O Calisto Elói pode vir até Lisboa?

29-11-2019
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A tensão entre democracia representativa e democracia partidária é impossível de resolver enquanto as direções partidárias dispuserem do monopólio de nomeação das candidaturas e de indicação dos nomes para os lugares elegíveis.

Um extraordinário personagem inventado por Camilo Castelo Branco em A Queda dum Anjo, Calisto Elói Benevides de Barbuda, morgado da Agra das Freimas, é eleito deputado às Cortes quando, depois de um discurso no adro da Igreja de Miranda, salta à vista dos seus concidadãos que seria o homem ideal para os representar em Lisboa.

Os maiorais do partido bem tentam, por todos os meios, impor o seu candidato: “A authoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o governo da inutilidade da lucta. Não obstante, o ministro do reino redobrou instancias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escripto revistas de espectaculos, e recitava versos d’elle ao piano, cuja falta ou demasia de syllabas a bulha dos sonoros martellos disfarçava. Redarguiu o administrador do concelho ao governador civil, que pedia sua demissão para não soffrer a inevitavel e desairosa derrota.

Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que beliscado na sua vaidade assanhou-se contra o governo, escrevendo umas feras objurgatorias, as quaes, se tivessem grammatica á proporção do fel, o governo havia de pôr as mãos na cabeça e demittir-se.”

Eram os tempos em que, em Portugal, os deputados eram eleitos em círculo uninominal. Independentemente das virtudes e merecimentos do morgado da Agra, do que não há dúvida é que o povo da sua terra, do seu círculo eleitoral, decidiu propô-lo à eleição contra a candidatura de “um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escripto revistas de espectaculos, e recitava versos d’elle ao piano”, que o Governo lhe queria impor…

Winston Churchill, democrata se os há, afirmou um dia que a democracia é o pior dos sistemas com exceção de todos os outros. O que isto quer dizer é que por muito irritante que a democracia possa parecer, e por vezes seja, é de muito longe o regime político que melhor permite dar expressão concreta à vontade soberana do povo, mediando-a através da eleição dos seus representantes a uma assembleia representativa.

Manda a verdade que se diga que não há democracia representativa sem partidos políticos, caso contrário seria democracia direta ou plebiscitária, caminho andado para a ditadura de uns ou de outros. E que também não há partidos sem um mínimo de disciplina interna e unidade de propósito. Os partidos não são, nem podem ser, um grupo de pessoas cujo único objetivo é o de atingir o poder e ficar por lá. Convém que digam ao que vêm e que os seus membros eleitos mantenham disciplina partidária, ao menos no essencial.

Mas os partidos não podem arvorar-se em donos da democracia e pretender dispor dela como se fosse coisa sua e não do povo mandante, como se esse povo não existisse e, nas palavras de Camilo, como se “os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se [houvessem] levantado com selvagem independencia e [tivessem] fugido com a urna para os desfiladeiros das suas serras”. Não fugiram, estão lá.

O problema é que agrada muito aos caciques partidários poderem enxamear as listas dos modernos “poetas de Lisboa, mancebos de muitas promessas ao futuro”, que na sua versão atualizada são os rapazes e raparigas dos círculos partidários próximos dos chefes.

Esta tensão entre democracia representativa e democracia partidária, de mais a mais num país onde as instituições mediadoras entre o poder e a sociedade civil são inadequadas ou inexistentes, é impossível de resolver enquanto as direções partidárias dispuserem do monopólio de nomeação das candidaturas e de indicação dos nomes para todos os lugares elegíveis.

Em boa verdade, o nosso atual sistema, que é de facto o de uma democracia dos partidos, originou-se numa forte reação, em 1976, à inexistência deles no regime anterior e manteve-se porque ao longo das décadas tivemos um imenso consenso partidário acerca das principais questões de governo do país e dos grandes desígnios nacionais.

Esse consenso está, arrisco-me a dizê-lo, à beira de desaparecer: vários comentadores têm chamado a atenção para uma cada vez maior polarização da vida política e para o encolhimento do centro político, aquele local onde PS e PSD ganharam eleições ao longo das décadas e onde os dois, juntos, tinham à volta de 80% do eleitorado.

No resto da Europa, problemas novos e nunca antes vistos têm pulverizado o quadro político que prevaleceu desde a ii Guerra Mundial: o fenómeno das imigrações, para começar, tem sido um fator de polarização crescente da vida política desses países; os problemas da desigualdade, que vão agravar-se inevitavelmente com a emergência da robotização da economia e que vão alienar, sucessivamente, classe profissional após classe profissional, até afastar a grande maioria de qualquer centro de decisão – para citar apenas dois.

Já nem falo dos clássicos problemas da alienação das soberanias nacionais perante o necessário e progressivo aprofundamento da União Europeia, ou dos problemas decorrentes do aprofundamento do euro, com a sua procissão de reforços dos poderes do centro e enfraquecimento das periferias.

Esses são problemas “bons”, daqueles em que, no meu entender, se perde de um lado e se ganha mais do outro. Os problemas que vão polarizar verdadeiramente a sociedade são aqueles em que, por virtude da mecânica da evolução económica global, povos inteiros se vão ver sem qualquer poder para alterar o seu destino, e já nem falo do que poderá advir das alterações climáticas se os “altero-climatologistas” tiverem razão.

O que prevejo é que o consenso em que temos vivido sobre as questões essenciais se vai desfazer e que os partidos se verão impossibilitados de conduzir as suas políticas como se nada se passasse.

A minha conclusão é que o nosso sistema político necessita urgentemente de ganhar flexibilidade e representatividade. Esse acréscimo de resistência pode vir da criação de círculos uninominais onde os modernos Calistos Elóis, mais ou menos credíveis mas significativamente representativos dos seus concidadãos, possam fazer-se eleger e trazer ao fórum nacional as questões que os ocupam e preocupam, e não aquelas, ou não só aquelas, que os diretórios partidários decidam.

Com tanto meio de transporte que há hoje em dia, Calisto Elói não pode vir a Lisboa?

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

A tensão entre democracia representativa e democracia partidária é impossível de resolver enquanto as direções partidárias dispuserem do monopólio de nomeação das candidaturas e de indicação dos nomes para os lugares elegíveis.

Um extraordinário personagem inventado por Camilo Castelo Branco em A Queda dum Anjo, Calisto Elói Benevides de Barbuda, morgado da Agra das Freimas, é eleito deputado às Cortes quando, depois de um discurso no adro da Igreja de Miranda, salta à vista dos seus concidadãos que seria o homem ideal para os representar em Lisboa.

Os maiorais do partido bem tentam, por todos os meios, impor o seu candidato: “A authoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o governo da inutilidade da lucta. Não obstante, o ministro do reino redobrou instancias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escripto revistas de espectaculos, e recitava versos d’elle ao piano, cuja falta ou demasia de syllabas a bulha dos sonoros martellos disfarçava. Redarguiu o administrador do concelho ao governador civil, que pedia sua demissão para não soffrer a inevitavel e desairosa derrota.

Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que beliscado na sua vaidade assanhou-se contra o governo, escrevendo umas feras objurgatorias, as quaes, se tivessem grammatica á proporção do fel, o governo havia de pôr as mãos na cabeça e demittir-se.”

Eram os tempos em que, em Portugal, os deputados eram eleitos em círculo uninominal. Independentemente das virtudes e merecimentos do morgado da Agra, do que não há dúvida é que o povo da sua terra, do seu círculo eleitoral, decidiu propô-lo à eleição contra a candidatura de “um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escripto revistas de espectaculos, e recitava versos d’elle ao piano”, que o Governo lhe queria impor…

Winston Churchill, democrata se os há, afirmou um dia que a democracia é o pior dos sistemas com exceção de todos os outros. O que isto quer dizer é que por muito irritante que a democracia possa parecer, e por vezes seja, é de muito longe o regime político que melhor permite dar expressão concreta à vontade soberana do povo, mediando-a através da eleição dos seus representantes a uma assembleia representativa.

Manda a verdade que se diga que não há democracia representativa sem partidos políticos, caso contrário seria democracia direta ou plebiscitária, caminho andado para a ditadura de uns ou de outros. E que também não há partidos sem um mínimo de disciplina interna e unidade de propósito. Os partidos não são, nem podem ser, um grupo de pessoas cujo único objetivo é o de atingir o poder e ficar por lá. Convém que digam ao que vêm e que os seus membros eleitos mantenham disciplina partidária, ao menos no essencial.

Mas os partidos não podem arvorar-se em donos da democracia e pretender dispor dela como se fosse coisa sua e não do povo mandante, como se esse povo não existisse e, nas palavras de Camilo, como se “os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se [houvessem] levantado com selvagem independencia e [tivessem] fugido com a urna para os desfiladeiros das suas serras”. Não fugiram, estão lá.

O problema é que agrada muito aos caciques partidários poderem enxamear as listas dos modernos “poetas de Lisboa, mancebos de muitas promessas ao futuro”, que na sua versão atualizada são os rapazes e raparigas dos círculos partidários próximos dos chefes.

Esta tensão entre democracia representativa e democracia partidária, de mais a mais num país onde as instituições mediadoras entre o poder e a sociedade civil são inadequadas ou inexistentes, é impossível de resolver enquanto as direções partidárias dispuserem do monopólio de nomeação das candidaturas e de indicação dos nomes para todos os lugares elegíveis.

Em boa verdade, o nosso atual sistema, que é de facto o de uma democracia dos partidos, originou-se numa forte reação, em 1976, à inexistência deles no regime anterior e manteve-se porque ao longo das décadas tivemos um imenso consenso partidário acerca das principais questões de governo do país e dos grandes desígnios nacionais.

Esse consenso está, arrisco-me a dizê-lo, à beira de desaparecer: vários comentadores têm chamado a atenção para uma cada vez maior polarização da vida política e para o encolhimento do centro político, aquele local onde PS e PSD ganharam eleições ao longo das décadas e onde os dois, juntos, tinham à volta de 80% do eleitorado.

No resto da Europa, problemas novos e nunca antes vistos têm pulverizado o quadro político que prevaleceu desde a ii Guerra Mundial: o fenómeno das imigrações, para começar, tem sido um fator de polarização crescente da vida política desses países; os problemas da desigualdade, que vão agravar-se inevitavelmente com a emergência da robotização da economia e que vão alienar, sucessivamente, classe profissional após classe profissional, até afastar a grande maioria de qualquer centro de decisão – para citar apenas dois.

Já nem falo dos clássicos problemas da alienação das soberanias nacionais perante o necessário e progressivo aprofundamento da União Europeia, ou dos problemas decorrentes do aprofundamento do euro, com a sua procissão de reforços dos poderes do centro e enfraquecimento das periferias.

Esses são problemas “bons”, daqueles em que, no meu entender, se perde de um lado e se ganha mais do outro. Os problemas que vão polarizar verdadeiramente a sociedade são aqueles em que, por virtude da mecânica da evolução económica global, povos inteiros se vão ver sem qualquer poder para alterar o seu destino, e já nem falo do que poderá advir das alterações climáticas se os “altero-climatologistas” tiverem razão.

O que prevejo é que o consenso em que temos vivido sobre as questões essenciais se vai desfazer e que os partidos se verão impossibilitados de conduzir as suas políticas como se nada se passasse.

A minha conclusão é que o nosso sistema político necessita urgentemente de ganhar flexibilidade e representatividade. Esse acréscimo de resistência pode vir da criação de círculos uninominais onde os modernos Calistos Elóis, mais ou menos credíveis mas significativamente representativos dos seus concidadãos, possam fazer-se eleger e trazer ao fórum nacional as questões que os ocupam e preocupam, e não aquelas, ou não só aquelas, que os diretórios partidários decidam.

Com tanto meio de transporte que há hoje em dia, Calisto Elói não pode vir a Lisboa?

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

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