abro Paginas Encontro Espelhos: Falta aqui tudo o que amámos juntos

19-06-2020
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Que morte é a sombra deste retrato,

onde eu assisto ao dobrar dos dias,

órfão de ti e de uma aventura suspensa?

Tu não eras só este perfil.

Tu não eras só este sossego aconchegado

nas mãos como num regaço.

Tu não eras apenas

este horizonte de areia com árvores distantes.

Falta aqui tudo o que amámos juntos,

o teu sorriso com as ruas dentro,

o secreto rumor das tuas veias

abrindo sulcos de palavras fundas

no rosto da noite inesperada.

Falta sobretudo à roda dos teus olhos

a pura ressonância da alegria.

Lembro-me de uma noite em que ficámos nus

para embalar um beijo ou uma lágrima,

lutando, de cortadas, até romper o dia,

largo, intacto,

nas pálpebras molhadas dos lírios.

Tu não eras ainda este perfil

com uma rosa de cinza na mão direita.

Eu andava dentro de ti

como um pequeno rio de sol

dentro da semente,

porque nós – é preciso dizê-lo –

tínhamos nascido um dentro do outro

naquela noite.

Esse é o teu rosto verdadeiro;

aquele rosto que vou juntando ao teu retrato

como quando era pequeno:

recortando aqui,

colando ali,

até que uma fonte rasgue a tua boca

e a noite fique transbordante de água.

Eugénio de Andrade 

Que morte é a sombra deste retrato,

onde eu assisto ao dobrar dos dias,

órfão de ti e de uma aventura suspensa?

Tu não eras só este perfil.

Tu não eras só este sossego aconchegado

nas mãos como num regaço.

Tu não eras apenas

este horizonte de areia com árvores distantes.

Falta aqui tudo o que amámos juntos,

o teu sorriso com as ruas dentro,

o secreto rumor das tuas veias

abrindo sulcos de palavras fundas

no rosto da noite inesperada.

Falta sobretudo à roda dos teus olhos

a pura ressonância da alegria.

Lembro-me de uma noite em que ficámos nus

para embalar um beijo ou uma lágrima,

lutando, de cortadas, até romper o dia,

largo, intacto,

nas pálpebras molhadas dos lírios.

Tu não eras ainda este perfil

com uma rosa de cinza na mão direita.

Eu andava dentro de ti

como um pequeno rio de sol

dentro da semente,

porque nós – é preciso dizê-lo –

tínhamos nascido um dentro do outro

naquela noite.

Esse é o teu rosto verdadeiro;

aquele rosto que vou juntando ao teu retrato

como quando era pequeno:

recortando aqui,

colando ali,

até que uma fonte rasgue a tua boca

e a noite fique transbordante de água.

Eugénio de Andrade 

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