Justiça restaurativa: Pôr as vítimas cara a cara com os agressores para “curar” ambos

22-11-2020
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“Tio Chico: esteja lá onde estiver, espero que ouça esta mensagem, que sai do meu coração e não do pensamento.” Carlos Barbosa teve de pôr em carta o “pedido de desculpa” que quis apresentar em pessoa, pelo “ato de cobardia” que cometera sobre o vendedor ambulante que percorria o seu bairro de lés a lés, na Reboleira (Amadora). Carlos procurou-o, 14 anos depois, mas não teve “a sorte de o encontrar com vida”. Daí a decisão de escrever a carta ao “tio” Chico, como o comerciante era conhecido no bairro onde o remetente cresceu e se perdeu.

No breu de um dia de 2003, afundado no vício da cocaína e sem dinheiro para comprar a próxima dose, Carlos viu o “tio Chico” a caminhar na sua direção. “Escondi-me num beco, agarrei-o por trás, mas ele virou a cabeça, reconheceu-me e começou a gritar, a dizer que ia contar aos meus pais”, recorda o então assaltante que se pôs em fuga, não conseguiu roubar nada à vítima e a deixou com uma lesão num cotovelo. O que lhe passou pela mente para atacar uma das pessoas mais conhecidas e estimadas no bairro? “Queria lá saber, só pensava em atingir os fins sem olhar a meios, estava a marimbar-me”, diz.

Em 2017, Carlos procurou o “tio Chico” para simbolizar no velhote a reparação que achava que devia às vítimas dos roubos (e do tráfico de droga) que lhe valeram duas condenações (em 1997 e em 2003) e que o levaram a passar, com um intervalo de cerca de 12 meses, 18 anos na prisão, de que saiu, em 2015, em liberdade condicional. Contas feitas, Carlos tem hoje 43 anos e começou a cumprir a primeira condenação aos vinte.

“Estou arrependido do mal que fiz a outros e a mim mesmo”, acrescenta na carta ao “tio Chico”: “Quando não se tem amor próprio, é impossível amar o próximo. Mas aprendi que a capacidade de reconhecer que errámos e de pedir desculpa e perdão não nos rebaixa em nada. Pelo contrário, faz-nos crescer como pessoas.”

“Não esqueço, mas perdoo-te”

À sua maneira, Carlos fez o que os especialistas chamam “círculo de justiça restaurativa”. Como pôde, confrontou-se com as vítimas dos seus crimes, assumiu responsabilidades pelo sofrimento que lhes causou e pediu-lhes que o desculpassem. Ao mesmo tempo, assegurou-lhes que ia mudar de vida. Mas, antes de escrever a carta com que tentou redimir-se dos “erros do passado”, Carlos teve, ele próprio, de arranjar forças para perdoar, enquanto vítima. E não era nada fácil: o visado, um agente da PSP, agredira-o com uma violência tal, à cacetada, na esquadra da Damaia, que lhe vazou e cegou o olho esquerdo.

Pouco depois de sair em liberdade condicional, em 2015 (ainda na prisão, cortou com a heroína, fechando-se quatro dias na sua cela individual, “a ressacar e a sofrer como um cão”), Carlos avistou por acaso, na estação de comboios da Reboleira, o agente da PSP que o deixou cego do olho esquerdo. Por amarga ironia da vida, conhecia-o bem – tinham sido colegas de escola, na infância. Dirigiu-se-lhe e cumprimentou-o com um “boa tarde”. O polícia ficou hirto, tenso e em silêncio, recorda Carlos que foi rápido na mensagem que lhe queria passar: “Não vou esquecer o que me fizeste. Não dá. Mas perdoo-te. Só te desejo tudo e nada – tudo o que te faça feliz e nada que te faça sofrer.” O visado manteve-se embatucado. Nem Carlos esperava dele uma resposta. Apenas quis cicatrizar aquela ferida da “melhor maneira”.

“Vergonha imensa”

Carlos Barbosa é um caso de estudo – não precisou de leis para, como agressor e vítima, construir as suas pontes de perdão. E, no entanto, a legislação nacional abre todas as portas, desde 2007, à justiça restaurativa. Mas, até hoje, apenas houve um círculo restaurativo a sério, que colocou cara a cara ofensores e vítimas dentro de uma prisão, a do Linhó, em Sintra, e fora dela. Além de ser caso único, os seus ecos perdem-se no tempo: aconteceu há mais de quatro anos, em julho de 2016…

O inevitável Carlos participou naquele projeto de justiça restaurativa, chamado “Building Bridges” (“Construir Pontes”), organizado com financiamento da União Europeia pela associação Confiar, IPSS que trabalha com reclusos há 21 anos. Entrou na componente exterior à prisão (estava em liberdade condicional), juntando-se a mais dois ex-ofensores que enfrentaram olhos nos olhos quatro vítimas de crimes similares aos que eles tinham cometido, em quatro sessões de duas horas e meia, uma por semana, numa sala de aulas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), no Alto da Ajuda (Lisboa). Com uma facilitadora a promover o diálogo numa trajetória definida, Carlos recorda o “espírito superpositivo” daqueles encontros e a “outra maneira de ver as coisas” que deles resultou.

A ideia da justiça restaurativa nasceu há 46 anos numa pequena cidade canadiana, Kitchener. Numa noite de 1974, Russ Kelly e um amigo, ambos com 18 anos e embriagados, esfaquearam pneus de automóveis, partiram vidros de janelas e até viraram um barco do avesso. Na manhã seguinte, quando a polícia os foi deter, eram suspeitos de 22 crimes contra a propriedade. Mas tiveram a sorte de dois agentes da liberdade condicional, Mark Yantzi e Dave Worth, sugerirem ao juiz uma forma diferente de punição. Em lugar da prisão preventiva, os dois rapazes (sem antecedentes criminais) iriam bater à porta de casa das suas 22 vítimas, pedir-lhes desculpa e chegar a um acordo de reparação dos danos. Embora relutante, o magistrado autorizou que avançassem com a ideia.

“Foi muito assustador”, conta hoje Russ Kelly, que se formou em Direito e dá palestras sobre o seu caso. “Estar cara a cara com aquelas pessoas, ver a raiva nos seus olhos e rostos fez-me sentir uma vergonha imensa.” Com a mediação de Mark Yantzi e de Dave Worth, seriam conseguidos acordos com todas as vítimas (desde um simples pedido de desculpa a reparações dos danos causados e a pagamentos de indemnizações). Se, com aquela idade, tivesse sido condenado a pena de prisão, “muito provavelmente tornar-me-ia uma pessoa revoltada e cedo voltaria para a cadeia”, diz Russ Kelly.

Há dez anos, a Justiça portuguesa pareceu arrancar em força em direção a este conceito complementar do sistema convencional. O sinal provinha do Sistema de Mediação Penal (SMP). Em 2009 e em 2010, tinham sido remetidos, no total daqueles dois anos, 555 processos-crime para mediação penal, dentro dos pressupostos estabelecidos por uma lei de 2007. Era preciso que o processo se encontrasse na fase de inquérito, que se tratasse de crimes dependentes de queixa e que o ilícito em causa previsse pena de prisão até cinco anos ou de multa. Ainda assim, abrangia um universo alargado de crimes – ofensas à integridade física simples ou por negligência, ameaça, difamação, injúria, violação de domicílio ou perturbação da vida privada, furto, abuso de confiança, dano, alteração de marcos, burla e usura.

Falsa partida

Se um procurador, dentro daqueles pressupostos, considerasse que a ressocialização do arguido podia ser alcançada pela mediação (gratuita), remetia o processo para o SMP, através de uma aplicação informática. Um mediador do Ministério da Justiça, formado e habilitado para o efeito, contactava então ofendido e arguido para o início das sessões de diálogo, com a obrigatória anuência de ambos. Havendo acordo, os seus termos eram comunicados ao Ministério Público, para homologação, o que equivalia à desistência da queixa.

À época em que aqueles animadores 555 processos remetidos para mediação surgiram, inquéritos oficiais indicavam que mais de 80% dos mediados diziam ter ficado satisfeitos ou muito satisfeitos com a alternativa que lhes fora proposta. Mas depois, inexplicavelmente, o número de processos remetidos ao SMP entrou numa descida a pique, até à quase inexistência a partir de 2017. “Não houve, ao nível político, a necessária dinamização e aposta, como aconteceu, por exemplo, com as pulseiras eletrónicas”, nota António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. “O projeto acabou por morrer por falta de sensibilização e de uma rede nacional a funcionar em pleno, com canais de comunicação entre procuradores e os mediadores disponíveis”, acrescenta. A VISÃO perguntou à secretária de Estado da Justiça, Anabela Pedroso, se o SMP há de continuar “cadáver” ou se será ressuscitado, e como. Não obtivemos resposta.

FOTO: Marcos Borga

Ativistas Sónia Reis e Luís Graça, da associação Confiar, IPSS que trabalha com reclusos há 21 anos

Na justiça restaurativa, “a vítima tem a oportunidade de contar a sua história e o impacto que o crime teve nela, na primeira pessoa”, diz Sónia Reis, coordenadora-executiva da Confiar e professora na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “Isto gera do lado do ofensor um processo de humanização da vítima, de individualização e de necessidade de reparação, que resulta da assunção de responsabilidade”, acrescenta. Contactada pela VISÃO, a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais informa que, tanto com reclusos a cumprir pena como com jovens, entre os 12 e os 16 anos, que cometeram crimes e se encontram internados em centros educativos, apenas concretiza programas “parcialmente restaurativos”, porque a vítima está presente de “forma virtual”. Ou seja, está ausente.

O projeto “Building Bridges”, de 2016, seguiu o modelo da Prison Fellowship International. As regras ditavam que não se confrontassem condenados com vítimas diretas. Os ofensores seriam autores materiais de crimes similares. E os agressores sexuais estavam excluídos.

Na sala de aulas do ISCSP, os três ex-ofensores presentes ouviram Luísa Barreiro contar, enquanto chorava, como lhe doeram e magoaram os nove assaltos à sua residência, no Algueirão, Sintra. Com as emoções à flor da pele, explicava-lhes o “mal causado, que ia além do crime”. A dirigente reformada da Função Pública, hoje com 72 anos, que trabalhou como voluntária em prisões, diz ter uma certeza: “Depois de lhes explicarmos as coisas, muitos reclusos gostavam de pedir desculpa às vítimas, de lhes mostrar que querem redimir-se.”

A justiça restaurativa à volta do mundo

Estudos de diversos países mostram que, além de aproximar os dois lados do mesmo crime, o conceito também diminui a reincidência

Nova Zelândia

Numa pesquisa que analisou casos de justiça restaurativa que se desenrolaram de 2008 a 2013, o governo neozelandês concluiu que a reincidência criminal em ilícitos violentos entre os ofensores participantes era 15% mais baixa num período posterior de 12 meses, em comparação com os agressores não participantes.

Áustria

Num estudo de dez anos, conduzido pela investigadora Christa Pelikan (2000-2010), centrado na violência doméstica, 80% das mulheres afetadas disseram que a mediação vítima-agressor contribuiu para a prevenção da reincidência.

Reino Unido

Numa avaliação a três projetos de justiça restaurativa, os investigadores divulgaram que 85% das vítimas e 80% dos agressores disseram estar satisfeitos, ou muito satisfeitos, com os processos.

Espanha

Em 2018, o governo basco adjudicou a uma ONG, Instituto de Reintegração Social de Euskadi (IRSE), a gestão dos serviços de justiça restaurativa nas 14 comarcas da comunidade autónoma. Logo no primeiro ano, os acordos nos casos penais trabalhados chegaram aos 80 por cento. Em 2019, a percentagem de acordos desceu para 75% – ainda assim, uma cifra muito positiva. Os crimes mais presentes nos casos de justiça restaurativa em que o IRSE trabalha são os de ameaça, coação, ofensas à integridade física graves e simples, e ilícitos contra a propriedade.

“Tio Chico: esteja lá onde estiver, espero que ouça esta mensagem, que sai do meu coração e não do pensamento.” Carlos Barbosa teve de pôr em carta o “pedido de desculpa” que quis apresentar em pessoa, pelo “ato de cobardia” que cometera sobre o vendedor ambulante que percorria o seu bairro de lés a lés, na Reboleira (Amadora). Carlos procurou-o, 14 anos depois, mas não teve “a sorte de o encontrar com vida”. Daí a decisão de escrever a carta ao “tio” Chico, como o comerciante era conhecido no bairro onde o remetente cresceu e se perdeu.

No breu de um dia de 2003, afundado no vício da cocaína e sem dinheiro para comprar a próxima dose, Carlos viu o “tio Chico” a caminhar na sua direção. “Escondi-me num beco, agarrei-o por trás, mas ele virou a cabeça, reconheceu-me e começou a gritar, a dizer que ia contar aos meus pais”, recorda o então assaltante que se pôs em fuga, não conseguiu roubar nada à vítima e a deixou com uma lesão num cotovelo. O que lhe passou pela mente para atacar uma das pessoas mais conhecidas e estimadas no bairro? “Queria lá saber, só pensava em atingir os fins sem olhar a meios, estava a marimbar-me”, diz.

Em 2017, Carlos procurou o “tio Chico” para simbolizar no velhote a reparação que achava que devia às vítimas dos roubos (e do tráfico de droga) que lhe valeram duas condenações (em 1997 e em 2003) e que o levaram a passar, com um intervalo de cerca de 12 meses, 18 anos na prisão, de que saiu, em 2015, em liberdade condicional. Contas feitas, Carlos tem hoje 43 anos e começou a cumprir a primeira condenação aos vinte.

“Estou arrependido do mal que fiz a outros e a mim mesmo”, acrescenta na carta ao “tio Chico”: “Quando não se tem amor próprio, é impossível amar o próximo. Mas aprendi que a capacidade de reconhecer que errámos e de pedir desculpa e perdão não nos rebaixa em nada. Pelo contrário, faz-nos crescer como pessoas.”

“Não esqueço, mas perdoo-te”

À sua maneira, Carlos fez o que os especialistas chamam “círculo de justiça restaurativa”. Como pôde, confrontou-se com as vítimas dos seus crimes, assumiu responsabilidades pelo sofrimento que lhes causou e pediu-lhes que o desculpassem. Ao mesmo tempo, assegurou-lhes que ia mudar de vida. Mas, antes de escrever a carta com que tentou redimir-se dos “erros do passado”, Carlos teve, ele próprio, de arranjar forças para perdoar, enquanto vítima. E não era nada fácil: o visado, um agente da PSP, agredira-o com uma violência tal, à cacetada, na esquadra da Damaia, que lhe vazou e cegou o olho esquerdo.

Pouco depois de sair em liberdade condicional, em 2015 (ainda na prisão, cortou com a heroína, fechando-se quatro dias na sua cela individual, “a ressacar e a sofrer como um cão”), Carlos avistou por acaso, na estação de comboios da Reboleira, o agente da PSP que o deixou cego do olho esquerdo. Por amarga ironia da vida, conhecia-o bem – tinham sido colegas de escola, na infância. Dirigiu-se-lhe e cumprimentou-o com um “boa tarde”. O polícia ficou hirto, tenso e em silêncio, recorda Carlos que foi rápido na mensagem que lhe queria passar: “Não vou esquecer o que me fizeste. Não dá. Mas perdoo-te. Só te desejo tudo e nada – tudo o que te faça feliz e nada que te faça sofrer.” O visado manteve-se embatucado. Nem Carlos esperava dele uma resposta. Apenas quis cicatrizar aquela ferida da “melhor maneira”.

“Vergonha imensa”

Carlos Barbosa é um caso de estudo – não precisou de leis para, como agressor e vítima, construir as suas pontes de perdão. E, no entanto, a legislação nacional abre todas as portas, desde 2007, à justiça restaurativa. Mas, até hoje, apenas houve um círculo restaurativo a sério, que colocou cara a cara ofensores e vítimas dentro de uma prisão, a do Linhó, em Sintra, e fora dela. Além de ser caso único, os seus ecos perdem-se no tempo: aconteceu há mais de quatro anos, em julho de 2016…

O inevitável Carlos participou naquele projeto de justiça restaurativa, chamado “Building Bridges” (“Construir Pontes”), organizado com financiamento da União Europeia pela associação Confiar, IPSS que trabalha com reclusos há 21 anos. Entrou na componente exterior à prisão (estava em liberdade condicional), juntando-se a mais dois ex-ofensores que enfrentaram olhos nos olhos quatro vítimas de crimes similares aos que eles tinham cometido, em quatro sessões de duas horas e meia, uma por semana, numa sala de aulas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), no Alto da Ajuda (Lisboa). Com uma facilitadora a promover o diálogo numa trajetória definida, Carlos recorda o “espírito superpositivo” daqueles encontros e a “outra maneira de ver as coisas” que deles resultou.

A ideia da justiça restaurativa nasceu há 46 anos numa pequena cidade canadiana, Kitchener. Numa noite de 1974, Russ Kelly e um amigo, ambos com 18 anos e embriagados, esfaquearam pneus de automóveis, partiram vidros de janelas e até viraram um barco do avesso. Na manhã seguinte, quando a polícia os foi deter, eram suspeitos de 22 crimes contra a propriedade. Mas tiveram a sorte de dois agentes da liberdade condicional, Mark Yantzi e Dave Worth, sugerirem ao juiz uma forma diferente de punição. Em lugar da prisão preventiva, os dois rapazes (sem antecedentes criminais) iriam bater à porta de casa das suas 22 vítimas, pedir-lhes desculpa e chegar a um acordo de reparação dos danos. Embora relutante, o magistrado autorizou que avançassem com a ideia.

“Foi muito assustador”, conta hoje Russ Kelly, que se formou em Direito e dá palestras sobre o seu caso. “Estar cara a cara com aquelas pessoas, ver a raiva nos seus olhos e rostos fez-me sentir uma vergonha imensa.” Com a mediação de Mark Yantzi e de Dave Worth, seriam conseguidos acordos com todas as vítimas (desde um simples pedido de desculpa a reparações dos danos causados e a pagamentos de indemnizações). Se, com aquela idade, tivesse sido condenado a pena de prisão, “muito provavelmente tornar-me-ia uma pessoa revoltada e cedo voltaria para a cadeia”, diz Russ Kelly.

Há dez anos, a Justiça portuguesa pareceu arrancar em força em direção a este conceito complementar do sistema convencional. O sinal provinha do Sistema de Mediação Penal (SMP). Em 2009 e em 2010, tinham sido remetidos, no total daqueles dois anos, 555 processos-crime para mediação penal, dentro dos pressupostos estabelecidos por uma lei de 2007. Era preciso que o processo se encontrasse na fase de inquérito, que se tratasse de crimes dependentes de queixa e que o ilícito em causa previsse pena de prisão até cinco anos ou de multa. Ainda assim, abrangia um universo alargado de crimes – ofensas à integridade física simples ou por negligência, ameaça, difamação, injúria, violação de domicílio ou perturbação da vida privada, furto, abuso de confiança, dano, alteração de marcos, burla e usura.

Falsa partida

Se um procurador, dentro daqueles pressupostos, considerasse que a ressocialização do arguido podia ser alcançada pela mediação (gratuita), remetia o processo para o SMP, através de uma aplicação informática. Um mediador do Ministério da Justiça, formado e habilitado para o efeito, contactava então ofendido e arguido para o início das sessões de diálogo, com a obrigatória anuência de ambos. Havendo acordo, os seus termos eram comunicados ao Ministério Público, para homologação, o que equivalia à desistência da queixa.

À época em que aqueles animadores 555 processos remetidos para mediação surgiram, inquéritos oficiais indicavam que mais de 80% dos mediados diziam ter ficado satisfeitos ou muito satisfeitos com a alternativa que lhes fora proposta. Mas depois, inexplicavelmente, o número de processos remetidos ao SMP entrou numa descida a pique, até à quase inexistência a partir de 2017. “Não houve, ao nível político, a necessária dinamização e aposta, como aconteceu, por exemplo, com as pulseiras eletrónicas”, nota António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. “O projeto acabou por morrer por falta de sensibilização e de uma rede nacional a funcionar em pleno, com canais de comunicação entre procuradores e os mediadores disponíveis”, acrescenta. A VISÃO perguntou à secretária de Estado da Justiça, Anabela Pedroso, se o SMP há de continuar “cadáver” ou se será ressuscitado, e como. Não obtivemos resposta.

FOTO: Marcos Borga

Ativistas Sónia Reis e Luís Graça, da associação Confiar, IPSS que trabalha com reclusos há 21 anos

Na justiça restaurativa, “a vítima tem a oportunidade de contar a sua história e o impacto que o crime teve nela, na primeira pessoa”, diz Sónia Reis, coordenadora-executiva da Confiar e professora na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “Isto gera do lado do ofensor um processo de humanização da vítima, de individualização e de necessidade de reparação, que resulta da assunção de responsabilidade”, acrescenta. Contactada pela VISÃO, a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais informa que, tanto com reclusos a cumprir pena como com jovens, entre os 12 e os 16 anos, que cometeram crimes e se encontram internados em centros educativos, apenas concretiza programas “parcialmente restaurativos”, porque a vítima está presente de “forma virtual”. Ou seja, está ausente.

O projeto “Building Bridges”, de 2016, seguiu o modelo da Prison Fellowship International. As regras ditavam que não se confrontassem condenados com vítimas diretas. Os ofensores seriam autores materiais de crimes similares. E os agressores sexuais estavam excluídos.

Na sala de aulas do ISCSP, os três ex-ofensores presentes ouviram Luísa Barreiro contar, enquanto chorava, como lhe doeram e magoaram os nove assaltos à sua residência, no Algueirão, Sintra. Com as emoções à flor da pele, explicava-lhes o “mal causado, que ia além do crime”. A dirigente reformada da Função Pública, hoje com 72 anos, que trabalhou como voluntária em prisões, diz ter uma certeza: “Depois de lhes explicarmos as coisas, muitos reclusos gostavam de pedir desculpa às vítimas, de lhes mostrar que querem redimir-se.”

A justiça restaurativa à volta do mundo

Estudos de diversos países mostram que, além de aproximar os dois lados do mesmo crime, o conceito também diminui a reincidência

Nova Zelândia

Numa pesquisa que analisou casos de justiça restaurativa que se desenrolaram de 2008 a 2013, o governo neozelandês concluiu que a reincidência criminal em ilícitos violentos entre os ofensores participantes era 15% mais baixa num período posterior de 12 meses, em comparação com os agressores não participantes.

Áustria

Num estudo de dez anos, conduzido pela investigadora Christa Pelikan (2000-2010), centrado na violência doméstica, 80% das mulheres afetadas disseram que a mediação vítima-agressor contribuiu para a prevenção da reincidência.

Reino Unido

Numa avaliação a três projetos de justiça restaurativa, os investigadores divulgaram que 85% das vítimas e 80% dos agressores disseram estar satisfeitos, ou muito satisfeitos, com os processos.

Espanha

Em 2018, o governo basco adjudicou a uma ONG, Instituto de Reintegração Social de Euskadi (IRSE), a gestão dos serviços de justiça restaurativa nas 14 comarcas da comunidade autónoma. Logo no primeiro ano, os acordos nos casos penais trabalhados chegaram aos 80 por cento. Em 2019, a percentagem de acordos desceu para 75% – ainda assim, uma cifra muito positiva. Os crimes mais presentes nos casos de justiça restaurativa em que o IRSE trabalha são os de ameaça, coação, ofensas à integridade física graves e simples, e ilícitos contra a propriedade.

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