Viagem aos palácios abandonados

22-11-2019
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Se as casas fossem letra de fado, o poema compararia os palácios abandonados de Lisboa a uma bela mulher desprezada pelo amante. As casas falam connosco, ensinam-nos o que não somos capazes de entender. Pedem-nos que as escutemos em vez de passarmos apressados sem as ver. “Entrar num edifício antigo, é como sentarmo-nos à mesa com uma senhora de idade e ouvir o que ela tem para nos contar”. Ficar ali e “deixá-la falar”, diz o arquiteto João Favila, autor do projeto de reabilitação do Palácio da Rosa. Não se sabe a data da sua primitiva construção, mas o corpo mais antigo deste palácio já existia em 1220. Se não estivesse em ruínas seria um cenário das mil e uma noites. Mas é uma casa esventrada pela erosão e pelos sucessivos furtos de meliantes que procuram (essencialmente) fio de cobre. Desde que foi vendido em hasta pública há cerca de dez anos, foi-se degradando cada vez mais, apesar de algumas intervenções feitas pelo atual proprietário [Herdade da Fajã Velha], que contratou o arquiteto João Favila para reabilitar a velha casa senhorial que irá ser um hotel de charme [condição imposta pela Câmara Municipal de Lisboa na hasta pública]. “É estranho que uma cidade como Lisboa, que nem sequer é rica em palácios, não tenha uma visão de conjunto para combater a degradação do património, nem se dedique muito a pensar nele”, diz ao Expresso Paulo Ferrero do Fórum Cidadania LX, uma associação cívica de defesa do património da capital que tem um site e uma página muito ativa no facebook. Com base num levantamento feito pelo Fórum Cidadania LX, o Expresso selecionou 17 palácios em mau estado para construir este mapa interativo. Convidamos o leitor a navegar pelo centro de Lisboa e clicar nas ‘lágrimas’ para ler a ficha de identificação e conhecer a rua onde fica cada um destes 17 palácios.

“Pelas nossas contas, contando com algumas quintas apalaçadas e alguns palacetes, há perto de 100 palácios em Lisboa; cerca de dois terços estão em bom estado ou razoável, mas um terço estão degradados”, explica o ativista do Fórum Cidadania LX. Acresce que “90 ou mais destes palácios estão protegidos oficialmente, não por classificações individuais, mas porque se situam em zonas de proteção de outros bens classificados. Há situações caricatas de palácios que estão protegidos por quatro zonas de proteção... e estão em ruína”, acrescenta Paulo Ferrero. Casamento não consumado na velha rua Formosa Marcello é um historiador italiano apaixonado por documentos medievais portugueses, Tereza uma bibliotecária brasileira que passa longos períodos em Lisboa, Edite uma professora de pilates portuguesa. Gostam de Lisboa, apreciam a arquitetura pombalina da Baixa Lisboeta, mas nenhum sabe onde nasceu o Marquês de Pombal. No entanto, os três disseram ao Expresso que adorariam conhecer a casa onde há 317 anos nasceu Sebastião José de Carvalho e Melo, a 13 de maio de 1699. Pombal nasceu na velha rua Formosa, no solar dos Carvalhos, morada da sua família na capital. Defronte deste singelo palácio setecentista da pequena aristocracia, vivia a poderosa família dos Monteiro Paim, pertencentes à velha aristocracia portuguesa, que integrou o núcleo duro da corte de D. Filipa de Lencastre quando esta casou com D. João I. Inteligente, ambicioso e decidido a conquistar uma posição de destaque na política portuguesa do seu tempo, Sebastião José tinha 23 anos quando casou com uma viúva da grande nobreza portuguesa, dez anos mais velha do que ele. Consta que não foram felizes. Depois de Teresa morrer, Pombal conheceu a sua segunda mulher, a condessa de Daun, com quem viria a ter cinco filhos: três raparigas e dois rapazes. A lei do morgadio ditava que era o filho mais velho quem herdava os bens; o Marquês tentou acautelar o futuro de José Francisco, o seu segundo filho, combinando o matrimónio deste com a rica herdeira da casa em frente. O noivo tinha 14 anos e a noiva 15. A 11 de abril de 1768, 13 anos depois do grande terramoto que destruiu Lisboa e transformou Sebastião José no homem forte do reino, os dois jovens foram casados por arranjo tácito dos respetivos pais. O confronto e a anulação do casamento O casamento de Isabel Juliana de Sousa Coutinho Monteiro Paim com José Francisco de Carvalho Daun poderia ter sido um matrimónio de conveniência, igual a todos os outros dessa época se a noiva não estivesse apaixonada pelo seu amigo de infância, Alexandre de Sousa Holstein. Dona de uma vontade indomável, Isabel enfrentou a família, hostilizou o noivo e desafiou o sogro. Três anos depois do enlace, o casamento continuava sem ser consumado. Cresciam os mexericos na Corte ... e o Marquês decidiu pedir a anulação do contrato. Por desabafo seu, ou do marido rejeitado por Isabel Juliana, o solar dos Conde d'Alva (que pertencia à família da noiva), passaria a ser conhecido por palácio do Bichinho de Conta. No século XXI ainda é assim que “este precioso exemplar da arquitetura seiscentista” — segundo João Favila — é usualmente conhecido. Desse esplendor resta a fachada...

Não se sabe ao certo se teria sido Pombal ou José Francisco que se referiram a Isabel dizendo que não seria aquele “bichinho de conta que lhe iria deter os passos”. Com a anulação do casamento, Isabel voltou a ser solteira. A 15 de agosto de 1771 foi enviada para o mosteiro de Santa Joana, onde a abadessa era irmã de Sebastião José; ao contrário do que acontecia com as noviças e freiras da grande nobreza, foi tratada com severidade, e a sua avó, Maria Antónia, pediu ao rei para impedir que o voto de silêncio fosse imposto à neta. Os documentos do processo de anulação estão na Torre do Tombo. D. José morreu em 1777 e o Marquês caiu em desgraça com a subida ao trono de D. Maria I. Alexandre ainda estava solteiro, Isabel deixou o convento e os dois casaram em julho de 1779. A noiva tinha 26 anos, e viria a ser a mãe de Pedro de Sousa Holstein, primeiro duque de Palmela, que nasceu em Turim a 8 de Maio de 1781. A casa onde nasceu o polémico primeiro-ministro de D. José — a quem o historiador Fernando Rosas se referiu como uma espécie de “prefácio da modernidade” na História de Portugal — fica no coração de Lisboa, a meio da rua do Século que desce do jardim do Príncipe Real em direção à Calçada do Combro. É uma ruína habitada e acarinhada por quem a tem usado, mesmo que para fins menos nobres daqueles que mereceria. Ao longo destes três séculos, o solar dos Carvalhos, hoje conhecido por Palácio Pombal, teve múltiplos usos; só no século XX, e a título de exemplo, viu nascer notícias [o jornal “O Século” ocupou uma parte dos seus jardins], acolheu a construção de um pavilhão mal amanhado onde funcionou uma fábrica de munições, e foi sede da legação da Alemanha em Portugal durante a I Guerra Mundial.

No século XVIII, a singela casa onde Sebastião José nasceu no final do século XVII, foi objeto de uma “campanha decorativa”. Os tetos de relevo de estuque surgem por volta das décadas de 1740/1750, e foram “feitos por artistas italianos do norte de Itália, dos quais os mais conhecidos eram os Grossi”, explica o historiador Miguel Soromenho, que estudou o Palácio Pombal: “A fábrica de armamento que existiu no jardim destruiu a forma como este estava construído, em dois socalcos”. Propriedade da Câmara de Lisboa desde 1968 (tal como os palácios Marim-Olhão, Valadares, Sinel de Cordes e Alarcão — todos localizáveis no nosso mapa), é a EGEAC que assegura a gestão do palácio Pombal desde o final da década de 1990. A Escola Superior de Dança ocupou uma parte do edifício, a associação cultural Carpe Diem funciona lá, e as galerias municipais promovem eventos no espaço, prevenindo desta forma a ocorrência de atos de vandalismo e a total degradação. Figura controversa da História de Portugal, o Marquês de Pombal foi olhado com desconfiança pela velha nobreza. O déspota iluminado, como ficou conhecido, “acabou com a escravatura em Portugal e com os autos-de-fé, embora não tenha extinguido a Inquisição”, conta o ensaísta Miguel Real, autor de um estudo sobre Sebastião José de Carvalho e Melo e de um romance sobre o terramoto de Lisboa: “No final do seu mandato existiam dois a três mil presos políticos no Forte da Junqueira”. Para a posteridade, ficaram — entre outras coisas — as bases da industrialização do país e a reconstrução de Lisboa depois do terramoto.

Quem conhece bem estes edifícios é Paulo Ferrero e Miguel Veloso do Forum Cidadania LX, Gastão Brito e Silva do blogue ruin'arte , e Gonçalo Gouveia, um dos dinamizadores do grupo fechado do Facebook Lugares Abandonados, que tem 32 mil membros. Brito e Silva alerta para o “péssimo estado” do palácio Almada-Carvalhais, “a segunda casa mais antiga de Lisboa”. Descendo a rua onde Sebastião nasceu, desaguamos na Calçada do Combro, onde encontramos o palácio Marim-Olhão, um edifício inacabado. Miguel Soromenho lembra que um dos corpos do solar nunca foi construído. Mais conhecido por palácio do Correio-Velho, por ali ter funcionado o correio central, albergou o jornal “Revolução de Setembro”. Atualmente, funciona lá uma conhecida leiloeira, que garante a utilização parcial do imóvel. Para um edifício, “é pior não ser ocupado do que ser mal ocupado. O espaço vazio é uma ruína potencial”, avisa Miguel Soromenho.

O arquiteto Favila herdou do pai a paixão pelo ofício e pela cidade. Fala das entranhas de Lisboa com o mesmo deslumbramento de um arqueólogo que gosta de procurar achados fenícios que revelem a forma de viver dos povoadores desta urbe. O palácio da Rosa fica no topo da rua das Farinhas, no largo do mesmo nome, e no bairro da Mouraria. Mágico, misterioso, senhor de uma vista panorâmica sobre a cidade contemporânea, este verdadeiro monumento que bordeja a cerca fernandina, sofreu sucessivos acrescentos e intervenções, mudou de donos e de função, viu o país ser ocupado e governado por espanhóis, resistiu [parcialmente] ao terramoto de 1755... e chegou até aos nossos dias à espera das obras que devolvam vida aos seus salões. Favila lembra que na última campanha de obras foi feita uma intervenção “para prevenir a degradação. Agora estão a ser feitas sondagens geológicas na zona do [jardim do] palácio que fica fora da muralha”, em coordenação com outras entidades que estudam a futura ligação do Martim Moniz ao Castelo de São Jorge.

Junqueira: a rua que já foi praia O palácio onde até 2002 funcionou o antigo liceu Rainha D. Amélia — muito perto do Hospital Egas Moniz — dava diretamente para a praia quando foi construído nas primeiras décadas do século XVIII. Nesse tempo, a Torre de Belém era um fortificação marítima que garantia a defesa do porto de Lisboa, construída num ilhéu no meio do Tejo, e as águas do largo estuário do rio chegavam muito perto da rua da Junqueira, para onde dão as várias portas do Palácio dos Condes da Ribeira Grande. Os mapas da época mostram que aí passava uma estrada rente à praia, que ligava Lisboa ao aglomerado piscatório de Belém. A cidade só conquistaria algumas centenas de metros ao rio com a construção do aterro na segunda metade do século XIX. Catorze anos depois do liceu ter abandonado o local, é uma desolação visitar o palácio. Nada resta dos sonhos de uma menina que ali estudou no ano 2000: “Onde era a biblioteca, eu via um salão onde os donos do palácio davam bailes para os seus amigos nobres. A cantina”, que funcionava perto das velhas cavalariças, “estava sempre a receber os cavalos dos convidados e pela ‘escadaria proibida’ subiam as damas com os seus grandes vestidos de folhos”, lê-se no blogue “alfacinha”. Apaixonado pelo edifício, o investigador Tiago Antunes, considera este palácio “um caso singular de residência nobre no contexto da arquitectura civil portuguesa”; parte dele manteve-se como “residência da família e propriedade desta até meados do século XX”, apesar de na década de 1920 ali ter funcionado o Colégio Arriaga. O palácio sofreu várias campanhas de obras e o “culminar

desta evolução arquitectónica, com as obras de grande envergadura realizadas no seu interior, no final do século XX, veio dificultar a leitura conjunta do edifício e o seu entendimento enquanto residência nobre”, com caraterísticas muito particulares, nomeadamente a existência de corredores que asseguravam a ligação entre os vários corpos do palácio, acrescenta Tiago Molarinho Antunes.

Há três grupos ‘profissionais’ que cobiçam as grandes casas abandonadas: trabalhadores da indústria cinematográfica, negociantes imobiliários e... à margem da lei, o setor dos assaltantes que vandalizam edifícios para roubar fio de cobre, madeiras, e tudo o que possam levar. No caso do cinema, o realizador Bile August — que já filmara parte de “A Casa dos Espíritos” em Lisboa — regressou à capital portuguesa para filmar “Comboio noturno para Lisboa”. Neste filme, em que Jeremy Irons contracena com Charlotte Rampling, Bruno Ganz e Nicolau Breyner, entre outros, a cena da livraria, foi filmada nas ruínas do Palácio da Ribeira Grande. Este edifício foi comprado pela Fibeira que aguarda a tramitação do processo de reabilitação do palácio que será uma unidade hoteleira com 65 quartos. O piso térreo irá ser uma zona de acesso público, “com uma galeria de arte, onde serão expostas peças da coleção particular do proprietário. No jardim, vamos construir um espaço” para acolher residências artísticas, explica Jerónimo Rijo, um dos engenheiros ligados ao projeto. O Expresso acompanhou uma visita dos herdeiros dos condes da Ribeira Grande ao palácio dos seus antepassados (ver imagem na fotogaleria); a maior parte deles nunca ali tinha entrado, mesmo alguns dos mais velhos. Apesar do mau estado de conservação em que se encontra o edifício, foi uma oportunidade de sentirem um espaço que guarda memórias de família, antes deste ser transformado em hotel-museu.

Se as casas fossem letra de fado, o poema compararia os palácios abandonados de Lisboa a uma bela mulher desprezada pelo amante. As casas falam connosco, ensinam-nos o que não somos capazes de entender. Pedem-nos que as escutemos em vez de passarmos apressados sem as ver. “Entrar num edifício antigo, é como sentarmo-nos à mesa com uma senhora de idade e ouvir o que ela tem para nos contar”. Ficar ali e “deixá-la falar”, diz o arquiteto João Favila, autor do projeto de reabilitação do Palácio da Rosa. Não se sabe a data da sua primitiva construção, mas o corpo mais antigo deste palácio já existia em 1220. Se não estivesse em ruínas seria um cenário das mil e uma noites. Mas é uma casa esventrada pela erosão e pelos sucessivos furtos de meliantes que procuram (essencialmente) fio de cobre. Desde que foi vendido em hasta pública há cerca de dez anos, foi-se degradando cada vez mais, apesar de algumas intervenções feitas pelo atual proprietário [Herdade da Fajã Velha], que contratou o arquiteto João Favila para reabilitar a velha casa senhorial que irá ser um hotel de charme [condição imposta pela Câmara Municipal de Lisboa na hasta pública]. “É estranho que uma cidade como Lisboa, que nem sequer é rica em palácios, não tenha uma visão de conjunto para combater a degradação do património, nem se dedique muito a pensar nele”, diz ao Expresso Paulo Ferrero do Fórum Cidadania LX, uma associação cívica de defesa do património da capital que tem um site e uma página muito ativa no facebook. Com base num levantamento feito pelo Fórum Cidadania LX, o Expresso selecionou 17 palácios em mau estado para construir este mapa interativo. Convidamos o leitor a navegar pelo centro de Lisboa e clicar nas ‘lágrimas’ para ler a ficha de identificação e conhecer a rua onde fica cada um destes 17 palácios.

“Pelas nossas contas, contando com algumas quintas apalaçadas e alguns palacetes, há perto de 100 palácios em Lisboa; cerca de dois terços estão em bom estado ou razoável, mas um terço estão degradados”, explica o ativista do Fórum Cidadania LX. Acresce que “90 ou mais destes palácios estão protegidos oficialmente, não por classificações individuais, mas porque se situam em zonas de proteção de outros bens classificados. Há situações caricatas de palácios que estão protegidos por quatro zonas de proteção... e estão em ruína”, acrescenta Paulo Ferrero. Casamento não consumado na velha rua Formosa Marcello é um historiador italiano apaixonado por documentos medievais portugueses, Tereza uma bibliotecária brasileira que passa longos períodos em Lisboa, Edite uma professora de pilates portuguesa. Gostam de Lisboa, apreciam a arquitetura pombalina da Baixa Lisboeta, mas nenhum sabe onde nasceu o Marquês de Pombal. No entanto, os três disseram ao Expresso que adorariam conhecer a casa onde há 317 anos nasceu Sebastião José de Carvalho e Melo, a 13 de maio de 1699. Pombal nasceu na velha rua Formosa, no solar dos Carvalhos, morada da sua família na capital. Defronte deste singelo palácio setecentista da pequena aristocracia, vivia a poderosa família dos Monteiro Paim, pertencentes à velha aristocracia portuguesa, que integrou o núcleo duro da corte de D. Filipa de Lencastre quando esta casou com D. João I. Inteligente, ambicioso e decidido a conquistar uma posição de destaque na política portuguesa do seu tempo, Sebastião José tinha 23 anos quando casou com uma viúva da grande nobreza portuguesa, dez anos mais velha do que ele. Consta que não foram felizes. Depois de Teresa morrer, Pombal conheceu a sua segunda mulher, a condessa de Daun, com quem viria a ter cinco filhos: três raparigas e dois rapazes. A lei do morgadio ditava que era o filho mais velho quem herdava os bens; o Marquês tentou acautelar o futuro de José Francisco, o seu segundo filho, combinando o matrimónio deste com a rica herdeira da casa em frente. O noivo tinha 14 anos e a noiva 15. A 11 de abril de 1768, 13 anos depois do grande terramoto que destruiu Lisboa e transformou Sebastião José no homem forte do reino, os dois jovens foram casados por arranjo tácito dos respetivos pais. O confronto e a anulação do casamento O casamento de Isabel Juliana de Sousa Coutinho Monteiro Paim com José Francisco de Carvalho Daun poderia ter sido um matrimónio de conveniência, igual a todos os outros dessa época se a noiva não estivesse apaixonada pelo seu amigo de infância, Alexandre de Sousa Holstein. Dona de uma vontade indomável, Isabel enfrentou a família, hostilizou o noivo e desafiou o sogro. Três anos depois do enlace, o casamento continuava sem ser consumado. Cresciam os mexericos na Corte ... e o Marquês decidiu pedir a anulação do contrato. Por desabafo seu, ou do marido rejeitado por Isabel Juliana, o solar dos Conde d'Alva (que pertencia à família da noiva), passaria a ser conhecido por palácio do Bichinho de Conta. No século XXI ainda é assim que “este precioso exemplar da arquitetura seiscentista” — segundo João Favila — é usualmente conhecido. Desse esplendor resta a fachada...

Não se sabe ao certo se teria sido Pombal ou José Francisco que se referiram a Isabel dizendo que não seria aquele “bichinho de conta que lhe iria deter os passos”. Com a anulação do casamento, Isabel voltou a ser solteira. A 15 de agosto de 1771 foi enviada para o mosteiro de Santa Joana, onde a abadessa era irmã de Sebastião José; ao contrário do que acontecia com as noviças e freiras da grande nobreza, foi tratada com severidade, e a sua avó, Maria Antónia, pediu ao rei para impedir que o voto de silêncio fosse imposto à neta. Os documentos do processo de anulação estão na Torre do Tombo. D. José morreu em 1777 e o Marquês caiu em desgraça com a subida ao trono de D. Maria I. Alexandre ainda estava solteiro, Isabel deixou o convento e os dois casaram em julho de 1779. A noiva tinha 26 anos, e viria a ser a mãe de Pedro de Sousa Holstein, primeiro duque de Palmela, que nasceu em Turim a 8 de Maio de 1781. A casa onde nasceu o polémico primeiro-ministro de D. José — a quem o historiador Fernando Rosas se referiu como uma espécie de “prefácio da modernidade” na História de Portugal — fica no coração de Lisboa, a meio da rua do Século que desce do jardim do Príncipe Real em direção à Calçada do Combro. É uma ruína habitada e acarinhada por quem a tem usado, mesmo que para fins menos nobres daqueles que mereceria. Ao longo destes três séculos, o solar dos Carvalhos, hoje conhecido por Palácio Pombal, teve múltiplos usos; só no século XX, e a título de exemplo, viu nascer notícias [o jornal “O Século” ocupou uma parte dos seus jardins], acolheu a construção de um pavilhão mal amanhado onde funcionou uma fábrica de munições, e foi sede da legação da Alemanha em Portugal durante a I Guerra Mundial.

No século XVIII, a singela casa onde Sebastião José nasceu no final do século XVII, foi objeto de uma “campanha decorativa”. Os tetos de relevo de estuque surgem por volta das décadas de 1740/1750, e foram “feitos por artistas italianos do norte de Itália, dos quais os mais conhecidos eram os Grossi”, explica o historiador Miguel Soromenho, que estudou o Palácio Pombal: “A fábrica de armamento que existiu no jardim destruiu a forma como este estava construído, em dois socalcos”. Propriedade da Câmara de Lisboa desde 1968 (tal como os palácios Marim-Olhão, Valadares, Sinel de Cordes e Alarcão — todos localizáveis no nosso mapa), é a EGEAC que assegura a gestão do palácio Pombal desde o final da década de 1990. A Escola Superior de Dança ocupou uma parte do edifício, a associação cultural Carpe Diem funciona lá, e as galerias municipais promovem eventos no espaço, prevenindo desta forma a ocorrência de atos de vandalismo e a total degradação. Figura controversa da História de Portugal, o Marquês de Pombal foi olhado com desconfiança pela velha nobreza. O déspota iluminado, como ficou conhecido, “acabou com a escravatura em Portugal e com os autos-de-fé, embora não tenha extinguido a Inquisição”, conta o ensaísta Miguel Real, autor de um estudo sobre Sebastião José de Carvalho e Melo e de um romance sobre o terramoto de Lisboa: “No final do seu mandato existiam dois a três mil presos políticos no Forte da Junqueira”. Para a posteridade, ficaram — entre outras coisas — as bases da industrialização do país e a reconstrução de Lisboa depois do terramoto.

Quem conhece bem estes edifícios é Paulo Ferrero e Miguel Veloso do Forum Cidadania LX, Gastão Brito e Silva do blogue ruin'arte , e Gonçalo Gouveia, um dos dinamizadores do grupo fechado do Facebook Lugares Abandonados, que tem 32 mil membros. Brito e Silva alerta para o “péssimo estado” do palácio Almada-Carvalhais, “a segunda casa mais antiga de Lisboa”. Descendo a rua onde Sebastião nasceu, desaguamos na Calçada do Combro, onde encontramos o palácio Marim-Olhão, um edifício inacabado. Miguel Soromenho lembra que um dos corpos do solar nunca foi construído. Mais conhecido por palácio do Correio-Velho, por ali ter funcionado o correio central, albergou o jornal “Revolução de Setembro”. Atualmente, funciona lá uma conhecida leiloeira, que garante a utilização parcial do imóvel. Para um edifício, “é pior não ser ocupado do que ser mal ocupado. O espaço vazio é uma ruína potencial”, avisa Miguel Soromenho.

O arquiteto Favila herdou do pai a paixão pelo ofício e pela cidade. Fala das entranhas de Lisboa com o mesmo deslumbramento de um arqueólogo que gosta de procurar achados fenícios que revelem a forma de viver dos povoadores desta urbe. O palácio da Rosa fica no topo da rua das Farinhas, no largo do mesmo nome, e no bairro da Mouraria. Mágico, misterioso, senhor de uma vista panorâmica sobre a cidade contemporânea, este verdadeiro monumento que bordeja a cerca fernandina, sofreu sucessivos acrescentos e intervenções, mudou de donos e de função, viu o país ser ocupado e governado por espanhóis, resistiu [parcialmente] ao terramoto de 1755... e chegou até aos nossos dias à espera das obras que devolvam vida aos seus salões. Favila lembra que na última campanha de obras foi feita uma intervenção “para prevenir a degradação. Agora estão a ser feitas sondagens geológicas na zona do [jardim do] palácio que fica fora da muralha”, em coordenação com outras entidades que estudam a futura ligação do Martim Moniz ao Castelo de São Jorge.

Junqueira: a rua que já foi praia O palácio onde até 2002 funcionou o antigo liceu Rainha D. Amélia — muito perto do Hospital Egas Moniz — dava diretamente para a praia quando foi construído nas primeiras décadas do século XVIII. Nesse tempo, a Torre de Belém era um fortificação marítima que garantia a defesa do porto de Lisboa, construída num ilhéu no meio do Tejo, e as águas do largo estuário do rio chegavam muito perto da rua da Junqueira, para onde dão as várias portas do Palácio dos Condes da Ribeira Grande. Os mapas da época mostram que aí passava uma estrada rente à praia, que ligava Lisboa ao aglomerado piscatório de Belém. A cidade só conquistaria algumas centenas de metros ao rio com a construção do aterro na segunda metade do século XIX. Catorze anos depois do liceu ter abandonado o local, é uma desolação visitar o palácio. Nada resta dos sonhos de uma menina que ali estudou no ano 2000: “Onde era a biblioteca, eu via um salão onde os donos do palácio davam bailes para os seus amigos nobres. A cantina”, que funcionava perto das velhas cavalariças, “estava sempre a receber os cavalos dos convidados e pela ‘escadaria proibida’ subiam as damas com os seus grandes vestidos de folhos”, lê-se no blogue “alfacinha”. Apaixonado pelo edifício, o investigador Tiago Antunes, considera este palácio “um caso singular de residência nobre no contexto da arquitectura civil portuguesa”; parte dele manteve-se como “residência da família e propriedade desta até meados do século XX”, apesar de na década de 1920 ali ter funcionado o Colégio Arriaga. O palácio sofreu várias campanhas de obras e o “culminar

desta evolução arquitectónica, com as obras de grande envergadura realizadas no seu interior, no final do século XX, veio dificultar a leitura conjunta do edifício e o seu entendimento enquanto residência nobre”, com caraterísticas muito particulares, nomeadamente a existência de corredores que asseguravam a ligação entre os vários corpos do palácio, acrescenta Tiago Molarinho Antunes.

Há três grupos ‘profissionais’ que cobiçam as grandes casas abandonadas: trabalhadores da indústria cinematográfica, negociantes imobiliários e... à margem da lei, o setor dos assaltantes que vandalizam edifícios para roubar fio de cobre, madeiras, e tudo o que possam levar. No caso do cinema, o realizador Bile August — que já filmara parte de “A Casa dos Espíritos” em Lisboa — regressou à capital portuguesa para filmar “Comboio noturno para Lisboa”. Neste filme, em que Jeremy Irons contracena com Charlotte Rampling, Bruno Ganz e Nicolau Breyner, entre outros, a cena da livraria, foi filmada nas ruínas do Palácio da Ribeira Grande. Este edifício foi comprado pela Fibeira que aguarda a tramitação do processo de reabilitação do palácio que será uma unidade hoteleira com 65 quartos. O piso térreo irá ser uma zona de acesso público, “com uma galeria de arte, onde serão expostas peças da coleção particular do proprietário. No jardim, vamos construir um espaço” para acolher residências artísticas, explica Jerónimo Rijo, um dos engenheiros ligados ao projeto. O Expresso acompanhou uma visita dos herdeiros dos condes da Ribeira Grande ao palácio dos seus antepassados (ver imagem na fotogaleria); a maior parte deles nunca ali tinha entrado, mesmo alguns dos mais velhos. Apesar do mau estado de conservação em que se encontra o edifício, foi uma oportunidade de sentirem um espaço que guarda memórias de família, antes deste ser transformado em hotel-museu.

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