O Peixe Nosso de Cada Dia

29-09-2020
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Em todo o mundo, as pessoas dependem do peixe como fonte de alimento e de rendimento. Mas nas últimas décadas percebemos que o que podemos tirar do mar tem limites.

Vai para o mar às 4 da manhã e volta no dia seguinte a meio da tarde. Manuel é pescador e Mestre num pesqueiro de pesca artesanal, onde se usam os "cofres" uma espécie de armadilha, caixa fechada com rede que é deitada ao mar com o isco. Esta é a técnica mais usada na apanha do polvo e do caranguejo.

Habitualmente descarrega no porto de Peniche. Tem 63 anos e já pesca desde os 15. A coragem acompanha-o sempre que vai para o mar alto, mas confessa que com ele também leva o medo. Já tem uma razoável coleção de sustos, o último, quando o pequeno barco em que trabalhava se virou e obrigou toda a tripulação a ficar mais de 3 horas dentro de água à espera de socorro. Aconteceu ao largo de Porto de Barcas. Manuel e os restantes pescadores foram salvos por pequenas bóias que tinham a bordo.

Como a grande maioria dos pescadores de pequenas embarcações, Manuel não tem um salário fixo mensal. Ganha consoante o que apanha e por isso, ainda que os cofres do pescado venham cheios, o cofre do Manuel, aquele de que depende para viver, permanece praticamente vazio. Ganha cerca de 15 mil euros por ano. Uma das razões para que cada vez menos jovens queiram enveredar por este caminho, mas não a única. Todavia, o futuro adivinha-se parco em mão de obra nesta atividade. Os chamados homens da máquina, os que conduzem as embarcações são ainda mais raros que os pescadores que só descansam quando as condições climatéricas impedem os barcos de zarpar. 

O Sagittarius, a embarcação imponente atracada no porto de Peniche é de Aveiro e dedica-se ao arrasto. “Atualmente é a embarcação de pesca que mais fatura com a venda de peixe em Portugal.” Confidencia-nos o Contra-Meste, com um rasgo de orgulho. António José queria ter sido eletricista mas acabou por seguir as pisadas do pai e dos irmãos que já eram pescadores. 

Desta vez o Sagittarius andou cerca de 24 horas a 40 milhas de Peniche. António José diz que o mestre é destemido e arrisca. Por vezes, já as tempestades obrigaram embarcações mais pequenas a vir para terra, e ainda o Sagittarius afronta a bravura do mar só desistindo da pesca quando o nível de risco chega ao vermelho. “O objectivo é aproveitar quando não há fartura na lota para tirar o máximo de rentabilidade possível. Sem a concorrência das embarcações de menor porte, o Sagittarius pode vender o peixe mais caro.”

O pior susto que apanhou foi quando a meio de um temporal, a rede já carregada de peixe, foi apanhada pela hélice durante a recolha. Com a barra da Figueira da Foz fechada e a recusa da ajuda do porto de Aveiro devido ao mau tempo, a tripulação do Sagittarius viu a vida a andar para trás. Acabou tudo bem graças a um reboque que saiu do porto de Leixões, e atravessou a tormenta até chegar à embarcação que poderia ter ali naufragado. Nunca mais se esqueceu.

No sagittarius os 9 elementos da tripulação têm um salário base de 174 euros. São as percentagens nas quotas de pesca que fazem toda a diferença. Maior ou menor, consoante o posto. O Meste é quem recebe mais. Por norma, dois dias no mar rendem cerca de 8 mil euros. 

José Manuel é funcionário da Doca Pesca de Peniche já há 19 anos. O seu trabalho é controlar o peixe que sai das embarcações, compõe as caixas na passadeira que passa pela balança e termina o seu percurso no leilão que os vários compradores aguardam pacientemente nas bancadas. Para além de José Manuel há mais 24 trabalhadores na lota.

À nossa frente aparecem caixas com corvinas enormes, cada uma com mais de 20 kg e serão vendidas a cerca de 12€ o kilo. Uma corvina destas dimensões renderá facilmente 240 euros. Ao valor de compra acrescem os 6% de Iva mais 10% da percentagem paga à Doca Pesca.

Aqui só compram profissionais do ramo. Não há lugar para o consumidor final. Mário Rui é um dos compradores. Leva o peixe que aqui compra para o mercado abastecedor de Lisboa em Almada. De comando na mão fica atento aos painéis que vão dando a indicação das licitações. Tem semanas de comprar 20 mil euros em peixe, boa parte dele acaba nos melhores restaurantes de Lisboa.

A sardinha, que como já vimos é cada vez menos, está a ser vendida a cerca de 120 euros o cabaz. Um cabaz tem 22,5 kg. E a sardinha vende-se sempre embora não seja considerada o peixe bom. O chamado peixe bom, um robalo de mar, por exemplo, acaba quase sempre por ir para o estrangeiro. Itália ou Inglaterra, países onde o peixe português é muito apreciado. "Quem é que dá 40 euros por 1 kilo de peixe? Ninguém. Ou vai para os grandes hotéis onde o consumidor final paga um valor exorbitante por uma refeição ou vai para fora do país. Por cá, vão sendo cada vez menos as bolsas que se abrem para pagar valores tão elevados.” Confessa.

Maria Emília vem da Atouguia da Baleia, é vendedora ambulante de peixe. Percorre algumas aldeias do concelho de Peniche e outras de Óbidos. Diz que o negócio ainda vai dando para o gasto. Mas cada vez menos. Todos os dias vai à lota comprar peixe fresco, mas se antes levava diariamente cerca de 600 € em peixe, agora gasta 100 ou 200€. O facto da maioria das pessoas ter carro para se transportar à cidade ou vila mais próxima, ajudou a que o número de clientes que aguardava o apito caraterístico do peixeiro reduzisse substancialmente.

O bacalhau, antes o maior amigo dos pobres, cansou-se de ser servido em mesas parcas. Desde há já umas décadas que trocou o azeite e alho pelas mil e uma formas de se deixar cozinhar. Hoje, entra na cozinha nouvelle e gourmet. Vende-se caro. “Para os pobres sobram, sobretudo, a cavala e o carapau negro, que são os mais baratos.”  Confidencia Maria Emília.

No Mercado

Maria Helena Perdigão tem 69 anos, veio de Algés há quase 40 para constituir família. Depressa se tornou vendedora de peixe no Mercado do Bombarral continuando na atividade que conhece desde sempre. Filha de pai pescador passou a infância e adolescência a vender o que o pai pescava, à porta da doca de Algés. 

"Uma vida dura, principalmente no inverno" É assim que começa por descrever o seu dia-a-dia. "No verão faz-se bem. No inverno, vir para aqui ainda com a noite cerrada e o frio, meter as mãos no gelo e amanhar o peixe...é muito difícil." Desabafa.

Um trabalho difícil que Maria Helena, a "Lena" como é conhecida pelos seus fregueses, não troca por nada deste mundo. "Gosto muito disto. Já são muitos anos a virar peixe!” (risos) Quantos anos? Perguntamos. "Já estou aqui há 37 anos. Foi aqui que criei as minhas filhas. O que me custa mais é esperar os fregueses que às vezes não vêm. Há dias que são muito fracos em vendas." 

"Dizem que a vida agora é muito dura, mas não é. Antigamente sim, passávamos por muitas privações. Para além de mim, havia lá em casa mais 6 irmãos, com os meus pais eramos 9 e só o meu pai ganhava para a casa. Havia invernos que ele não saía para a pesca. Não tínhamos o que comer. Além disso, os pescadores não tinham salários. Viviam do que lhes rendessem as suas tecas."

Lena explica-nos que uma teca era uma medida de peixe que cada pescador recebia como pagamento. Do pescado, cada um recebia uma quantidade correspondente ao valor do seu trabalho e fazia com ele o que quisesse. Ou levavam para casa para alimentar a família ou vendiam. "O meu pai vendia. Com o dinheiro da venda da sua teca comprava pão, batatas, carne e pagava outras contas da casa." E acrescenta: "Vivíamos com muita miséria. Se calhar, ainda assim éramos mais felizes que muita gente que tem tanta coisa agora. Nós contentávamo-nos com pouco. Hoje as pessoas não se contentam com nada." 

E os portugueses comem mais peixe ou mais carne?

A melhor época de venda de peixe é o verão. Não só porque no verão há a vantagem de haver mais clientes, muitos deles oriundos de Lisboa que têm casa no concelho, ou os emigrantes que vêm de férias. Sobretudo, no verão consome-se mais peixe. 

A sardinha que foi durante anos a "princesa do povo", vai a pouco- e -pouco perdendo o estatuto e arrisca-se mesmo a desaparecer completamente da mesa dos portugueses. Em julho deste ano, o Conselho Internacional para a Exploração do Mar recomendou a suspensão total da captura deste peixe por um período mínimo de 15 anos. Todavia, em Agosto, o governo português autorizou a frota pesqueira nacional a pescar mais 4.760 toneladas de sardinha até ao final do ano. Em declarações à Agência Lusa, a Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, afastou então o cenário da proibição da pesca da sardinha, afirmando que estender a interdição por tanto tempo "é impensável" e que “a fixação da quota que poderemos ter, só em outubro será definida, mas nunca será de parar a pesca”. “De facto, as alterações climáticas têm provocado alterações nos fluxos migratórios de várias espécies e aquelas que haviam maioritariamente nos países do sul estão também a aparecer nos países do norte, à procura de águas com temperaturas mais frias que costumavam existir na nossa costa”, declarou à Lusa.

Sendo 70 por cento do peixe comercializado em Portugal vendido nas grandes superfícies, a Greenpeace entende que "cabe a estes grupos defender os direitos dos consumidores "e "influenciar o modo como a indústria de pesca opera".

A Greenpeace defende também que os supermercados devem retirar das prateleiras espécies cuja captura (no caso do peixe selvagem) ou cultivo (no caso do peixe de viveiro) tenha um impacto negativo no ecossistema marinho e devem ainda avaliar se as espécies que vendem são provenientes de stocks que estão gravemente ameaçados. Entre estas contam-se algumas das mais consumidas em Portugal, como o bacalhau do Atlântico, o atum, o linguado, o peixe-espada branco, salmão, tamboril e várias espécies de pescada e camarão.

As estatísticas colocam os portugueses entre os povos com maior consumo de peixe per capita, em média 57 quilos por pessoa/ano. Somos o 3º país do mundo com maior consumo de peixe. No entanto, apesar do declínio crescente dos stocks de peixe a nível global estar no centro dos debates científicos, poucos consumidores estão conscientes da destruição e desperdícios associados às grandes indústrias de pesca e do impacto do seu consumo de peixe no ecossistema marinho.

Do governo aos cientistas, aquacultores grandes e pequenos, na nutrição e no ambiente, os atores do palco da produção de peixe em cativeiro em Portugal partilham consensos: a aquacultura veio para ficar. Mas ainda há medos, preconceitos. Ainda é preciso convencer os consumidores.

No hipermercado Continente do Bombarral encontramos na banca robalo de alto mar fresco a 22,95 € /kg, ao lado, robalinho de aquacultura, a 5 €/kg.

Todavia, se perguntarmos em qualquer restaurante se o robalo, a dourada ou outro peixe da ementa é de mar, a resposta é sempre: "Sim, sim. É selvagem."

Há 30 anos a pescada entrava na casa dos consumidores bradando o slogan: “Peixe congelado, alegria do cozinhado.” Há 30 anos, a grande maioria dos consumidores dizia: "Peixe congelado, nunca!" Todavia, o peixe congelado chega hoje a metade dos lares portugueses e este é o mesmo desafio que a aquacultura enfrenta.

Diz-se que o peixe de aquacultura é mais gordo, que não sabe ao mesmo. Mas em Portugal, contam-se pelos dedos as pessoas que já comeram salmão selvagem. As reservas do consumidor relativamente ao peixe produzido em cativeiro são enormes quando comparadas, por exemplo, ao camarão cuja produção é quase toda de aquacultura.

Os clientes da banca da "Lena", gostam de bom peixe, não têm é dinheiro para o comprar sempre que o desejam. Garoupa, corvina, raia, são os peixes que ela mais vende, mas compra-os uma clientela selecionada. O cherne, por exemplo, só vende por encomenda. É um peixe caro que chega a custar mais de 30 euros o kilo. Mas o goraz e o pargo também não estão ao alcance de todas as bolsas. Nem sempre é possível tê-los na banca. O salmão, mais uma vez é de viveiro. Vem da Noruega. A dourada também é quase toda de aquacultura, "mas há viveiros e viveiros!" alerta Lena. "Há a dourada da Grécia que é criada a granulado, como os coelhos. Quando se está a amanhar desfaz-se toda. E nem cheira a peixe!"

Para a peixeira do Bombarral, o mais importante é continuar a ter o que vender. E quando lhe perguntamos se a preocupa deixar de ter sardinha para vender, garante estar tranquila. “A sardinha nem é dos peixes que mais vendo. Cada vez há mais gente que vive em apartamentos e assar sardinhas num apartamento é praticamente impossível. Mesmo quem tem a sorte de contar com um grelhador na varanda corre sempre o risco de incomodar os vizinhos.” E também este fator contribui em larga escala para diminuir o número de consumidores de peixe. Ainda assim, somos o 3º país do mundo que mais o consome.

Na doca pescas de Peniche nem todos os pescadores vêm satisfeitos com a recolha. Segundo Manuel, Mestre do barco de pesca artesanal "as redes dos barcos grandes apanham o peixe grande e o peixe pequeno. E também as regras de hoje têm taxas e mais taxas, e às vezes só se pode apanhar peixe numa determinada zona em que não há peixe.”

Falar hoje de aquacultura é falar destas três realidades: para o consumidor, a diferença de preço entre o peixe cultivado e o selvagem; o preconceito sobre um peixe que não é “do mar”; e a inevitável realidade de que as reservas de peixe no mar estão a esgotar-se.

O consumidor português tem um gosto requintado. Por exemplo: não come carpa, peixe de água doce cultivado na China. Prefere o robalo, a dourada, o salmão, para não falar no bacalhau ou no atum. Mas fora do país, um dos peixes mais consumidos na Europa do Norte ou até mesmo os Estados Unidos, é o alabote que está em vias de extinção e cuja elevada procura só poderá ser suplantada pela aquacultura.

A peixeira do Mercado do Bombarral pensa agora seriamente em mudar de vida. A saúde vai-se deteriorando, a idade avança, ao sábado já vêm as filhas para que a " Lena" descanse do trabalho árduo que a banca lhe dá, mesmo que os clientes sejam cada vez menos. E será apenas o preço do peixe o principal responsável por afastar a clientela da banca da Lena?

"A culpa não é só do preço do peixe. É também das condições da praça. Desde que foi construída nunca mais sofreu qualquer obra de requalificação. Entramos e encontramos um espaço como se via há 40 anos. Já não há praças assim. Isto não tem condições nenhumas. As bancas são ridículas, o portão é completamente desajustado, o espaço mesmo que limpo diariamente pelos vendedores parece sempre sujo e descuidado porque está velho e degradado." E continua "A Camara Municipal do Bombarral aos poucos foi reduzindo o pessoal da limpeza e obras, nem vê-las! O projeto está lá...enfiado numa gaveta. Vamos ver se este novo Presidente olha para nós e faz finalmente o que os outros não fizeram..." Desabafa.

De qualquer modo, a indústria da carne é uma forte concorrente. O peixe que teve sempre a fama de "não puxar carroças" tem um preço muito superior à carne, sobretudo a de porco que é, no fim de contas, a mais presente na mesa dos portugueses.

Texto: Ana Cristina Pinto

Fotografia: Ana Cristina Pinto/ Eduardo Carvalho

Artigo publicado no Jornal Região Oeste

www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste

Associação da Economia do Mar "Fórum Oceano" apresenta Regresso ao Mar

Em todo o mundo, as pessoas dependem do peixe como fonte de alimento e de rendimento. Mas nas últimas décadas percebemos que o que podemos tirar do mar tem limites.

Vai para o mar às 4 da manhã e volta no dia seguinte a meio da tarde. Manuel é pescador e Mestre num pesqueiro de pesca artesanal, onde se usam os "cofres" uma espécie de armadilha, caixa fechada com rede que é deitada ao mar com o isco. Esta é a técnica mais usada na apanha do polvo e do caranguejo.

Habitualmente descarrega no porto de Peniche. Tem 63 anos e já pesca desde os 15. A coragem acompanha-o sempre que vai para o mar alto, mas confessa que com ele também leva o medo. Já tem uma razoável coleção de sustos, o último, quando o pequeno barco em que trabalhava se virou e obrigou toda a tripulação a ficar mais de 3 horas dentro de água à espera de socorro. Aconteceu ao largo de Porto de Barcas. Manuel e os restantes pescadores foram salvos por pequenas bóias que tinham a bordo.

Como a grande maioria dos pescadores de pequenas embarcações, Manuel não tem um salário fixo mensal. Ganha consoante o que apanha e por isso, ainda que os cofres do pescado venham cheios, o cofre do Manuel, aquele de que depende para viver, permanece praticamente vazio. Ganha cerca de 15 mil euros por ano. Uma das razões para que cada vez menos jovens queiram enveredar por este caminho, mas não a única. Todavia, o futuro adivinha-se parco em mão de obra nesta atividade. Os chamados homens da máquina, os que conduzem as embarcações são ainda mais raros que os pescadores que só descansam quando as condições climatéricas impedem os barcos de zarpar. 

O Sagittarius, a embarcação imponente atracada no porto de Peniche é de Aveiro e dedica-se ao arrasto. “Atualmente é a embarcação de pesca que mais fatura com a venda de peixe em Portugal.” Confidencia-nos o Contra-Meste, com um rasgo de orgulho. António José queria ter sido eletricista mas acabou por seguir as pisadas do pai e dos irmãos que já eram pescadores. 

Desta vez o Sagittarius andou cerca de 24 horas a 40 milhas de Peniche. António José diz que o mestre é destemido e arrisca. Por vezes, já as tempestades obrigaram embarcações mais pequenas a vir para terra, e ainda o Sagittarius afronta a bravura do mar só desistindo da pesca quando o nível de risco chega ao vermelho. “O objectivo é aproveitar quando não há fartura na lota para tirar o máximo de rentabilidade possível. Sem a concorrência das embarcações de menor porte, o Sagittarius pode vender o peixe mais caro.”

O pior susto que apanhou foi quando a meio de um temporal, a rede já carregada de peixe, foi apanhada pela hélice durante a recolha. Com a barra da Figueira da Foz fechada e a recusa da ajuda do porto de Aveiro devido ao mau tempo, a tripulação do Sagittarius viu a vida a andar para trás. Acabou tudo bem graças a um reboque que saiu do porto de Leixões, e atravessou a tormenta até chegar à embarcação que poderia ter ali naufragado. Nunca mais se esqueceu.

No sagittarius os 9 elementos da tripulação têm um salário base de 174 euros. São as percentagens nas quotas de pesca que fazem toda a diferença. Maior ou menor, consoante o posto. O Meste é quem recebe mais. Por norma, dois dias no mar rendem cerca de 8 mil euros. 

José Manuel é funcionário da Doca Pesca de Peniche já há 19 anos. O seu trabalho é controlar o peixe que sai das embarcações, compõe as caixas na passadeira que passa pela balança e termina o seu percurso no leilão que os vários compradores aguardam pacientemente nas bancadas. Para além de José Manuel há mais 24 trabalhadores na lota.

À nossa frente aparecem caixas com corvinas enormes, cada uma com mais de 20 kg e serão vendidas a cerca de 12€ o kilo. Uma corvina destas dimensões renderá facilmente 240 euros. Ao valor de compra acrescem os 6% de Iva mais 10% da percentagem paga à Doca Pesca.

Aqui só compram profissionais do ramo. Não há lugar para o consumidor final. Mário Rui é um dos compradores. Leva o peixe que aqui compra para o mercado abastecedor de Lisboa em Almada. De comando na mão fica atento aos painéis que vão dando a indicação das licitações. Tem semanas de comprar 20 mil euros em peixe, boa parte dele acaba nos melhores restaurantes de Lisboa.

A sardinha, que como já vimos é cada vez menos, está a ser vendida a cerca de 120 euros o cabaz. Um cabaz tem 22,5 kg. E a sardinha vende-se sempre embora não seja considerada o peixe bom. O chamado peixe bom, um robalo de mar, por exemplo, acaba quase sempre por ir para o estrangeiro. Itália ou Inglaterra, países onde o peixe português é muito apreciado. "Quem é que dá 40 euros por 1 kilo de peixe? Ninguém. Ou vai para os grandes hotéis onde o consumidor final paga um valor exorbitante por uma refeição ou vai para fora do país. Por cá, vão sendo cada vez menos as bolsas que se abrem para pagar valores tão elevados.” Confessa.

Maria Emília vem da Atouguia da Baleia, é vendedora ambulante de peixe. Percorre algumas aldeias do concelho de Peniche e outras de Óbidos. Diz que o negócio ainda vai dando para o gasto. Mas cada vez menos. Todos os dias vai à lota comprar peixe fresco, mas se antes levava diariamente cerca de 600 € em peixe, agora gasta 100 ou 200€. O facto da maioria das pessoas ter carro para se transportar à cidade ou vila mais próxima, ajudou a que o número de clientes que aguardava o apito caraterístico do peixeiro reduzisse substancialmente.

O bacalhau, antes o maior amigo dos pobres, cansou-se de ser servido em mesas parcas. Desde há já umas décadas que trocou o azeite e alho pelas mil e uma formas de se deixar cozinhar. Hoje, entra na cozinha nouvelle e gourmet. Vende-se caro. “Para os pobres sobram, sobretudo, a cavala e o carapau negro, que são os mais baratos.”  Confidencia Maria Emília.

No Mercado

Maria Helena Perdigão tem 69 anos, veio de Algés há quase 40 para constituir família. Depressa se tornou vendedora de peixe no Mercado do Bombarral continuando na atividade que conhece desde sempre. Filha de pai pescador passou a infância e adolescência a vender o que o pai pescava, à porta da doca de Algés. 

"Uma vida dura, principalmente no inverno" É assim que começa por descrever o seu dia-a-dia. "No verão faz-se bem. No inverno, vir para aqui ainda com a noite cerrada e o frio, meter as mãos no gelo e amanhar o peixe...é muito difícil." Desabafa.

Um trabalho difícil que Maria Helena, a "Lena" como é conhecida pelos seus fregueses, não troca por nada deste mundo. "Gosto muito disto. Já são muitos anos a virar peixe!” (risos) Quantos anos? Perguntamos. "Já estou aqui há 37 anos. Foi aqui que criei as minhas filhas. O que me custa mais é esperar os fregueses que às vezes não vêm. Há dias que são muito fracos em vendas." 

"Dizem que a vida agora é muito dura, mas não é. Antigamente sim, passávamos por muitas privações. Para além de mim, havia lá em casa mais 6 irmãos, com os meus pais eramos 9 e só o meu pai ganhava para a casa. Havia invernos que ele não saía para a pesca. Não tínhamos o que comer. Além disso, os pescadores não tinham salários. Viviam do que lhes rendessem as suas tecas."

Lena explica-nos que uma teca era uma medida de peixe que cada pescador recebia como pagamento. Do pescado, cada um recebia uma quantidade correspondente ao valor do seu trabalho e fazia com ele o que quisesse. Ou levavam para casa para alimentar a família ou vendiam. "O meu pai vendia. Com o dinheiro da venda da sua teca comprava pão, batatas, carne e pagava outras contas da casa." E acrescenta: "Vivíamos com muita miséria. Se calhar, ainda assim éramos mais felizes que muita gente que tem tanta coisa agora. Nós contentávamo-nos com pouco. Hoje as pessoas não se contentam com nada." 

E os portugueses comem mais peixe ou mais carne?

A melhor época de venda de peixe é o verão. Não só porque no verão há a vantagem de haver mais clientes, muitos deles oriundos de Lisboa que têm casa no concelho, ou os emigrantes que vêm de férias. Sobretudo, no verão consome-se mais peixe. 

A sardinha que foi durante anos a "princesa do povo", vai a pouco- e -pouco perdendo o estatuto e arrisca-se mesmo a desaparecer completamente da mesa dos portugueses. Em julho deste ano, o Conselho Internacional para a Exploração do Mar recomendou a suspensão total da captura deste peixe por um período mínimo de 15 anos. Todavia, em Agosto, o governo português autorizou a frota pesqueira nacional a pescar mais 4.760 toneladas de sardinha até ao final do ano. Em declarações à Agência Lusa, a Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, afastou então o cenário da proibição da pesca da sardinha, afirmando que estender a interdição por tanto tempo "é impensável" e que “a fixação da quota que poderemos ter, só em outubro será definida, mas nunca será de parar a pesca”. “De facto, as alterações climáticas têm provocado alterações nos fluxos migratórios de várias espécies e aquelas que haviam maioritariamente nos países do sul estão também a aparecer nos países do norte, à procura de águas com temperaturas mais frias que costumavam existir na nossa costa”, declarou à Lusa.

Sendo 70 por cento do peixe comercializado em Portugal vendido nas grandes superfícies, a Greenpeace entende que "cabe a estes grupos defender os direitos dos consumidores "e "influenciar o modo como a indústria de pesca opera".

A Greenpeace defende também que os supermercados devem retirar das prateleiras espécies cuja captura (no caso do peixe selvagem) ou cultivo (no caso do peixe de viveiro) tenha um impacto negativo no ecossistema marinho e devem ainda avaliar se as espécies que vendem são provenientes de stocks que estão gravemente ameaçados. Entre estas contam-se algumas das mais consumidas em Portugal, como o bacalhau do Atlântico, o atum, o linguado, o peixe-espada branco, salmão, tamboril e várias espécies de pescada e camarão.

As estatísticas colocam os portugueses entre os povos com maior consumo de peixe per capita, em média 57 quilos por pessoa/ano. Somos o 3º país do mundo com maior consumo de peixe. No entanto, apesar do declínio crescente dos stocks de peixe a nível global estar no centro dos debates científicos, poucos consumidores estão conscientes da destruição e desperdícios associados às grandes indústrias de pesca e do impacto do seu consumo de peixe no ecossistema marinho.

Do governo aos cientistas, aquacultores grandes e pequenos, na nutrição e no ambiente, os atores do palco da produção de peixe em cativeiro em Portugal partilham consensos: a aquacultura veio para ficar. Mas ainda há medos, preconceitos. Ainda é preciso convencer os consumidores.

No hipermercado Continente do Bombarral encontramos na banca robalo de alto mar fresco a 22,95 € /kg, ao lado, robalinho de aquacultura, a 5 €/kg.

Todavia, se perguntarmos em qualquer restaurante se o robalo, a dourada ou outro peixe da ementa é de mar, a resposta é sempre: "Sim, sim. É selvagem."

Há 30 anos a pescada entrava na casa dos consumidores bradando o slogan: “Peixe congelado, alegria do cozinhado.” Há 30 anos, a grande maioria dos consumidores dizia: "Peixe congelado, nunca!" Todavia, o peixe congelado chega hoje a metade dos lares portugueses e este é o mesmo desafio que a aquacultura enfrenta.

Diz-se que o peixe de aquacultura é mais gordo, que não sabe ao mesmo. Mas em Portugal, contam-se pelos dedos as pessoas que já comeram salmão selvagem. As reservas do consumidor relativamente ao peixe produzido em cativeiro são enormes quando comparadas, por exemplo, ao camarão cuja produção é quase toda de aquacultura.

Os clientes da banca da "Lena", gostam de bom peixe, não têm é dinheiro para o comprar sempre que o desejam. Garoupa, corvina, raia, são os peixes que ela mais vende, mas compra-os uma clientela selecionada. O cherne, por exemplo, só vende por encomenda. É um peixe caro que chega a custar mais de 30 euros o kilo. Mas o goraz e o pargo também não estão ao alcance de todas as bolsas. Nem sempre é possível tê-los na banca. O salmão, mais uma vez é de viveiro. Vem da Noruega. A dourada também é quase toda de aquacultura, "mas há viveiros e viveiros!" alerta Lena. "Há a dourada da Grécia que é criada a granulado, como os coelhos. Quando se está a amanhar desfaz-se toda. E nem cheira a peixe!"

Para a peixeira do Bombarral, o mais importante é continuar a ter o que vender. E quando lhe perguntamos se a preocupa deixar de ter sardinha para vender, garante estar tranquila. “A sardinha nem é dos peixes que mais vendo. Cada vez há mais gente que vive em apartamentos e assar sardinhas num apartamento é praticamente impossível. Mesmo quem tem a sorte de contar com um grelhador na varanda corre sempre o risco de incomodar os vizinhos.” E também este fator contribui em larga escala para diminuir o número de consumidores de peixe. Ainda assim, somos o 3º país do mundo que mais o consome.

Na doca pescas de Peniche nem todos os pescadores vêm satisfeitos com a recolha. Segundo Manuel, Mestre do barco de pesca artesanal "as redes dos barcos grandes apanham o peixe grande e o peixe pequeno. E também as regras de hoje têm taxas e mais taxas, e às vezes só se pode apanhar peixe numa determinada zona em que não há peixe.”

Falar hoje de aquacultura é falar destas três realidades: para o consumidor, a diferença de preço entre o peixe cultivado e o selvagem; o preconceito sobre um peixe que não é “do mar”; e a inevitável realidade de que as reservas de peixe no mar estão a esgotar-se.

O consumidor português tem um gosto requintado. Por exemplo: não come carpa, peixe de água doce cultivado na China. Prefere o robalo, a dourada, o salmão, para não falar no bacalhau ou no atum. Mas fora do país, um dos peixes mais consumidos na Europa do Norte ou até mesmo os Estados Unidos, é o alabote que está em vias de extinção e cuja elevada procura só poderá ser suplantada pela aquacultura.

A peixeira do Mercado do Bombarral pensa agora seriamente em mudar de vida. A saúde vai-se deteriorando, a idade avança, ao sábado já vêm as filhas para que a " Lena" descanse do trabalho árduo que a banca lhe dá, mesmo que os clientes sejam cada vez menos. E será apenas o preço do peixe o principal responsável por afastar a clientela da banca da Lena?

"A culpa não é só do preço do peixe. É também das condições da praça. Desde que foi construída nunca mais sofreu qualquer obra de requalificação. Entramos e encontramos um espaço como se via há 40 anos. Já não há praças assim. Isto não tem condições nenhumas. As bancas são ridículas, o portão é completamente desajustado, o espaço mesmo que limpo diariamente pelos vendedores parece sempre sujo e descuidado porque está velho e degradado." E continua "A Camara Municipal do Bombarral aos poucos foi reduzindo o pessoal da limpeza e obras, nem vê-las! O projeto está lá...enfiado numa gaveta. Vamos ver se este novo Presidente olha para nós e faz finalmente o que os outros não fizeram..." Desabafa.

De qualquer modo, a indústria da carne é uma forte concorrente. O peixe que teve sempre a fama de "não puxar carroças" tem um preço muito superior à carne, sobretudo a de porco que é, no fim de contas, a mais presente na mesa dos portugueses.

Texto: Ana Cristina Pinto

Fotografia: Ana Cristina Pinto/ Eduardo Carvalho

Artigo publicado no Jornal Região Oeste

www.facebook.com/JRO-Jornal-Região-Oeste

Associação da Economia do Mar "Fórum Oceano" apresenta Regresso ao Mar

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