“Mãe, estás viva?” Histórias de vidas interrompidas pela violência doméstica

16-07-2020
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Caída no chão, Idalina não tinha forças para mexer um único músculo do seu corpo. Não conseguia ver. Não conseguia ouvir. Não conseguia falar. Aos poucos, começou a dar-se conta de uma voz longínqua que, insistentemente, lhe perguntava: “Mãe, estás viva?”. A filha de 7 anos tinha assistido, aterrorizada, ao seu espancamento às mãos do pai.

“Sentia que ela me agarrava na mão, mas não conseguia dizer-lhe que estava viva”, recorda Idalina. Aos 46 anos, ao fim de quase uma década de violência, ser brutalmente agredida à frente da menina – enquanto ela gritava para o pai parar – foi o seu limite. Os vizinhos voltaram a chamar a polícia mas, desta vez, seria diferente. Decidiu acompanhar os agentes à esquadra e levou a filha consigo. “Quando entrei no carro da polícia, senti um grande alívio, uma certa alegria, até”, confessa. Já não voltaria atrás.

Desde o verão do ano passado que vive, juntamente com a filha, numa casa de abrigo, cuja localização é secreta por razões de segurança. “Benditas casas que nos acolhem”, diz, como quem reza uma oração. Mas a pandemia veio estragar-lhe os planos: preparava-se para estrear o seu próprio apartamento. “Devia ter-me mudado na altura da Páscoa, mas não pude sair por causa da doença”, lamenta. Idalina afasta a desilusão com o conforto de já ter as chaves da sua nova morada na mão: “Fui vê-la, tem dois quartos. A minha filha adorou. É a primeira vez que realizo um sonho.” Agora adiado.

Durante muito tempo, só o som das chaves do marido a abrir a porta dava-lhe a volta ao estômago. Ainda incrédula, relembra a reação do seu agressor sempre que viam notícias na televisão sobre casos de homicídio em contexto de violência doméstica – foram 35 no ano passado. “Malandro, vê lá que matou a mulher!”, dizia-lhe. “Eu ficava parva a pensar se ele não percebia o que fazia”, admite.

Não peço uma pena de prisão, nem uma indemnização. Só quero distância” Idalina, 46 anos, vítima de violência doméstica durante quase uma década

Agora, até a filha utiliza a terminologia que ouve as técnicas usarem: “Mãe, não voltas para o agressor.” Vocabulário que uma menina de 7 anos não deveria saber de cor.

A secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade anunciou um reforço do investimento no acompanhamento psicológico de crianças e jovens vítimas de violência doméstica no valor de 2,7 milhões de euros.

Na semana passada, começou a circular uma petição com o objetivo de obrigar a Assembleia da República (AR) a discutir a aplicação do estatuto de vítima a crianças que testemunhem crimes de violência doméstica. Uma medida incluída numa das propostas de lei de alteração do regime jurídico de proteção de vítimas aprovada pela AR no início de maio, que aguarda discussão na especialidade. Propõe-se, por exemplo, a realização de inquéritos sumários com o propósito de recolher provas logo nas 72 horas seguintes à apresentação da queixa e, também, o alargamento das competências dos juízes de instrução criminal, que passam a definir medidas provisórias relativamente aos menores envolvidos nos processos, como a regulação das responsabilidades parentais.

Confinados com o inimigo

O caso de Idalina seguiu para tribunal. “Não peço uma pena de prisão, nem uma indemnização, só quero distância”, afirma, decidida. Traz sempre consigo o dispositivo de teleassistência que lhe permite pedir ajuda em caso de perigo, carregando num simples botão. Porém, reconhece, ainda não conseguiu “mandar o medo todo embora”.

Tal como Idalina, muitas outras mulheres foram obrigadas a permanecer mais tempo do que o inicialmente previsto nas casas de abrigo onde foram acolhidas, por causa da pandemia. Algumas das que estavam prestes a autonomizar-se perderam o emprego com a paralisação da economia. Além disso, temia-se o agravamento dos ataques devido ao confinamento com os agressores. Razões que levaram a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade a criar uma centena de vagas extras de acolhimento, no final de março.

Nos últimos dois meses, entre 30 de março e 24 de maio, foram recebidas 418 vítimas de violência doméstica em casas de abrigo, o equivalente a quase 70% do número total de pessoas acolhidas ao longo do primeiro semestre do ano passado. “Não registámos uma diminuição drástica dos pedidos de ajuda durante a pandemia”, começa por dizer a secretária de Estado, Rosa Monteiro. No entanto, devido ao confinamento, as vítimas viram dificultado o acesso a redes de entreajuda, como a família ou o trabalho, e aos serviços de apoio especializado – daí que tenham sido criadas formas alternativas de contacto não presencial.

À linha telefónica da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género juntou-se um endereço de email e um número de SMS. Entre 19 de março (o dia seguinte à declaração do estado de emergência) e 31 de maio (quando terminou o estado de calamidade), estas três formas de apoio não presencial receberam 599 pedidos de ajuda, quatro vezes mais do que em igual período do ano passado.

Perder o amor à vida

Soraia tem dificuldade em recordar a sequência dos acontecimentos, mas lembra-se de estar deitada numa maca, a ser transportada para o hospital numa ambulância do INEM, e de pensar que nunca mais regressaria à casa onde se sentia cativa. Ultimamente, era habitual o companheiro ausentar-se e trancar a fechadura, impedindo-a de sair. “A pandemia complicou tudo, mas ele já era assim…”, reconhece Soraia, cerca de um mês depois daquela noite quase fatídica. De acordo com a informação recolhida pela secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, 70% das pessoas que procuraram ajuda desde o início da crise sanitária relataram um agravamento da violência durante o confinamento.

Diagnosticada com uma depressão, não aguentou mais a violência das acusações constantes de que tinha ido ver a família e de que tinha passado o dia inteiro sem fazer nada em casa. Após mais uma discussão descontrolada, foi contra si própria que se voltou. Aos 38 anos, Soraia tentou suicidar-se.

Há cerca de um ano, o companheiro convenceu-a a ir viver com ele para a habitação onde também morava o seu pai, que exigia cuidados diários. “Eu era uma empregada daquela família, não havia amor nenhum”, afirma, convicta. Os dois filhos, de 12 e 17 anos, fruto de relacionamentos anteriores, ficaram a viver com a avó materna. “Eles nunca gostaram dele e não quiseram ir comigo.” Soraia acreditou que teria liberdade para os ver sempre que quisesse, mas não foi assim. Chegou a passar três semanas seguidas sem estar com os filhos, porque o companheiro não a deixava ir ao seu encontro. “Foi a pior coisa que eu fiz. Nunca os devia ter deixado”, diz, amargurada.

“Naquela última noite, senti uma tremenda vergonha de ir outra vez pedir ajuda à minha mãe”, conta. “Estava esgotada. Não sei o que me passou pela cabeça”, lamenta, embaraçada. “Fazer uma coisa dessas por causa de um homem?”, questiona, incrédula, como se falasse da vida de outra pessoa. “Dou graças a Deus por ter sobrevivido.” Atualmente, tem apoio psicológico e está medicada para a depressão.

“Os quadros psiquiátricos estão, muitas vezes, associados às relações abusivas, mas, mesmo quando são preexistentes, agravam-se com as agressões”, alerta Leandra Rodrigues, coordenadora geral do Gabinete de Atendimento à Família (GAF), responsável por parte das 100 novas vagas de acolhimento.

Em Portugal, não existem dados sobre as tentativas de suicídio praticadas por pessoas com historial de violência doméstica, mas, no Reino Unido, calcula-se que 23% das vítimas tenham atentado contra a própria vida, comparativamente com 3% da população em geral.

A história de violência de Soraia começou cedo. Teria uns 8 anos quando viu o pai bater na mãe pela primeira vez. “Ia preocupada para a escola por deixá-la sozinha”, lembra. Também a matriarca acabaria por divorciar-se.

Quando saiu da casa do companheiro, Soraia equacionou ir viver com a mãe, junto dos filhos, mas ela não aceitou recebê-la de volta. “Sabia que ele iria lá para a porta fazer uma pouca-vergonha…”, justifica. A única opção foi ser acolhida numa casa de abrigo. Devido às restrições impostas pela pandemia, ainda não foi visitar os filhos, mas conversam por telefone. “Estou muito arrependida de os ter deixado por causa dele. Quero muito recuperar o tempo perdido.”

Medo, esperança e culpa. É esta trilogia que, muitas vezes, impede as pessoas agredidas de quebrarem o ciclo da violência. “Têm medo do que poderá acontecer-lhes e aos filhos, alimentam a esperança de que as coisas possam mudar e, quando não mudam, culpabilizam-se por isso, pensam que deveriam ser melhores”, explica Daniel Cotrim, psicólogo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, organização que gere metade das 100 vagas de abrigo recém-criadas.

Momentos de alto risco

Aos 27 anos, Sandra recebeu a notícia da sua ida para uma casa de abrigo com entusiasmo. Afinal, era sinónimo de que, depois de ter recuperado a filha, também o filho iria permanecer ao seu cuidado por deliberação do tribunal. Os primeiros casos de Covid-19 não tardavam a aparecer no País quando Sandra deu início a esta nova etapa com os filhos de 7 e 3 anos.

Ao longo de mais de meia dúzia de anos de violência, tornou-se habitual o marido ameaçá-la de morte, caso arriscasse ir-se embora e levar os filhos do casal. Mesmo assim, quando Sandra anunciou que ia partir, não esperava uma reação tão brutal. O agressor encostou-lhe uma faca ao pescoço à frente da filha mais nova.

A maior parte dos homicídios em contexto de violência doméstica acontece, precisamente, quando há um pedido de divórcio ou quando a vítima inicia uma nova relação amorosa, já depois da separação. “São momentos de alto risco a que temos de estar atentos”, alerta Daniel Cotrim.

Impedida de levar os filhos consigo quando foi fazer queixa na polícia, ao regressar a casa percebeu, desesperada, que os meninos tinham sido levados para junto da avó paterna. Recorreu à Justiça e só voltou a vê-los ao fim de quase um ano. Enquanto estiveram com o pai, as crianças eram castigadas se falassem na mãe. Sandra sempre se sentiu em risco enquanto estiveram juntos. “Ele chegou a pedir uma arma emprestada a um amigo e a guardá-la em casa”, revela. Temer pela vida devido ao agravamento das agressões ou a violência estender-se a outros membros da família são dois dos principais gatilhos para quebrar o ciclo da violência, nota Patrícia Faro, diretora técnica da casa de abrigo da Cruz Vermelha.

Obrigada a deixar de trabalhar pelo marido, Sandra já tem emprego garantido, assim que passar a “atrapalhação” da Covid-19. “A pandemia veio complicar ainda mais o reinício de vida destas pessoas. É mais difícil arranjar trabalho, os processos judiciais estiveram parados, não era possível tratar da transferência de escola das crianças… Tudo isto trouxe mais angústia”, sublinha Patrícia Faro.

Maria esteve quase 20 anos à espera. “Não foi por dependência económica que fui ficando. Sempre trabalhei, mas os meus filhos adoravam-no”, afirma. “Ele sentia-se seguro porque sabia que, se fosse para sair, tínhamos de sair os três”, sintetiza.

O momento chegou em plena pandemia, no início de março, quando ainda não se fazia ideia de qual seria o impacto da infeção em Portugal. Finalmente, estavam os três decididos e nem o perigo de contágio os iria impedir. “O meu filho já não se sentia bem no ambiente lá de casa e a minha filha chegou a dizer que o pai estava louco”, descreve. A gota de água foi uma discussão com o filho de 19 anos, que acabou com o pai a atirar objetos e cadeiras pelo ar, além de ter agredido fisicamente a mãe. Habitualmente, as agressões eram verbais. Saíram no dia seguinte. Aos 44 anos, Maria estava pronta para iniciar uma nova vida, mas os desafios estavam só a começar.

O primeiro choque foi não encontrar um apartamento para alugar. “A sugestão que nos deram nos serviços sociais da câmara foi irmos para uma casa de abrigo. Eu nem percebia muito bem o que era, e não me sabiam dizer para onde ia. Podia ser obrigada a deixar a minha vida toda para trás, incluindo o meu emprego”, dispara, indignada. “Eu estou efetiva, o que nos tempos que correm não é fácil e, nesta altura, é complicado arranjar trabalho. Fiquei aterrorizada e recusei.”

Sem alternativa, apesar de não querer incomodar a mãe, foi viver com ela. “Há duas coisas fundamentais quando se passa por um processo destes: a ajuda da família e a compreensão no local de trabalho.” Mas nem sempre esses apoios estão garantidos. De acordo com Leandra Rodrigues, é frequente as vítimas acolhidas pelo GAF não terem suporte familiar. “Às vezes, como não saíram de casa à primeira ou acabaram por voltar, a família afasta-se, mas também há casos de preconceito, em que os mais velhos lhes dizem para aguentar”, constata.

À casa de abrigo da Cruz Vermelha têm chegado cada vez mais mulheres da faixa etária de Maria, mas a maior parte aparece sozinha. “Têm entre 45 e 55 anos e estiveram à espera de que os filhos se autonomizassem para saírem”, contextualiza Patrícia Faro.

Maria habituou-se a receber 50 mensagens por dia do ex-marido no telefone. Além de ir ao seu local de trabalho, o agressor pressionou a sua diretora a despedi-la. Sem sucesso.

Embora tenha apresentado queixa, o Ministério Público (MP) sugeriu-lhe a suspensão do processo. Sendo a violência doméstica um crime público, a participação não admite desistência. Mesmo contra a vontade da vítima pode seguir para julgamento, mas, com frequência, quando o ofendido decide não prestar declarações, é impossível fazer prova e o caso acaba arquivado.

Eu é que sou a vítima e eu é que tenho de sair de casa? Isso trava muitas mulheres” Maria, 44 anos, vítima de violência doméstica durante quase 20 anos

Os argumentos invocados pelo MP foram vários. “Ele não ter antecedentes criminais, estar tudo muito parado nos tribunais devido à pandemia e ele poder ficar com o registo criminal manchado”, conta Maria. Pareceu-lhe que estavam mais preocupados com o réu do que com a vítima. “Mas eu também não tinha vontade de andar nos tribunais, de ser chamada a depor não sei quantas vezes e de levar os meus filhos a testemunhar”, conclui. Ainda assim, não cala a indignação. “Ele ficar tranquilamente em casa é das coisas que mais me revoltam. Eu é que sou a vítima e eu é que tenho de sair?”, interroga. “Tudo o que eu tinha ficou lá dentro, até as fotografias dos meus filhos. Isso trava muitas mulheres, como me travou a mim durante muito tempo.”

Apesar das dificuldades, não tem dúvidas. “Não vou dizer que é fácil, mas tenho uma sensação de liberdade que não sentia há muito tempo”, assegura. “Quando há reportagens sobre este tema, há alturas em que não queremos ver para não nos identificarmos mas, acreditem, depois de darmos o passo, muda-se para muito melhor.” Palavra de sobrevivente.

A brutalidade dos números

Apesar da diminuição das participações junto das forças de segurança, às organizações de apoio às vítimas de violência doméstica continuaram a chegar pedidos de ajuda 1 277

Queixas por violência doméstica recebidas pela PSP durante o confinamento obrigatório (de 23 de março a 2 de maio), menos 33% em relação ao mesmo período do ano passado 418

Vítimas de violência acolhidas em casas de abrigo entre 30 de março e 24 de maio.

Destas, 251 eram mulheres, 155 eram menores e 12 eram homens. No primeiro semestre de 2019, foram recebidas 613 pessoas 599

Pedidos de ajuda registados pelas linhas de apoio da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, de 19 de março a 31 de maio, quatro vezes mais do que entre março e maio de 2019. Mais de metade (56%) chegou através dos contactos de SMS e de email criados no âmbito da pandemia 11 591

Pessoas atendidas pela Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, presencialmente e não presencialmente, entre 30 de março e 24 de maio. Cerca de 60% contactaram o serviço já depois de 10 de maio, em pleno desconfinamento 8

Mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica desde o início do ano. Em 2019, só no primeiro trimestre, foram mortas 14 100

Vagas extras nas duas casas de abrigo criadas para acolher vítimas de violência doméstica durante a pandemia somam-se às cerca de 600 já existentes e às 150 de acolhimento de emergência

Ajuda em linha Eis alguns contactos úteis para pedir ajuda ou denunciar casos de violência doméstica: Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género

800 202 148

gratuito, confidencial, 24 horas por dia 3060

gratuito e confidencial, não surge na fatura telefónica

violencia.covid@cig.gov.pt Linha Nacional de Emergência Social

144

gratuito, confidencial, 24 horas por dia Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV)

116 006

gratuito, confidencial, dias úteis das 9h às 21h

Os nomes das vítimas de violência doméstica foram alterados para sua proteção.

Caída no chão, Idalina não tinha forças para mexer um único músculo do seu corpo. Não conseguia ver. Não conseguia ouvir. Não conseguia falar. Aos poucos, começou a dar-se conta de uma voz longínqua que, insistentemente, lhe perguntava: “Mãe, estás viva?”. A filha de 7 anos tinha assistido, aterrorizada, ao seu espancamento às mãos do pai.

“Sentia que ela me agarrava na mão, mas não conseguia dizer-lhe que estava viva”, recorda Idalina. Aos 46 anos, ao fim de quase uma década de violência, ser brutalmente agredida à frente da menina – enquanto ela gritava para o pai parar – foi o seu limite. Os vizinhos voltaram a chamar a polícia mas, desta vez, seria diferente. Decidiu acompanhar os agentes à esquadra e levou a filha consigo. “Quando entrei no carro da polícia, senti um grande alívio, uma certa alegria, até”, confessa. Já não voltaria atrás.

Desde o verão do ano passado que vive, juntamente com a filha, numa casa de abrigo, cuja localização é secreta por razões de segurança. “Benditas casas que nos acolhem”, diz, como quem reza uma oração. Mas a pandemia veio estragar-lhe os planos: preparava-se para estrear o seu próprio apartamento. “Devia ter-me mudado na altura da Páscoa, mas não pude sair por causa da doença”, lamenta. Idalina afasta a desilusão com o conforto de já ter as chaves da sua nova morada na mão: “Fui vê-la, tem dois quartos. A minha filha adorou. É a primeira vez que realizo um sonho.” Agora adiado.

Durante muito tempo, só o som das chaves do marido a abrir a porta dava-lhe a volta ao estômago. Ainda incrédula, relembra a reação do seu agressor sempre que viam notícias na televisão sobre casos de homicídio em contexto de violência doméstica – foram 35 no ano passado. “Malandro, vê lá que matou a mulher!”, dizia-lhe. “Eu ficava parva a pensar se ele não percebia o que fazia”, admite.

Não peço uma pena de prisão, nem uma indemnização. Só quero distância” Idalina, 46 anos, vítima de violência doméstica durante quase uma década

Agora, até a filha utiliza a terminologia que ouve as técnicas usarem: “Mãe, não voltas para o agressor.” Vocabulário que uma menina de 7 anos não deveria saber de cor.

A secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade anunciou um reforço do investimento no acompanhamento psicológico de crianças e jovens vítimas de violência doméstica no valor de 2,7 milhões de euros.

Na semana passada, começou a circular uma petição com o objetivo de obrigar a Assembleia da República (AR) a discutir a aplicação do estatuto de vítima a crianças que testemunhem crimes de violência doméstica. Uma medida incluída numa das propostas de lei de alteração do regime jurídico de proteção de vítimas aprovada pela AR no início de maio, que aguarda discussão na especialidade. Propõe-se, por exemplo, a realização de inquéritos sumários com o propósito de recolher provas logo nas 72 horas seguintes à apresentação da queixa e, também, o alargamento das competências dos juízes de instrução criminal, que passam a definir medidas provisórias relativamente aos menores envolvidos nos processos, como a regulação das responsabilidades parentais.

Confinados com o inimigo

O caso de Idalina seguiu para tribunal. “Não peço uma pena de prisão, nem uma indemnização, só quero distância”, afirma, decidida. Traz sempre consigo o dispositivo de teleassistência que lhe permite pedir ajuda em caso de perigo, carregando num simples botão. Porém, reconhece, ainda não conseguiu “mandar o medo todo embora”.

Tal como Idalina, muitas outras mulheres foram obrigadas a permanecer mais tempo do que o inicialmente previsto nas casas de abrigo onde foram acolhidas, por causa da pandemia. Algumas das que estavam prestes a autonomizar-se perderam o emprego com a paralisação da economia. Além disso, temia-se o agravamento dos ataques devido ao confinamento com os agressores. Razões que levaram a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade a criar uma centena de vagas extras de acolhimento, no final de março.

Nos últimos dois meses, entre 30 de março e 24 de maio, foram recebidas 418 vítimas de violência doméstica em casas de abrigo, o equivalente a quase 70% do número total de pessoas acolhidas ao longo do primeiro semestre do ano passado. “Não registámos uma diminuição drástica dos pedidos de ajuda durante a pandemia”, começa por dizer a secretária de Estado, Rosa Monteiro. No entanto, devido ao confinamento, as vítimas viram dificultado o acesso a redes de entreajuda, como a família ou o trabalho, e aos serviços de apoio especializado – daí que tenham sido criadas formas alternativas de contacto não presencial.

À linha telefónica da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género juntou-se um endereço de email e um número de SMS. Entre 19 de março (o dia seguinte à declaração do estado de emergência) e 31 de maio (quando terminou o estado de calamidade), estas três formas de apoio não presencial receberam 599 pedidos de ajuda, quatro vezes mais do que em igual período do ano passado.

Perder o amor à vida

Soraia tem dificuldade em recordar a sequência dos acontecimentos, mas lembra-se de estar deitada numa maca, a ser transportada para o hospital numa ambulância do INEM, e de pensar que nunca mais regressaria à casa onde se sentia cativa. Ultimamente, era habitual o companheiro ausentar-se e trancar a fechadura, impedindo-a de sair. “A pandemia complicou tudo, mas ele já era assim…”, reconhece Soraia, cerca de um mês depois daquela noite quase fatídica. De acordo com a informação recolhida pela secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, 70% das pessoas que procuraram ajuda desde o início da crise sanitária relataram um agravamento da violência durante o confinamento.

Diagnosticada com uma depressão, não aguentou mais a violência das acusações constantes de que tinha ido ver a família e de que tinha passado o dia inteiro sem fazer nada em casa. Após mais uma discussão descontrolada, foi contra si própria que se voltou. Aos 38 anos, Soraia tentou suicidar-se.

Há cerca de um ano, o companheiro convenceu-a a ir viver com ele para a habitação onde também morava o seu pai, que exigia cuidados diários. “Eu era uma empregada daquela família, não havia amor nenhum”, afirma, convicta. Os dois filhos, de 12 e 17 anos, fruto de relacionamentos anteriores, ficaram a viver com a avó materna. “Eles nunca gostaram dele e não quiseram ir comigo.” Soraia acreditou que teria liberdade para os ver sempre que quisesse, mas não foi assim. Chegou a passar três semanas seguidas sem estar com os filhos, porque o companheiro não a deixava ir ao seu encontro. “Foi a pior coisa que eu fiz. Nunca os devia ter deixado”, diz, amargurada.

“Naquela última noite, senti uma tremenda vergonha de ir outra vez pedir ajuda à minha mãe”, conta. “Estava esgotada. Não sei o que me passou pela cabeça”, lamenta, embaraçada. “Fazer uma coisa dessas por causa de um homem?”, questiona, incrédula, como se falasse da vida de outra pessoa. “Dou graças a Deus por ter sobrevivido.” Atualmente, tem apoio psicológico e está medicada para a depressão.

“Os quadros psiquiátricos estão, muitas vezes, associados às relações abusivas, mas, mesmo quando são preexistentes, agravam-se com as agressões”, alerta Leandra Rodrigues, coordenadora geral do Gabinete de Atendimento à Família (GAF), responsável por parte das 100 novas vagas de acolhimento.

Em Portugal, não existem dados sobre as tentativas de suicídio praticadas por pessoas com historial de violência doméstica, mas, no Reino Unido, calcula-se que 23% das vítimas tenham atentado contra a própria vida, comparativamente com 3% da população em geral.

A história de violência de Soraia começou cedo. Teria uns 8 anos quando viu o pai bater na mãe pela primeira vez. “Ia preocupada para a escola por deixá-la sozinha”, lembra. Também a matriarca acabaria por divorciar-se.

Quando saiu da casa do companheiro, Soraia equacionou ir viver com a mãe, junto dos filhos, mas ela não aceitou recebê-la de volta. “Sabia que ele iria lá para a porta fazer uma pouca-vergonha…”, justifica. A única opção foi ser acolhida numa casa de abrigo. Devido às restrições impostas pela pandemia, ainda não foi visitar os filhos, mas conversam por telefone. “Estou muito arrependida de os ter deixado por causa dele. Quero muito recuperar o tempo perdido.”

Medo, esperança e culpa. É esta trilogia que, muitas vezes, impede as pessoas agredidas de quebrarem o ciclo da violência. “Têm medo do que poderá acontecer-lhes e aos filhos, alimentam a esperança de que as coisas possam mudar e, quando não mudam, culpabilizam-se por isso, pensam que deveriam ser melhores”, explica Daniel Cotrim, psicólogo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, organização que gere metade das 100 vagas de abrigo recém-criadas.

Momentos de alto risco

Aos 27 anos, Sandra recebeu a notícia da sua ida para uma casa de abrigo com entusiasmo. Afinal, era sinónimo de que, depois de ter recuperado a filha, também o filho iria permanecer ao seu cuidado por deliberação do tribunal. Os primeiros casos de Covid-19 não tardavam a aparecer no País quando Sandra deu início a esta nova etapa com os filhos de 7 e 3 anos.

Ao longo de mais de meia dúzia de anos de violência, tornou-se habitual o marido ameaçá-la de morte, caso arriscasse ir-se embora e levar os filhos do casal. Mesmo assim, quando Sandra anunciou que ia partir, não esperava uma reação tão brutal. O agressor encostou-lhe uma faca ao pescoço à frente da filha mais nova.

A maior parte dos homicídios em contexto de violência doméstica acontece, precisamente, quando há um pedido de divórcio ou quando a vítima inicia uma nova relação amorosa, já depois da separação. “São momentos de alto risco a que temos de estar atentos”, alerta Daniel Cotrim.

Impedida de levar os filhos consigo quando foi fazer queixa na polícia, ao regressar a casa percebeu, desesperada, que os meninos tinham sido levados para junto da avó paterna. Recorreu à Justiça e só voltou a vê-los ao fim de quase um ano. Enquanto estiveram com o pai, as crianças eram castigadas se falassem na mãe. Sandra sempre se sentiu em risco enquanto estiveram juntos. “Ele chegou a pedir uma arma emprestada a um amigo e a guardá-la em casa”, revela. Temer pela vida devido ao agravamento das agressões ou a violência estender-se a outros membros da família são dois dos principais gatilhos para quebrar o ciclo da violência, nota Patrícia Faro, diretora técnica da casa de abrigo da Cruz Vermelha.

Obrigada a deixar de trabalhar pelo marido, Sandra já tem emprego garantido, assim que passar a “atrapalhação” da Covid-19. “A pandemia veio complicar ainda mais o reinício de vida destas pessoas. É mais difícil arranjar trabalho, os processos judiciais estiveram parados, não era possível tratar da transferência de escola das crianças… Tudo isto trouxe mais angústia”, sublinha Patrícia Faro.

Maria esteve quase 20 anos à espera. “Não foi por dependência económica que fui ficando. Sempre trabalhei, mas os meus filhos adoravam-no”, afirma. “Ele sentia-se seguro porque sabia que, se fosse para sair, tínhamos de sair os três”, sintetiza.

O momento chegou em plena pandemia, no início de março, quando ainda não se fazia ideia de qual seria o impacto da infeção em Portugal. Finalmente, estavam os três decididos e nem o perigo de contágio os iria impedir. “O meu filho já não se sentia bem no ambiente lá de casa e a minha filha chegou a dizer que o pai estava louco”, descreve. A gota de água foi uma discussão com o filho de 19 anos, que acabou com o pai a atirar objetos e cadeiras pelo ar, além de ter agredido fisicamente a mãe. Habitualmente, as agressões eram verbais. Saíram no dia seguinte. Aos 44 anos, Maria estava pronta para iniciar uma nova vida, mas os desafios estavam só a começar.

O primeiro choque foi não encontrar um apartamento para alugar. “A sugestão que nos deram nos serviços sociais da câmara foi irmos para uma casa de abrigo. Eu nem percebia muito bem o que era, e não me sabiam dizer para onde ia. Podia ser obrigada a deixar a minha vida toda para trás, incluindo o meu emprego”, dispara, indignada. “Eu estou efetiva, o que nos tempos que correm não é fácil e, nesta altura, é complicado arranjar trabalho. Fiquei aterrorizada e recusei.”

Sem alternativa, apesar de não querer incomodar a mãe, foi viver com ela. “Há duas coisas fundamentais quando se passa por um processo destes: a ajuda da família e a compreensão no local de trabalho.” Mas nem sempre esses apoios estão garantidos. De acordo com Leandra Rodrigues, é frequente as vítimas acolhidas pelo GAF não terem suporte familiar. “Às vezes, como não saíram de casa à primeira ou acabaram por voltar, a família afasta-se, mas também há casos de preconceito, em que os mais velhos lhes dizem para aguentar”, constata.

À casa de abrigo da Cruz Vermelha têm chegado cada vez mais mulheres da faixa etária de Maria, mas a maior parte aparece sozinha. “Têm entre 45 e 55 anos e estiveram à espera de que os filhos se autonomizassem para saírem”, contextualiza Patrícia Faro.

Maria habituou-se a receber 50 mensagens por dia do ex-marido no telefone. Além de ir ao seu local de trabalho, o agressor pressionou a sua diretora a despedi-la. Sem sucesso.

Embora tenha apresentado queixa, o Ministério Público (MP) sugeriu-lhe a suspensão do processo. Sendo a violência doméstica um crime público, a participação não admite desistência. Mesmo contra a vontade da vítima pode seguir para julgamento, mas, com frequência, quando o ofendido decide não prestar declarações, é impossível fazer prova e o caso acaba arquivado.

Eu é que sou a vítima e eu é que tenho de sair de casa? Isso trava muitas mulheres” Maria, 44 anos, vítima de violência doméstica durante quase 20 anos

Os argumentos invocados pelo MP foram vários. “Ele não ter antecedentes criminais, estar tudo muito parado nos tribunais devido à pandemia e ele poder ficar com o registo criminal manchado”, conta Maria. Pareceu-lhe que estavam mais preocupados com o réu do que com a vítima. “Mas eu também não tinha vontade de andar nos tribunais, de ser chamada a depor não sei quantas vezes e de levar os meus filhos a testemunhar”, conclui. Ainda assim, não cala a indignação. “Ele ficar tranquilamente em casa é das coisas que mais me revoltam. Eu é que sou a vítima e eu é que tenho de sair?”, interroga. “Tudo o que eu tinha ficou lá dentro, até as fotografias dos meus filhos. Isso trava muitas mulheres, como me travou a mim durante muito tempo.”

Apesar das dificuldades, não tem dúvidas. “Não vou dizer que é fácil, mas tenho uma sensação de liberdade que não sentia há muito tempo”, assegura. “Quando há reportagens sobre este tema, há alturas em que não queremos ver para não nos identificarmos mas, acreditem, depois de darmos o passo, muda-se para muito melhor.” Palavra de sobrevivente.

A brutalidade dos números

Apesar da diminuição das participações junto das forças de segurança, às organizações de apoio às vítimas de violência doméstica continuaram a chegar pedidos de ajuda 1 277

Queixas por violência doméstica recebidas pela PSP durante o confinamento obrigatório (de 23 de março a 2 de maio), menos 33% em relação ao mesmo período do ano passado 418

Vítimas de violência acolhidas em casas de abrigo entre 30 de março e 24 de maio.

Destas, 251 eram mulheres, 155 eram menores e 12 eram homens. No primeiro semestre de 2019, foram recebidas 613 pessoas 599

Pedidos de ajuda registados pelas linhas de apoio da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, de 19 de março a 31 de maio, quatro vezes mais do que entre março e maio de 2019. Mais de metade (56%) chegou através dos contactos de SMS e de email criados no âmbito da pandemia 11 591

Pessoas atendidas pela Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, presencialmente e não presencialmente, entre 30 de março e 24 de maio. Cerca de 60% contactaram o serviço já depois de 10 de maio, em pleno desconfinamento 8

Mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica desde o início do ano. Em 2019, só no primeiro trimestre, foram mortas 14 100

Vagas extras nas duas casas de abrigo criadas para acolher vítimas de violência doméstica durante a pandemia somam-se às cerca de 600 já existentes e às 150 de acolhimento de emergência

Ajuda em linha Eis alguns contactos úteis para pedir ajuda ou denunciar casos de violência doméstica: Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género

800 202 148

gratuito, confidencial, 24 horas por dia 3060

gratuito e confidencial, não surge na fatura telefónica

violencia.covid@cig.gov.pt Linha Nacional de Emergência Social

144

gratuito, confidencial, 24 horas por dia Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV)

116 006

gratuito, confidencial, dias úteis das 9h às 21h

Os nomes das vítimas de violência doméstica foram alterados para sua proteção.

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