Empresários temem que fundos europeus sejam mal gastos

09-08-2020
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O tema da conferência “Fábrica do Futuro”, que decorreu na quarta-feira no porto de Leixões, começou por ser a reindustrialização e a digitalização do sector. Mas depressa caminhou para um debate sobre como as empresas e as indústrias portuguesas vão superar o impacto da covid-19 e como é que vão ser aplicados os mais de €45 mil milhões que Portugal vai receber da União Europeia (UE) para combater a crise pandémica. Um novo pacote de fundos, que foi aprovado precisamente no dia anterior ao evento e que, apesar de bem recebido, está a gerar alguns receios no tecido empresarial e industrial português.

“Quero acreditar que já aprendemos o que não está bem e o que é preciso mudar. O tempo atual mostrou-nos a importância de trabalhar em conjunto, mas no quadro comunitário Portugal 2020 a taxa de execução anda pouco acima dos 60%, e o plano anual mais o que vamos receber é cerca de 50% de tudo o que já recebemos da UE. Vai ser um desafio enorme que vai exigir prioridades e a definição do que queremos conseguir”, diz o presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP), Luís Miguel Ribeiro.

De facto, afirma o CEO da Dott, Gaspar D’Orey, “até agora tivemos uma execução medíocre. Há inúmeros casos que mostram que este capital fica pelo caminho”, ou seja, não é entregue às empresas e indústrias, que são quem realmente precisa dele.

Uma opinião partilhada pelo economista João Duque, que tece pesadas críticas a algumas decisões do Governo no que respeita à aplicação dos fundos. “Sinceramente, temo que não tenhamos aprendido muito com os processos anteriores. Estamos a pedir dinheiro à Europa que vai ser cedido gratuitamente para investimento, a fundo perdido, e depois, com base no achismo — porque nunca vi uma conta feita —, achamos que devemos investir €1,2 mil milhões numa empresa que está falida. Porquê? Porque sim”, diz, referindo-se à TAP.

O economista até concorda que o Estado deve ter “uma política discriminatória” de aplicação dos fundos, mas considera que “há princípios básicos que devem ser feitos antes de os executar, como análises custo-benefício”. “Confrange-me ver a ferrovia a ser construída em bitola ibérica em vez de bitola europeia. E andarmos a comprar sucata, carruagens que já ninguém quer. Vamos encarecer o custo do transporte de mercadorias em Portugal”, repara.

O secretário de Estado da Transição Digital, André de Aragão Azevedo, que encerrou o encontro, concorda com João Duque, mas explica que “não podemos ter bitola europeia e depois voltar a trocar em Espanha [que tem bitola ibérica]. A decisão depende de Espanha”. Contudo, nos outros temas, diz que “gostava de ver um bocadinho mais de otimismo” e assegurou que o Governo está a trabalhar para ter um bom plano de ação para aplicar os fundos. “Temos de ter muito claras as áreas de aposta e a noção de que, sem capacidade de concretização, não vamos conseguir aproveitar a oportunidade única que representa este investimento massivo que está a caminho”, nota.

Os intervenientes deste encontro concordam que é preciso ter um plano de ação muito bem definido para aplicar os apoios comunitários e dão algumas sugestões, sendo uma delas a criação de condições para que as empresas e as indústrias possam depois criar marcas próprias e nacionais. “Em Portugal, não temos marcas. A única marca que temos é o CR7 e não está cá. Na Holanda há cinco ou seis marcas mundiais e muitas delas são industriais”, diz João Duque.

Contudo, expõe Gaspar D’Orey, este não é só um problema de falta de dinheiro, mas também de ambição. O CEO da Dott diz que as empresas portuguesas ainda “têm muito medo de arriscar” e gostava que elas tivessem o desejo “de não serem apenas fornecedoras” de grandes marcas internacionais. Uma opinião partilhada pelo presidente da Ivity Corp Brand, Carlos Coelho: “Portugal nunca deixou de se desenvolver por falta de dinheiro, mas sim por falta de ideias, de ambição, de imaginação.”

Mas, para estes três oradores, a criação de marcas não significa a criação de grandes empresas, pelo contrário. “O capital tem de ser grande, mas o seu proprietário não”, nota João Duque, salientando a possibilidade de se ganhar escala através do associativismo. Algo em que diz sermos “fracos”. De facto, diz Carlos Coelho, “não podemos condenar o país a ter apenas empresas grandes. A Itália do pós-guerra cresceu através de microempresas em microrregiões. A Ferrari tem 2000 pessoas. É uma empresa pequena”, conta.

Aposta no digital

Outra das sugestões dos oradores para aplicar estes novos fundos europeus passa pela formação e requalificação dos recursos humanos e também pela aposta no talento e na sua fixação em Portugal, como destaca Luís Miguel Ribeiro e Pedro Pinto. Uma sugestão que está ligada a uma outra: a “inevitável” aposta no digital e na indústria 4.0 (ver caixa de pontos).

“Um estudo recente da E&Y conclui que todos os sectores que têm recursos humanos mais qualificados e uma maior aposta no digital são mais imunes às crises, nomeadamente à crise pandémica que atravessamos”, diz o secretário de Estado. Porém, “nem tudo pode transitar para o digital e nem sempre essa transição é apenas começar a vender os produtos online”, alerta Pedro Pinto.

Portugal

28%

é o que a AEP ambiciona que seja o peso da indústria no PIB, mais 10 pontos percentuais face ao valor médio desde 2010, que é 18%

1000 milhões

(de €470 milhões) é para quanto o Governo quer que o investimento nacional e internacional cresça

O que é a fábrica do futuro

Recorre à reciclagem de materiais, à utilização de fontes energéticas verdes e ao uso inteligente de energia; fica atenta ao desperdício e à logística

Responde às necessidades segmentadas da população, ou seja, consegue obter feedback do cliente, às vezes em tempo real, e dessa forma reinventar ou alterar os produtos de acordo com as necessidades; permite ainda vender os produtos diretamente ao consumidor final através do comércio online

Esta tendência chama-se directto consumer e, para que seja possível, as fábricas têm de recorrer à inteligência artificial e/ou à análise de dados

O uso destas tecnologias avançadas, em tempo real, permite ainda antever falhas e, por isso, reduzir os custos de produção

Textos originalmente publicados no Expresso de 25 de julho de 2020

O tema da conferência “Fábrica do Futuro”, que decorreu na quarta-feira no porto de Leixões, começou por ser a reindustrialização e a digitalização do sector. Mas depressa caminhou para um debate sobre como as empresas e as indústrias portuguesas vão superar o impacto da covid-19 e como é que vão ser aplicados os mais de €45 mil milhões que Portugal vai receber da União Europeia (UE) para combater a crise pandémica. Um novo pacote de fundos, que foi aprovado precisamente no dia anterior ao evento e que, apesar de bem recebido, está a gerar alguns receios no tecido empresarial e industrial português.

“Quero acreditar que já aprendemos o que não está bem e o que é preciso mudar. O tempo atual mostrou-nos a importância de trabalhar em conjunto, mas no quadro comunitário Portugal 2020 a taxa de execução anda pouco acima dos 60%, e o plano anual mais o que vamos receber é cerca de 50% de tudo o que já recebemos da UE. Vai ser um desafio enorme que vai exigir prioridades e a definição do que queremos conseguir”, diz o presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP), Luís Miguel Ribeiro.

De facto, afirma o CEO da Dott, Gaspar D’Orey, “até agora tivemos uma execução medíocre. Há inúmeros casos que mostram que este capital fica pelo caminho”, ou seja, não é entregue às empresas e indústrias, que são quem realmente precisa dele.

Uma opinião partilhada pelo economista João Duque, que tece pesadas críticas a algumas decisões do Governo no que respeita à aplicação dos fundos. “Sinceramente, temo que não tenhamos aprendido muito com os processos anteriores. Estamos a pedir dinheiro à Europa que vai ser cedido gratuitamente para investimento, a fundo perdido, e depois, com base no achismo — porque nunca vi uma conta feita —, achamos que devemos investir €1,2 mil milhões numa empresa que está falida. Porquê? Porque sim”, diz, referindo-se à TAP.

O economista até concorda que o Estado deve ter “uma política discriminatória” de aplicação dos fundos, mas considera que “há princípios básicos que devem ser feitos antes de os executar, como análises custo-benefício”. “Confrange-me ver a ferrovia a ser construída em bitola ibérica em vez de bitola europeia. E andarmos a comprar sucata, carruagens que já ninguém quer. Vamos encarecer o custo do transporte de mercadorias em Portugal”, repara.

O secretário de Estado da Transição Digital, André de Aragão Azevedo, que encerrou o encontro, concorda com João Duque, mas explica que “não podemos ter bitola europeia e depois voltar a trocar em Espanha [que tem bitola ibérica]. A decisão depende de Espanha”. Contudo, nos outros temas, diz que “gostava de ver um bocadinho mais de otimismo” e assegurou que o Governo está a trabalhar para ter um bom plano de ação para aplicar os fundos. “Temos de ter muito claras as áreas de aposta e a noção de que, sem capacidade de concretização, não vamos conseguir aproveitar a oportunidade única que representa este investimento massivo que está a caminho”, nota.

Os intervenientes deste encontro concordam que é preciso ter um plano de ação muito bem definido para aplicar os apoios comunitários e dão algumas sugestões, sendo uma delas a criação de condições para que as empresas e as indústrias possam depois criar marcas próprias e nacionais. “Em Portugal, não temos marcas. A única marca que temos é o CR7 e não está cá. Na Holanda há cinco ou seis marcas mundiais e muitas delas são industriais”, diz João Duque.

Contudo, expõe Gaspar D’Orey, este não é só um problema de falta de dinheiro, mas também de ambição. O CEO da Dott diz que as empresas portuguesas ainda “têm muito medo de arriscar” e gostava que elas tivessem o desejo “de não serem apenas fornecedoras” de grandes marcas internacionais. Uma opinião partilhada pelo presidente da Ivity Corp Brand, Carlos Coelho: “Portugal nunca deixou de se desenvolver por falta de dinheiro, mas sim por falta de ideias, de ambição, de imaginação.”

Mas, para estes três oradores, a criação de marcas não significa a criação de grandes empresas, pelo contrário. “O capital tem de ser grande, mas o seu proprietário não”, nota João Duque, salientando a possibilidade de se ganhar escala através do associativismo. Algo em que diz sermos “fracos”. De facto, diz Carlos Coelho, “não podemos condenar o país a ter apenas empresas grandes. A Itália do pós-guerra cresceu através de microempresas em microrregiões. A Ferrari tem 2000 pessoas. É uma empresa pequena”, conta.

Aposta no digital

Outra das sugestões dos oradores para aplicar estes novos fundos europeus passa pela formação e requalificação dos recursos humanos e também pela aposta no talento e na sua fixação em Portugal, como destaca Luís Miguel Ribeiro e Pedro Pinto. Uma sugestão que está ligada a uma outra: a “inevitável” aposta no digital e na indústria 4.0 (ver caixa de pontos).

“Um estudo recente da E&Y conclui que todos os sectores que têm recursos humanos mais qualificados e uma maior aposta no digital são mais imunes às crises, nomeadamente à crise pandémica que atravessamos”, diz o secretário de Estado. Porém, “nem tudo pode transitar para o digital e nem sempre essa transição é apenas começar a vender os produtos online”, alerta Pedro Pinto.

Portugal

28%

é o que a AEP ambiciona que seja o peso da indústria no PIB, mais 10 pontos percentuais face ao valor médio desde 2010, que é 18%

1000 milhões

(de €470 milhões) é para quanto o Governo quer que o investimento nacional e internacional cresça

O que é a fábrica do futuro

Recorre à reciclagem de materiais, à utilização de fontes energéticas verdes e ao uso inteligente de energia; fica atenta ao desperdício e à logística

Responde às necessidades segmentadas da população, ou seja, consegue obter feedback do cliente, às vezes em tempo real, e dessa forma reinventar ou alterar os produtos de acordo com as necessidades; permite ainda vender os produtos diretamente ao consumidor final através do comércio online

Esta tendência chama-se directto consumer e, para que seja possível, as fábricas têm de recorrer à inteligência artificial e/ou à análise de dados

O uso destas tecnologias avançadas, em tempo real, permite ainda antever falhas e, por isso, reduzir os custos de produção

Textos originalmente publicados no Expresso de 25 de julho de 2020

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