Cinema. Acabado de tomar posse, novo secretário de Estado já divide o setor

29-11-2019
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Nuno Artur Silva não saberia ainda que viria a integrar o segundo Governo de António Costa como secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média quando, em fevereiro passado, dedicou uma das suas habituais crónicas no Diário de Notícias ao cinema. “Discute-se muito no meio cinematográfico português o que é ou não é cinema, o que é cinema e o que é audiovisual, o que é arte ou indústria, o que é de autor e o que é de mercado, se tem história ou não tem história. São discussões completamente absurdas e inconsequentes, derivadas sobretudo da escassez de formas de financiamento e do afunilamento dos centros de decisão. Em Portugal este estrangulamento tem sido por demais evidente. São júris com enorme grau de aleatoriedade, ou por vezes compadrio com os candidatos, que decidem quem filma ou não filma, numa lotaria kafkiana que não dignifica ninguém e não estimula a existência de uma produção regular, múltipla e que não fique refém de todo o tipo de impasses”.

Pois com esses impasses terá agora Nuno Artur Silva de lidar. E foi com um programa de Governo praticamente omisso em matéria de cinema e audiovisual que tomou no sábado posse como secretário de Estado para uma das duas novas secretarias que passam a apoiar o Ministério da Cultura da reconduzida Graça Fonseca.

A anterior legislatura ficou marcada na Cultura por uma forte contestação de boa parte do setor à tutela durante todo o moroso processo de alteração ao decreto-lei que regulamenta a Lei do Cinema e que determina os procedimentos para a escolha dos júris que decidem a atribuição dos apoios nos concursos do Instituto do Cinema e do Audiovisual. Em 2017, os realizadores portugueses que viajaram até ao Festival de Cinema de Berlim com os seus filmes declinaram o convite do então secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado para um jantar na embaixada portuguesa. O grupo que viria a designar-se por Plataforma do Cinema argumentava que, a manter-se o modelo de nomeação de júris no qual tinham participação as operadoras de televisão e os canais por cabo, que acusavam de ingerência, o “vigor” do cinema português nos últimos anos, com “múltiplos prémios e presenças em festivais internacionais” estava “em risco”. Na capital alemã lançaram um protesto internacional, com um abaixo assinado que reuniu assinaturas dos diretores de festivais como Cannes, Veneza ou Locarno, que entregaram a António Costa.

Entre propostas, contestação, contra-contestação por parte de outros representantes do setor, novas propostas, Marcelo viria a aprovar um diploma que não correspondia “à posição a seu ver preferível” com o argumento de que obrigar a revê-lo atrasaria os concursos. Num dos capítulos finais, era já a própria Assunção Cristas a anunciar que também o CDS, que se foi mantendo arredado da discussão, iria preparar as suas propostas para alterações à Lei do Cinema.

Entre a entrada em vigor desse novo decreto-lei e o desfecho da apreciação parlamentar solicitada pelos partidos acabou por se passar mais de um ano, ao longo do qual, num grupo de trabalho criado especificamente para esse propósito, os representantes dos diversos partidos na comissão parlamentar de Cultura aprovaram para levar a votação no parlamento um texto que previa a eliminação da SECA (na qual tinham assento os operadores) do processo de escolha dos jurados que decidem os apoios do ICA, que voltaria, como no passado, a ser o responsável pela nomeação dos júris. Dois dias depois, num desfecho inesperado, o PS e o PSD chumbavam as apreciações apresentadas pelo PCP, o BE, o PSD e o CSD.

É neste ponto de uma história com contornos seguramente mais novelescos que cinematográficos, com tantos capítulos que se torna difícil acompanhar o enredo, que entra Nuno Artur Silva, para a nova secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Média. E a se a decisão de criar uma secretaria de Estado para aquela que é uma das áreas mais complexas tuteladas pelo Ministério da Cultura (“o setor mais difícil de gerir, sobretudo pelo lobby que há muitos anos domina o cinema português”, nas palavras do realizador António-Pedro Vasconcelos, que em oposição à Plataforma do Cinema defendia o sistema em que a SECA era a responsável pela escolha dos júris) pode ser encarada como um sinal político de que essa será uma área prioritária, não é dessa perspetiva que a Plataforma do Cinema a encara.

“Estranhamos isto com a desconfiança histórica relativa ao que tem sido o papel do PS na cultura nos últimos quatro anos, sobretudo depois da mudança completa do face à alteração ao decreto-lei dos júris para os concursos do ICA”, diz ao i Luís Urbano, produtor dos filmes de Miguel Gomes e um dos porta-vozes da Plataforma do Cinema, que representa a Associação Portuguesa de Realizadores, a Associação de Produtores de Cinema Independente, vários sindicatos e do setor e os maiores e mais relevantes festivais de cinema portugueses. “A criação de uma secretaria de Estado provoca-nos bastante estranheza. Se lhe associarmos a nomeação de Nuno Artur Silva, já não provoca tanta estranheza, mas abre-se um pouco um jogo”. E explica: “Parece-nos que estamos perante uma agenda que terá como objetivo desvalorizar o cinema e valorizar o audiovisual”.

Isto porque, ao fim de quatro anos de uma legislatura em que setor se bateu para manter a área do cinema longe de qualquer tipo de interferência do setor audiovisual, a nova secretaria de Estado terá à frente uma figura da televisão: além de fundador das Produções Fictícias, que alienou antes de tomar posse, Nuno Artur Silva foi administrador da RTP. “Associamos isto a uma necessidade e uma emergência que decorre de uma diretiva comunitária que tem que ver com regulação das plataformas de streaming, como a Netflix e a HBO que obrigará a enquadrá-las na mesma situação que as televisões e as operadoras”. Uma diretiva com “mérito”, nota o produtor. E nisso acompanha-o Pandora da Cunha Telles, produtora que, na discussão sobre a aleração ao sistema de júris, se colocou no campo oposto ao da Plataforma do Cinema.

E que, contrariamente, vê por esse mesmo motivo a criação da nova secretaria de Estado como “pertinente”: “Não acho que o intuito seja esvaziar o ICA ou a RTP, acho que o intuito é estabelecer um órgão governativo que possa delinear estrategicamente o setor. Se é positivo ou negativo, talvez daqui a seis meses ou um ano possamos compreender melhor”. Os receios em relação à figura escolhida não são os mesmos por parte da produtora dos filmes de Vicente Alves do Ó. “Acho que é um empresário do meio que conhece as dificuldades do tecido empresarial do setor. O trabalho que teve na RTP, independentemente dos detalhes de como saiu e como entrou e afins o registo com que fico da sua passagem na RTP e que houve uma diversificação dos fornecedores de conteúdos de audiovisuais”.

Por seu turno, Luís Urbano lembra: “Não nos esquecemos do que têm sido as intervenções públicas de Nuno Artur Silva. São públicas as opiniões e a má digestão de Nuno Artur Silva relativamente ao cinema português. Não estamos nada descansados, estamos bastante inquietos, mas estamos atentos, isso posso garantir. Deixa-nos inquietos, não por ter sido dono das Produções Fictícias, isso não nos interessa nada, mas não nos esquecemos do que têm sido as intervenções públicas do Nuno Artur Silva”.

De volta à crónica de início citada, “Cinema é o quê, hoje?” Nuno Artur Silva fazia a pergunta e respondia, com aquilo que acreditava que o cinema deveria passar a ser – ou como deve passar a fazer-se: “Talvez seja de observar o que aconteceu com a música, nomeadamente a música pop. Em Portugal, por exemplo, a música pop nunca foi tão diversificada e com tanta qualidade, nem tão internacional. [...] A razão tem origem no facto de hoje qualquer músico ter a possibilidade de fazer a sua música e disponibilizá-la sem necessidade de decisores ou intermediários – e a partir dessa possibilidade ganhar outra capacidade de negociação. A produção audiovisual é mais cara do que a produção musical, mas os preços dos equipamentos estão a descer e nunca foi tão fácil filmar ou gravar e disponibilizar o conteúdo [...] Tal como aconteceu com a música, o cinema precisa de se abrir em inúmeras direções formais e modos de produção que dinamitem as categorias estreitas em que tem vindo a ser asfixiado. Não é só o facto de as séries terem vindo a ocupar o lugar dos filmes como a forma mais prestigiada e popular de contar histórias com imagens. Hoje, o filme clássico de cinema está para a produção audiovisual contemporânea como o soneto está para a poesia”.

Nuno Artur Silva não saberia ainda que viria a integrar o segundo Governo de António Costa como secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média quando, em fevereiro passado, dedicou uma das suas habituais crónicas no Diário de Notícias ao cinema. “Discute-se muito no meio cinematográfico português o que é ou não é cinema, o que é cinema e o que é audiovisual, o que é arte ou indústria, o que é de autor e o que é de mercado, se tem história ou não tem história. São discussões completamente absurdas e inconsequentes, derivadas sobretudo da escassez de formas de financiamento e do afunilamento dos centros de decisão. Em Portugal este estrangulamento tem sido por demais evidente. São júris com enorme grau de aleatoriedade, ou por vezes compadrio com os candidatos, que decidem quem filma ou não filma, numa lotaria kafkiana que não dignifica ninguém e não estimula a existência de uma produção regular, múltipla e que não fique refém de todo o tipo de impasses”.

Pois com esses impasses terá agora Nuno Artur Silva de lidar. E foi com um programa de Governo praticamente omisso em matéria de cinema e audiovisual que tomou no sábado posse como secretário de Estado para uma das duas novas secretarias que passam a apoiar o Ministério da Cultura da reconduzida Graça Fonseca.

A anterior legislatura ficou marcada na Cultura por uma forte contestação de boa parte do setor à tutela durante todo o moroso processo de alteração ao decreto-lei que regulamenta a Lei do Cinema e que determina os procedimentos para a escolha dos júris que decidem a atribuição dos apoios nos concursos do Instituto do Cinema e do Audiovisual. Em 2017, os realizadores portugueses que viajaram até ao Festival de Cinema de Berlim com os seus filmes declinaram o convite do então secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado para um jantar na embaixada portuguesa. O grupo que viria a designar-se por Plataforma do Cinema argumentava que, a manter-se o modelo de nomeação de júris no qual tinham participação as operadoras de televisão e os canais por cabo, que acusavam de ingerência, o “vigor” do cinema português nos últimos anos, com “múltiplos prémios e presenças em festivais internacionais” estava “em risco”. Na capital alemã lançaram um protesto internacional, com um abaixo assinado que reuniu assinaturas dos diretores de festivais como Cannes, Veneza ou Locarno, que entregaram a António Costa.

Entre propostas, contestação, contra-contestação por parte de outros representantes do setor, novas propostas, Marcelo viria a aprovar um diploma que não correspondia “à posição a seu ver preferível” com o argumento de que obrigar a revê-lo atrasaria os concursos. Num dos capítulos finais, era já a própria Assunção Cristas a anunciar que também o CDS, que se foi mantendo arredado da discussão, iria preparar as suas propostas para alterações à Lei do Cinema.

Entre a entrada em vigor desse novo decreto-lei e o desfecho da apreciação parlamentar solicitada pelos partidos acabou por se passar mais de um ano, ao longo do qual, num grupo de trabalho criado especificamente para esse propósito, os representantes dos diversos partidos na comissão parlamentar de Cultura aprovaram para levar a votação no parlamento um texto que previa a eliminação da SECA (na qual tinham assento os operadores) do processo de escolha dos jurados que decidem os apoios do ICA, que voltaria, como no passado, a ser o responsável pela nomeação dos júris. Dois dias depois, num desfecho inesperado, o PS e o PSD chumbavam as apreciações apresentadas pelo PCP, o BE, o PSD e o CSD.

É neste ponto de uma história com contornos seguramente mais novelescos que cinematográficos, com tantos capítulos que se torna difícil acompanhar o enredo, que entra Nuno Artur Silva, para a nova secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Média. E a se a decisão de criar uma secretaria de Estado para aquela que é uma das áreas mais complexas tuteladas pelo Ministério da Cultura (“o setor mais difícil de gerir, sobretudo pelo lobby que há muitos anos domina o cinema português”, nas palavras do realizador António-Pedro Vasconcelos, que em oposição à Plataforma do Cinema defendia o sistema em que a SECA era a responsável pela escolha dos júris) pode ser encarada como um sinal político de que essa será uma área prioritária, não é dessa perspetiva que a Plataforma do Cinema a encara.

“Estranhamos isto com a desconfiança histórica relativa ao que tem sido o papel do PS na cultura nos últimos quatro anos, sobretudo depois da mudança completa do face à alteração ao decreto-lei dos júris para os concursos do ICA”, diz ao i Luís Urbano, produtor dos filmes de Miguel Gomes e um dos porta-vozes da Plataforma do Cinema, que representa a Associação Portuguesa de Realizadores, a Associação de Produtores de Cinema Independente, vários sindicatos e do setor e os maiores e mais relevantes festivais de cinema portugueses. “A criação de uma secretaria de Estado provoca-nos bastante estranheza. Se lhe associarmos a nomeação de Nuno Artur Silva, já não provoca tanta estranheza, mas abre-se um pouco um jogo”. E explica: “Parece-nos que estamos perante uma agenda que terá como objetivo desvalorizar o cinema e valorizar o audiovisual”.

Isto porque, ao fim de quatro anos de uma legislatura em que setor se bateu para manter a área do cinema longe de qualquer tipo de interferência do setor audiovisual, a nova secretaria de Estado terá à frente uma figura da televisão: além de fundador das Produções Fictícias, que alienou antes de tomar posse, Nuno Artur Silva foi administrador da RTP. “Associamos isto a uma necessidade e uma emergência que decorre de uma diretiva comunitária que tem que ver com regulação das plataformas de streaming, como a Netflix e a HBO que obrigará a enquadrá-las na mesma situação que as televisões e as operadoras”. Uma diretiva com “mérito”, nota o produtor. E nisso acompanha-o Pandora da Cunha Telles, produtora que, na discussão sobre a aleração ao sistema de júris, se colocou no campo oposto ao da Plataforma do Cinema.

E que, contrariamente, vê por esse mesmo motivo a criação da nova secretaria de Estado como “pertinente”: “Não acho que o intuito seja esvaziar o ICA ou a RTP, acho que o intuito é estabelecer um órgão governativo que possa delinear estrategicamente o setor. Se é positivo ou negativo, talvez daqui a seis meses ou um ano possamos compreender melhor”. Os receios em relação à figura escolhida não são os mesmos por parte da produtora dos filmes de Vicente Alves do Ó. “Acho que é um empresário do meio que conhece as dificuldades do tecido empresarial do setor. O trabalho que teve na RTP, independentemente dos detalhes de como saiu e como entrou e afins o registo com que fico da sua passagem na RTP e que houve uma diversificação dos fornecedores de conteúdos de audiovisuais”.

Por seu turno, Luís Urbano lembra: “Não nos esquecemos do que têm sido as intervenções públicas de Nuno Artur Silva. São públicas as opiniões e a má digestão de Nuno Artur Silva relativamente ao cinema português. Não estamos nada descansados, estamos bastante inquietos, mas estamos atentos, isso posso garantir. Deixa-nos inquietos, não por ter sido dono das Produções Fictícias, isso não nos interessa nada, mas não nos esquecemos do que têm sido as intervenções públicas do Nuno Artur Silva”.

De volta à crónica de início citada, “Cinema é o quê, hoje?” Nuno Artur Silva fazia a pergunta e respondia, com aquilo que acreditava que o cinema deveria passar a ser – ou como deve passar a fazer-se: “Talvez seja de observar o que aconteceu com a música, nomeadamente a música pop. Em Portugal, por exemplo, a música pop nunca foi tão diversificada e com tanta qualidade, nem tão internacional. [...] A razão tem origem no facto de hoje qualquer músico ter a possibilidade de fazer a sua música e disponibilizá-la sem necessidade de decisores ou intermediários – e a partir dessa possibilidade ganhar outra capacidade de negociação. A produção audiovisual é mais cara do que a produção musical, mas os preços dos equipamentos estão a descer e nunca foi tão fácil filmar ou gravar e disponibilizar o conteúdo [...] Tal como aconteceu com a música, o cinema precisa de se abrir em inúmeras direções formais e modos de produção que dinamitem as categorias estreitas em que tem vindo a ser asfixiado. Não é só o facto de as séries terem vindo a ocupar o lugar dos filmes como a forma mais prestigiada e popular de contar histórias com imagens. Hoje, o filme clássico de cinema está para a produção audiovisual contemporânea como o soneto está para a poesia”.

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