membros, retirando conclusões e consequências inequívocas, quer isso fosse conseguido, quer não. As coisas não podiam ficar como estavam. Enquanto subsistisse a suspeição que factualmente se instalou, o cargo de membro do CFSIRP podia certamente continuar a ser ocupado; mas certamente não podia continuar a ser exercido como tem de sê-lo!

A suspeição que factualmente se instalara tinha de ser enfrentada e cabalmente esclarecida. Não podia fingir-se que nada ocorrera e esperar-se que tudo caísse no esquecimento, porque há coisas que não podem ser esquecidas, sob pena de propagação da indecência na vida pública e da subversão do funcionamento das instituições democráticas; sob pena de o órgão que é o CFSIRP não ter sido defendido e dignificado por quem estava primeiramente incumbido de o fazer.

E tudo tinha de ser feito sem delongas, porque nestas questões o tempo não pode ser o tempo absurdo de Didi e Gogo. Como bem sabemos, o prazo de caducidade da verdade pública é muito curto.

Por assim ter de ser, mal se confrontou com uma tal elaboração jornalística, publicitou o CFSIRP, logo nesse dia 15 de outubro, o seguinte comunicado (disponível em https://cfsirp.pt), o qual, como é sempre de esperar, poucos terão lido:

Os membros do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (CFSIRP) sublinham que qualquer violação das obrigações de sigilo inerentes ao segredo de Estado tem de ser objeto de investigação e deve ser sancionada, sendo eles os primeiros responsáveis por cumprir e fazer cumprir tais obrigações e sendo eles, por consequência, os primeiros a colaborar com as autoridades competentes por aquela investigação.

Os membros do CFSIRP sublinham que não têm qualquer conhecimento da investigação que a revista diz que “apurou” existir, registando igualmente que nunca da mesma alguma vez lhes foi feita qualquer notificação.

Os membros do CFSIRP sublinham que, escrupulosamente e em permanência, cumprem e velam pelo cumprimento das obrigações de sigilo inerentes ao segredo de Estado.

Os membros do CFSIRP mais sublinham que já comunicaram à Senhora Procuradora-Geral da República e ao Senhor Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República o que consideraram pertinente face ao teor da elaboração jornalística referida no (...) presente Comunicado.

O conteúdo da referida comunicação à Senhora Procuradora-Geral da República foi classificado como confidencial. Mas não será difícil deduzir que o CFSIRP, face à capitis deminutio que sobre si próprio então ainda impendia, tivessem apelado, sem a mínima tonalidade de pressão, a tudo quanto fosse possível fazer para que a situação criada pudesse ser clarificada, quanto antes e fosse em que sentido fosse.

Já ao Presidente daquela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (numa comunicação disponível também em https://cfsirp.pt) sublinharam os membros do CFSIRP a seriedade da situação com que se viam confrontados, colocando-se de imediato à inteira disposição dos Deputados para, entre o mais, a prestação presencial das informações e dos esclarecimentos que fossem tidos por convenientes; e, naturalmente, foi dado conhecimento do conteúdo daquela outra missiva enviada à Procuradoria-Geral da República.

Passados onze dias, endereçou a Procuradoria-Geral da República ao CFSIRP uma missiva de resposta, também esta classificada como confidencial. Mas mesmo sem nada revelar do seu conteúdo, algo pode topicamente ser dito sobre o que ocorreu: denúncia anónima; inquirição do que, com a plena autonomia que o Ministério Público não pode deixar de ter, foi entendido necessário; encerramento do assunto.

Esta informação em boa hora recebida da Procuradoria-Geral da República foi pelo CFSIRP dada a conhecer, no passado dia 3 de novembro, à Assembleia da República, através de comunicação (igualmente disponível em https://cfsirp.pt) dirigida ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sublinhando constituir informação muito clara e antes desconhecida, que permite dissipar, felizmente em tempo útil, quaisquer suspeições sobre os membros do CFSIRP, mais reafirmando manterem-se estes à inteira disposição dos Deputados.

Termino este texto de reflexão e testemunho como o iniciei: estamos perante um episódio que não deve cair no esquecimento, mesmo em tempos de pandemia; um episódio que nos remete para os desafios que se colocam nas sociedades abertas ao funcionamento da Democracia e à dignidade da atuação das suas instituições.

Bastaram poucos dias para as instituições dialogarem e atuarem, na sua plena independência e autonomia, fortalecendo o relacionamento institucional, repondo a verdade e imunizando a credibilidade do órgão que é o CFSIRP, essencialmente intolerante a qualquer suspeição.

Este meu testemunho público é devido. Sobretudo em nome da integridade do próprio Sistema de Informações da República Portuguesa. E, já agora, em nome do respeito e da lealdade de que são credores todos quantos responsavelmente servem os Serviços de Informações, fazendo-o com inteligência, dedicação, competência e discrição, algo que me é grato testemunhar sem reservas.

DA DIGNIDADE DAS INSTITUIÇÕES

1. Uma inscrição necessária

É-me imperioso, em consciência, partilhar por este meio com os meus concidadãos uma reflexão e um testemunho sobre um episódio muito recente em que se viu envolvido o Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (CFSIRP), a que presido por vontade dos meus pares, Filipe Neto Brandão e António Costa Rodrigues, duas pessoas profundamente éticas e com assinalável sentido de entrega à causa pública.

Trata-se de um episódio que não deve cair no habitual esquecimento, mesmo em tempos de pandemia, até porque constitui certamente um caso de estudo sobre os desafios que se colocam nas sociedades abertas ao funcionamento da Democracia e à dignidade da atuação das suas instituições.

2. Quis custodiet custodes?

Quem fiscaliza os fiscalizadores? Esta questão – que, agora formulada numa adaptação à situação ora em causa, tem uma origem satírica na nossa cultura latina mas que, ao longo dos tempos, se convolou num tema constante do pensamento sobre a justiça, o direito e o poder – adquire particularíssima pertinência quando colocada relativamente a um órgão como o CFSIRP.

O CFSIRP controla (acompanhando e fiscalizando) todo o Sistema de Informações da República Portuguesa, em qualquer das suas vertentes: informações estratégicas de defesa; informações de segurança; informações militares. Quer isto dizer que, conforme resulta da Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa – cfr. Lei n.º 30/84, de 5 de setembro, na sua atual redação –, o CFSIRP dispõe de amplos poderes e prerrogativas para verificar como atuam o Secretário-Geral do Sistema e os serviços comuns que dele diretamente dependem, o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), o Serviço de Informações de Segurança (SIS) e o Centro de Informações e Segurança Militares (CISMIL), este integrado no Estado-Maior-General das Forças Armadas.

Estando o Sistema de Informações da República Portuguesa sob direção do Governo, como não pode deixar de ser, o CFSIRP protagoniza, em sede de Serviços de Informações, um modelo muito particular de efetivação da responsabilidade constitucional do Governo perante a Assembleia da República e de concretização das competências de fiscalização desta. Com plena autonomia e independência, os três membros do CFSIRP atuam com a legitimidade jurídica que lhes é diretamente emprestada pelos Deputados, funcionam junto da Assembleia da República e a esta permanentemente prestam contas da sua atuação.

Como bem se compreende, pela sua própria natureza o desempenho dos Serviços de Informações não pode deixar de estar sujeito a segredo; mas um segredo justificado e legitimado democraticamente. Tendo de garantir-se uma tal discrição da atuação de todo o Sistema de Informações da República Portuguesa e não se concebendo que este pudesse ser controlado diretamente por todos os Deputados, compete ao CFSIRP assegurar, imediatamente perante a Assembleia da República e mediatamente perante os Portugueses, que os Serviços de Informações atuam com eficiência e eficácia e sempre dentro dos limites que lhe são fixados pela Constituição e pela lei. Daí ter a Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa, logo desde 1984, erigido o CFSIRP à cabeça da orgânica de todo o Sistema.

Trata-se de uma missão tão delicada quanto responsabilizante aquela que é cometida ao CFSIRP, precisamente por se situar no âmago da garantia de que é, permanente e concretamente, preservada a legitimidade democrática da atuação dos Serviços de Informações. Na verdade, só o CFSIRP pode assegurar publicamente – mas sem expor os específicos desempenhos de cada um deles – que os Serviços de Informações agem sempre no respeito estrito pela Constituição, pela lei e pelos direitos dos cidadãos e, simultaneamente, que estão capacitados para produzir, de modo eficiente, eficaz e tempestivo, as informações necessárias, seja à preservação da segurança interna e externa dos Portugueses, seja à preservação da independência e dos interesses nacionais e da unidade e integridade do País.

O CFSIRP não se tem cansado de testemunhar que, sujeitos ao necessário e adequado controlo e criteriosamente enquadrados normativamente, os Serviços de Informações representam na Democracia Portuguesa uma contribuição insubstituível para a segurança nacional, para a garantia da liberdade dos Portugueses e para a própria defesa dos seus direitos fundamentais. Sobre isto não podem restar quaisquer dúvidas.

Compreender-se-á, pois, que a lei assuma especiais cuidados no sentido de garantir que este órgão fiscalizador de topo de todo o Sistema de Informações da República Portuguesa – que tem de conhecer os Serviços de Informações por dentro, na integralidade da informação que produzem e na especificidade das atuações que prosseguem – não seja passível de quaisquer desvios de funções ou abusos de poder por parte dos seus membros, os quais devem, isso sim, contribuir, com o seu zelo, a sua dedicação, o seu exemplo e o seu sigilo, para a consolidação de exigentes cânones de desempenho dos Serviços de Informações. Nesse sentido a lei conjuga diferentes momentos em prol de uma tal garantia.

Em primeiro lugar, a lei preocupa-se sobremaneira com o perfil e o percurso de vida de cada um dos membros do CFSIRP. Daí a estatuição de que o CFSIRP seja constituído por três cidadãos reconhecidamente idóneos e no pleno gozo dos direitos civis e políticos, que deem garantias de respeitar, mesmo depois da cessação de funções, os deveres decorrentes do cargo, nomeadamente de independência, imparcialidade, discrição e sentido de missão. São pessoas sujeitas a escrutínio muito amplo, permanente e transparente dos seus perfis, currículos e interesses, eleitas pela

Assembleia da República por voto secreto e maioria de dois terços dos Deputados presentes, nunca inferior à maioria dos Deputados em efetividade de funções.

A eleição é precedida de audição pela comissão parlamentar competente em matéria de assuntos constitucionais, direitos, liberdades e garantias, que aprecia, para além do perfil, o currículo dos candidatos. Deste currículo deve constar, obrigatoriamente, sob pena de inelegibilidade, um registo de interesses contendo detalhadíssimas informações, que têm de ser mantidas atualizadas uma vez consumada a eleição, sob pena de cessação do mandato (os registos de interesses dos atuais membros do CFSIRP estão disponíveis através de https://cfsirp.pt).

O mandato dos membros do CFSIRP tem a duração de quatro anos, mas pode cessar antecipadamente por demissão (para além de por impedimento definitivo ou renúncia). As imunidades de que gozam os membros do CFSIRP não abrangem quaisquer crimes puníveis com pena superior a 3 anos.

O segundo momento concebido na lei para garantir a inexistência de quaisquer desvirtuações da atuação do CFSIRP tem a ver com a sua própria colegialidade: o CFSIRP é constituído por três membros, cada um deles eleito pela Assembleia da República em igualdade de circunstâncias, que exercem as suas funções conjuntamente, observando-se mutuamente e em permanência e partilhando e confrontando sempre as suas apreciações sobre o caminho a seguir pelo Conselho, na busca de sínteses que permitam a expressão externa unitária (mas com rigorosa e detalhada preservação do labor interno em atas classificadas). Não existe sequer um primus inter pares, pois a presidência do CFSIRP tem sobretudo uma feição administrativa interna, resultando de deliberação tomada no seio do próprio órgão e nos termos das regras gerais sobre o funcionamento dos órgãos colegiais.

Em terceiro lugar, importa sublinhar que o CFSIRP é acompanhado por mais dois órgãos fiscalizadores dos Serviços de Informações, plenamente autónomos e independentes, embora de feição mais especializada. São eles a Comissão de Fiscalização de Dados (composta por três magistrados do Ministério Público, à qual compete sobretudo a fiscalização do centro de dados do SIED, do centro de dados do SIS e dos dados tratados pelo CISMIL, dando conhecimento ao CFSIRP de eventuais irregularidades ou violações da lei) e a formação de juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça responsável pelo controlo judicial e pela autorização prévia do acesso pelo SIS e pelo SIED a dados de telecomunicações e Internet (nos termos previstos na Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25 de agosto, a apelidada lei dos metadados).

Em quarto lugar, o CFSIRP tem o dever legal de prestação pública de contas da sua atividade. Na verdade, a lei manda que o CFSIRP emita “pareceres”, a apresentar à Assembleia da República com regularidade mínima semestral, “sobre o funcionamento do Sistema de Informações da República Portuguesa”. Sendo públicos e não classificados, os pareceres do CFSIRP (que estão disponíveis em https://cfsirp.pt) contêm tão só a informação compatível com essa natureza, devendo ser encarados como uma base da apresentação e discussão, necessariamente mais detalhadas, que dos mesmos – e da própria atuação do CFSIRP – é feita, à porta fechada e sujeita ao dever de sigilo, em sede de comissão parlamentar.

Mas a derradeira garantia de que o CFSIRP não possa deixar de atuar com exemplar integridade advém – permita-se-me muita clareza e desassombro – da exposição inerente ao exercício das suas funções de fiscalização perante as próprias entidades fiscalizadas. Estando em causa matérias de superlativa delicadeza, sujeitas a procedimentos rigorosos de segurança, bem se compreenderá que qualquer veleidade de desvio ou abuso de funções fiscalizadoras tenderia a ser imediatamente detetada e inviabilizada por quem, com padrões deontológicos sólidos (que posso bem testemunhar), está sujeito ao controlo do CFSIRP.

Deve, aliás, sublinhar-se que a legitimidade do múnus de um órgão como o CFSIRP não se basta, de todo, com os poderes e prerrogativas formalmente previstos na lei. A missão do CFSIRP só pode conceber-se e concretizar-se plenamente se assentar numa legitimidade de exercício, numa legitimidade substancial reconhecida e não imposta, decantada da autoridade natural e confiável que se vai sedimentando pelo merecimento do modo como se exerce o cargo, num modelo de lealdade recíproca.

Ora, uma tal autoridade natural e confiável, que leva algum tempo a erigir e que pode esfumar-se num ápice, não é de todo conciliável com determinadas suspeições sobre a honradez dos membros do CFSIRP.

Ora, uma tal suspeição insustentável surgiu de repente do nada. E não podia ter deixado de ser enfrentada, como foi; até às últimas consequências.

3. A suspeição

Bem sei que não se tratou do The Washington Post. Bem sei que o tema parece ter tido pouca repercussão pública, tendendo a ser imediatamente esquecido. Mas, ainda assim, a minha consciência, o meu sentido de responsabilidade e a minha educação política não me permitem conformar-me com a muito comum opção de deixar cair no esquecimento o que, no passado dia 15 de outubro, se escreveu sobre os três membros do CFSIRP, numa elaboração jornalística (facilmente pesquisável online) contida na edição semanal impressa de um órgão de comunicação social.

Essa elaboração jornalística fez ecoar na minha mente o processo Dreyfus; mas também, entre o mais, o ensaio de Francisco Louçã, na Revista do Expresso de 17 de outubro de 2020, no qual, sob o título Choque e pavor serão o futuro da política?, se referiu a lawfare como uma das mais perversas formas de a necropolítica corroer “a política dos dias de hoje, contra a razão democrática”.

Com chamada à capa e ainda ao sumário, sob o título “Fiscais das Secretas Suspeitos de Crimes”, disse a elaboração jornalística a que me refiro, em suma, que “apurou” a existência de “uma investigação que terá resultado de uma denúncia que visa indícios do crime de violação de segredo de Estado” e “a eventual prática de outro tipo de delitos”, visando “elementos da fiscalização das secretas”, referindo-se assim aos três membros do CFSIRP.

Lendo com atenção o conteúdo do escrito, constata-se que existiu a preocupação: de usar enunciados defensivos (“o que poderá eventualmente ter feito de ilegal”); de reproduzir os desmentidos sobre o conhecimento de qualquer “inquérito sob investigação” e sobre qualquer conduta violadora do segredo de Estado; de dar nota das afirmações de confiança recíproca dos membros do CFSIRP; de revelar que eu próprio sublinhei que, havendo qualquer indício de ilicitude, tudo deve ser “investigado até às últimas consequências”.

O ponto é que, fazendo uso das conhecidas técnicas editoriais e apelando às tradicionais fontes/denúncias sem cara, se confluiu para um só objetivo: escancarar, sob a forma de notícia, a afirmação de que os membros do CFSIRP (com destaque para mim próprio) podem ser uns violadores do segredo de Estado, mas também uns corruptos e uns traficantes de influências.

Claro que o sofrimento pessoal causado é já irremovível. Mas, tidas as necessárias conversas em família – que procurei se assumissem como uma lição de vida –, não é isso que, por ora, releva.

O que aqui me motiva tem sim a ver com as condições para a decência da vida pública e para a preservação do regular funcionamento das instituições democráticas.

O que, por ora, é da maior relevância, isso sim, é que, por muito que afirmassem terem sempre desempenhado irrepreensivelmente as suas funções, estava, de facto, lançada uma suspeição intolerável sobre a idoneidade dos membros de um órgão que, como afirmei e facilmente se reconhecerá, têm de estar acima de toda a suspeita para poderem atuar na plenitude das suas funções.

E foi precisamente esta seríssima preocupação com tal insustentável capitis deminutio que, num instante, passou a macular o CFSIRP que justifica esta minha reflexão, a qual entendo dever partilhar publicamente, sem mais delongas, por incidir sobre um desafio com que, amiúde, se confronta a nossa vida democrática e que, no caso presente, se revestiu de particularíssima delicadeza.

4. Que fique bem claro!

Permitam-me dizer, para que não restem quaisquer dúvidas, que qualquer violação do segredo de Estado constitui uma infração da maior gravidade, que deve ser investigada e sancionada, doa a quem tiver de doer, a começar pelos membros do CFSIRP, já que são eles os primeiros obrigados a respeitá-lo e os primeiros responsáveis por fazê-lo respeitar.

Permitam-me dizer, ainda, que tenho firmemente para mim que mais exigentes padrões de transparência na conceção e na execução das políticas públicas – o que passa, entre o mais mas determinantemente, pela prevenção e sancionamento da corrupção e dos favorecimentos ilegítimos de interesses – constituem uma condição sine qua non para a preservação da nossa vida democrática e para a modernização do Estado, conforme pude ajudar a escrever no âmbito dos trabalhos da Plataforma para o Crescimento Sustentável, seja no Relatório para o Crescimento Sustentável, Uma visão pós-troika, de 2012, seja no Manifesto para um Estado Moderno, de 2018 (ambos disponíveis em https://www.crescimentosustentavel.org).

Aí, entre o mais, surgem propostas capazes de ultrapassar os problemas inerentes à criminalização do enriquecimento ilícito/injustificado, numa linha que, sendo inovatória e incindindo sobre todos os cidadãos (evitando o estigma sobre os titulares de cargos políticos), apresenta pontos de contacto com as relevantes sugestões de Manuel Magalhães e Silva e, muito recentemente, de Manuel Soares (cfr. Enriquecimento ilícito: outra maneira de olhar, na edição do Público de 21 de outubro de 2020).

Permitam-me também dizer que, embora não tenha a mínima simpatia pelas denúncias anónimas – a via mais cobarde para fazer mal a alguém, procurando escapulir-se do crime público de denúncia caluniosa –, aceito que com elas tenhamos de viver e reconheço nelas, apesar de tudo, uma meio necessário de combate à corrupção.

Mas não pode haver canduras, importando dizer as coisas sem rodeios: se alguém pretendesse minar o relevantíssimo papel democrático do Sistema de Informações da República Portuguesa e, até, a sua inequívoca credibilidade perante os seus parceiros externos – algo que o CFSIRP não se tem eximido a realçar nos seus pareceres –, dificilmente esse alguém, naturalmente sem rosto, encontraria meio mais insidioso do que procurar abalar o órgão fiscalizador de topo desse mesmo Sistema.

E é a mesma candura que não pode existir que admite já a conclusão de que esse alguém sem rosto não será tanto um agente de poderosos e maquiavélicos interesses organizados mas mais alguma triste personagem que, como tantas vezes ocorre, terá sido nalgum momento confrontada com a suas incapacidades e, com a típica mesquinhez da frustração, tentou agora disseminar a calúnia.

Suspeita é, afinal, a inaudita, gravíssima e venenosa suspeição com que agora, lançando a pedra e escondendo a mão, alguém tentou macular, maculando os seus membros, o CFSIRP. Clara é, afinal, a causa de tal mácula tentada.

Permitam-me frisar um último ponto: prefiro, mil vezes, viver numa sociedade em que sejam possíveis elaborações jornalísticas como aquela que motiva esta minha reflexão – ainda que infundadas, injustas, incómodas e, até, porventura, manipuláveis por interesses pérfidos (mas sondáveis) – do que viver numa sociedade censória. Daí que, em momento algum, se insurgiu publicamente o CFSIRP contra a elaboração jornalística que o visou; nem sequer exercendo qualquer direito de resposta.

Só que uma coisa é fazer uma profissão de fé, muito genuína aliás, na liberdade de expressão responsável, maxime dos órgãos de comunicação social, como uma indispensável condição da vivência democrática, e outra é constatar a convolação factual do quarto poder numa mediacracia, isto é, num real desequilíbrio do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), com o funcionamento das demais instituições democráticas a correr o sério risco de ficar condicionado, senão mesmo peado e tolhido, pela propagação de meras suspeições.

Mas de suspeições que, como foi o caso, podiam impossibilitar realmente o funcionamento dos órgãos democráticos, seja porque são órgãos que não podem atuar sob a mínima suspeição, seja porque são suspeições que esses órgãos, por mais que as desmintam, como ocorreu, não podem ilidir e dissipar por si mesmos, pela simples razão de que são outras as instituições democráticas que possuem a informação necessária para o efeito.

Anote-se, aliás, esta caricatura, embora trágica: tal elaboração jornalística contamina o CFSIRP com a suspeição de violação do segredo de Estado, ao mesmo tempo que ela própria assentaria, muito possivelmente, na violação do segredo de justiça. É que outra não pode ser a conclusão lógica, face ao que ela diz ter apurado, de fontes não reveladas, quanto a investigação nas mãos do Ministério Público.

Mas o ponto sempre foi outro e há de nele ser-se muito claro e radical, pois das duas uma: ou existiam realmente indícios sérios de que os membros do CFSIRP podem ser violadores do segredo de Estado, corruptos e traficantes de influências, e então tinham eles de ser imediatamente afastados das suas funções, dada a superlativa sensibilidade para os interesses do País da informação com que lidam, ou tais indícios não existiam e, então, não era concebível sujeitar o CFSIRP ao perigo de um estado vegetativo, infetado por uma suspeição e sem que fosse tempestivamente disponibilizada por quem a detém a verdade das coisas.

Como podiam os membros do CFSIRP, face a tal infecciosa suspeição, confrontar qualquer pessoa que desempenhasse a sua missão nos Serviços de Informações com os seus pedidos, inerentes à atuação fiscalizadora, de revelação de informações e de atuações, sujeitando assim essa pessoa ao dilema diabólico de responder com verdade ou de arriscar fornecer informação a quem era suspeito de a não preservar?

Como podiam os membros do CFSIRP, face a tal infecciosa suspeição, sujeitar os Deputados, que àqueles emprestaram a sua legitimidade democrática de fiscalização dos Serviços de Informações – após um exigentíssimo escrutínio de perfis e de percursos de vida e mediante uma especialmente qualificada eleição – à dúvida, ainda que não expressada, sobre se tal patologia existia ou não?

E, já agora, como podiam os membros do CFSIRP, face a tal infecciosa suspeição, permitir-se a si mesmos protagonizarem tais óbvios perigos de disrupções funcionais e institucionais?

São questões de enorme densidade, que os membros do CFSIRP não podiam, muito responsavelmente, deixar de colocar às suas consciências.

5. O que tinha de ser feito e o que daí se deve concluir

Mesmo que em consciência encontrasse, para além dos poderes formais, a tal reserva de legitimidade substancial, reconhecida e não imposta, decantada da atuação pretérita no exercício das minhas funções como presidente do CFSIRP, que me permitisse interiormente prosseguir nessa minha missão, reforçando e não debilitando o Sistema de Informações da República Portuguesa, a verdade é que a transparência da vida pública não pode bastar-se com a intimidade da consciência, devendo antes pautar-se por atitudes muito claras e muito consequentes, desprendidas e desassombradas, por atitudes suscetíveis de serem publicamente conhecidas e compreendidas, sem meias-tintas.

Importava, pois, assumir a incumbência de, em sede própria (e só na sede própria), se procurar dissipar, inequivocamente e em tempo útil, a absolutamente infundada suspeição que se havia abatido sobre o CFSIRP e os seus membros, retirando conclusões e consequências inequívocas, quer isso fosse conseguido, quer não. As coisas não podiam ficar como estavam. Enquanto subsistisse a suspeição que factualmente se instalou, o cargo de membro do CFSIRP podia certamente continuar a ser ocupado; mas certamente não podia continuar a ser exercido como tem de sê-lo!

A suspeição que factualmente se instalara tinha de ser enfrentada e cabalmente esclarecida. Não podia fingir-se que nada ocorrera e esperar-se que tudo caísse no esquecimento, porque há coisas que não podem ser esquecidas, sob pena de propagação da indecência na vida pública e da subversão do funcionamento das instituições democráticas; sob pena de o órgão que é o CFSIRP não ter sido defendido e dignificado por quem estava primeiramente incumbido de o fazer.

E tudo tinha de ser feito sem delongas, porque nestas questões o tempo não pode ser o tempo absurdo de Didi e Gogo. Como bem sabemos, o prazo de caducidade da verdade pública é muito curto.

Por assim ter de ser, mal se confrontou com uma tal elaboração jornalística, publicitou o CFSIRP, logo nesse dia 15 de outubro, o seguinte comunicado (disponível em https://cfsirp.pt), o qual, como é sempre de esperar, poucos terão lido:

Os membros do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (CFSIRP) sublinham que qualquer violação das obrigações de sigilo inerentes ao segredo de Estado tem de ser objeto de investigação e deve ser sancionada, sendo eles os primeiros responsáveis por cumprir e fazer cumprir tais obrigações e sendo eles, por consequência, os primeiros a colaborar com as autoridades competentes por aquela investigação.

Os membros do CFSIRP sublinham que não têm qualquer conhecimento da investigação que a revista diz que “apurou” existir, registando igualmente que nunca da mesma alguma vez lhes foi feita qualquer notificação.

Os membros do CFSIRP sublinham que, escrupulosamente e em permanência, cumprem e velam pelo cumprimento das obrigações de sigilo inerentes ao segredo de Estado.

Os membros do CFSIRP mais sublinham que já comunicaram à Senhora Procuradora-Geral da República e ao Senhor Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República o que consideraram pertinente face ao teor da elaboração jornalística referida no (...) presente Comunicado.

O conteúdo da referida comunicação à Senhora Procuradora-Geral da República foi classificado como confidencial. Mas não será difícil deduzir que o CFSIRP, face à capitis deminutio que sobre si próprio então ainda impendia, tivessem apelado, sem a mínima tonalidade de pressão, a tudo quanto fosse possível fazer para que a situação criada pudesse ser clarificada, quanto antes e fosse em que sentido fosse.

Já ao Presidente daquela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (numa comunicação disponível também em https://cfsirp.pt) sublinharam os membros do CFSIRP a seriedade da situação com que se viam confrontados, colocando-se de imediato à inteira disposição dos Deputados para, entre o mais, a prestação presencial das informações e dos esclarecimentos que fossem tidos por convenientes; e, naturalmente, foi dado conhecimento do conteúdo daquela outra missiva enviada à Procuradoria-Geral da República.

Passados onze dias, endereçou a Procuradoria-Geral da República ao CFSIRP uma missiva de resposta, também esta classificada como confidencial. Mas mesmo sem nada revelar do seu conteúdo, algo pode topicamente ser dito sobre o que ocorreu: denúncia anónima; inquirição do que, com a plena autonomia que o Ministério Público não pode deixar de ter, foi entendido necessário; encerramento do assunto.

Esta informação em boa hora recebida da Procuradoria-Geral da República foi pelo CFSIRP dada a conhecer, no passado dia 3 de novembro, à Assembleia da República, através de comunicação (igualmente disponível em https://cfsirp.pt) dirigida ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sublinhando constituir informação muito clara e antes desconhecida, que permite dissipar, felizmente em tempo útil, quaisquer suspeições sobre os membros do CFSIRP, mais reafirmando manterem-se estes à inteira disposição dos Deputados.

Termino este texto de reflexão e testemunho como o iniciei: estamos perante um episódio que não deve cair no esquecimento, mesmo em tempos de pandemia; um episódio que nos remete para os desafios que se colocam nas sociedades abertas ao funcionamento da Democracia e à dignidade da atuação das suas instituições.

Bastaram poucos dias para as instituições dialogarem e atuarem, na sua plena independência e autonomia, fortalecendo o relacionamento institucional, repondo a verdade e imunizando a credibilidade do órgão que é o CFSIRP, essencialmente intolerante a qualquer suspeição.

Este meu testemunho público é devido. Sobretudo em nome da integridade do próprio Sistema de Informações da República Portuguesa. E, já agora, em nome do respeito e da lealdade de que são credores todos quantos responsavelmente servem os Serviços de Informações, fazendo-o com inteligência, dedicação, competência e discrição, algo que me é grato testemunhar sem reservas.

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