Vender por €100 mil aquilo que se produziu a €100: o incrível negócio dos medicamentos inovadores

30-09-2020
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Karen esperou dez anos pelo medicamento que lhe pode salvar a vida. Depois, quando este foi aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), esperou mais um ano até que o Ministério da Saúde se entendesse com o laboratório que o comercializa: 48 mil euros por cada tratamento era um valor “completamente imoral”, considerava o ministro Paulo Macedo. O acordo fez-se por fim, em fevereiro, na semana em que um paciente foi ao Parlamento implorar que não o deixassem morrer por causa da hepatite C. Mas Karen continuou à espera. A médica esqueceu-se de a avisar que o medicamento já estava na farmácia do hospital. Dois meses. Como se 60 dias fossem uma insignificância na vida de quem tem um vírus que vai destruindo o fígado, podendo originar falência hepática, cirrose e cancro. O desfecho é, em muitos casos, a morte. Foi por isso que José Carlos Saldanha foi à Assembleia dizer ao ministro que queria viver. Para que não tivesse o destino da paciente que morrera dias antes após meses à espera do inovador — mas caro — tratamento. Chamava-se Maria Manuela Ferreira, tinha 51 anos. O filho, David, pondera processar o Estado português. “Não quiseram dar a cura à minha mãe. Ela não morreu, foi morta por eles.” Maria foi, segundo o bastonário da Ordem dos Médicos, “uma mártir nos cortes do financiamento da saúde”. Não foi caso único, garante Karen. “Conheci umas três pessoas para quem a aprovação do medicamento já chegou tarde.” A convicção é reforçada pelas palavras de José Cotter, presidente da Sociedade de Gastrenterologia. “Têm morrido doentes por não terem tido acesso ao medicamento”, admitia em janeiro. Morrer por causa da hepatite C foi um cenário que Karen Gaidão, de 43 anos (que ficou conhecida quando era mulher do ex-futebolista Mário Jardel), só colocou uma vez. Foi há 11 anos, tinha ela 33, quando descobriu a razão de se sentir sempre cansada: terá contraído a doença numa transfusão sanguínea quando era criança. “Na altura, não sabia nada sobre a hepatite e fiquei muito assustada. Perguntei ao médico: ‘Doutor, vou morrer?’ Mas nunca mais pensei nisso. Sempre disse que esta doença não me iria matar”, conta ao Expresso. Mal soube que era portadora do vírus iniciou o primeiro tratamento: uma injeção por semana de interferão e cinco comprimidos por dia de uma substância chamada ribavirina. A terapia tem uma taxa de sucesso de 60%, que varia consoante o genótipo da doença, mas não produziu efeitos em Karen. Agora, uma década depois, espera ficar do lado bom da estatística. A nova substância, chamada sofosbuvir, usada de forma isolada ou, no caso da ex-modelo e ex-apresentadora de televisão, em combinação com outro fármaco, o ledipasvir (com um preço ainda mais caro), cura a doença em mais de 90% dos casos. Karen está otimista. “Sinto que tudo vai correr bem.” SOBE, SOBE, BALÃO, SOBE O exemplo do sofosbuvir é um dos mais mediáticos entre uma nova geração de medicamentos promissores, mais eficazes, mais seguros e com menos efeitos secundários, mas, ao mesmo tempo, muito mais caros, que estão a gerar intensa controvérsia. Não é só a sustentabilidade dos sistemas de saúde que está em causa, ameaçada pela despesa galopante. É também o acesso de milhões de pacientes a esses fármacos. “Pela primeira vez, em países considerados de alta renda, foi negado o acesso a um medicamento por causa do seu preço a um grupo muito numeroso de pacientes (vários milhões de pessoas na UE)”, referem os autores do estudo luso-espanhol “Acesso a Novos Medicamentos: o Exemplo da Hepatite C”, publicado em junho, e no qual participou Pedro Pita Barros, especialista em economia da saúde. “Cidadãos sem acesso a medicamentos por causa do preço é, não esqueçamos, a realidade insuportável de muitos países do globo”, lembra Marta Temido, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH). “O que mudou foi que essa questão se coloca agora nos países de alta renda. A nós.”

Miguel A. Lopes/Lusa

Preços extremamente elevados não são, porém, um exclusivo do fármaco da hepatite C. Por exemplo, em 2012, o Estado português aceitou pagar 30 milhões de euros (120 mil euros por paciente) para tratar 250 doentes com paramiloidose, conhecida como a “doença dos pezinhos”, com a primeira molécula desenvolvida para a patologia. Outro exemplo: nos EUA, um tratamento para uma forma rara de fibrose cística custa cerca de 280 mil euros por ano. Um dos maiores desafios vem dos fármacos usados em oncologia, cujos preços não param de subir. “Os orçamentos quase duplicaram numa década, não porque se tratem mais pacientes mas sim porque estes são tratados por mais tempo e com medicamentos muito mais caros”, refere António Melo Gouveia, diretor dos Serviços Farmacêuticos do IPO de Lisboa. No ano passado, o Infarmed autorizou a utilização em meio hospitalar do ipilimumab, a primeira substância aprovada a demonstrar sobrevivência a longo prazo em pacientes previamente tratados para o melanoma avançado. Preço: 12.500 euros por sessão, 50 mil euros em média por doente. E há substâncias ainda mais caras a caminho, cuja despesa anual ultrapassa frequentemente os 100 mil euros. Nos EUA, que têm os medicamentos mais caros do mundo, porque o seu preço não pode ser negociado, as faturas médicas tornaram-se a principal causa de falência dos cidadãos. No caso das doenças oncológicas, os resultados representam, muitas vezes, pouco mais do que uns meses de vida, o que tem feito crescer o debate sobre se os benefícios para os pacientes justificam os custos para os sistemas de saúde. Luís Costa, diretor do Departamento de Oncologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, não tem dúvidas: os medicamentos “têm de refletir o benefício que proporcionam”, mas aumentar “em média seis meses a um ano de vida, por exemplo”, a um doente com cancro avançado “é um ganho muito grande para o atual estado do tratamento da doença nessa fase”. O importante é encontrar um modelo que funcione para que os medicamentos cheguem aos pacientes em tempo útil. Este problema não é só nacional. Basta ver o que aconteceu também nos EUA com o fármaco da hepatite C, conhecido como o “comprimido dos mil dólares” e descrito pelo economista Jeffrey Sachs como o fármaco “que está a levar a América à falência”. O preço é confidencial e varia de país para país, criando grandes disparidades. Nos EUA, chega a custar mais de 75 mil euros, mas o Egito — que tem a maior prevalência da doença no mundo e recusou algumas das patentes relacionadas com o sofosbuvir — paga cerca de 800 euros, quase 100 vezes menos.

João Lima

CUSTO VS. PREÇO Poderia pensar-se que alguns medicamentos são mais caros porque custa mais produzi-los, mas não é necessariamente assim, garante Pedro Pita Barros, professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa. “Não foi o custo dos medicamentos inovadores que disparou mas sim o preço pedido.” A distinção é importante, sublinha, porque, ao contrário do que acontece com outros bens, os preços elevados de alguns fármacos não refletem o que custou produzi-los. Sem surpresa, esse custo é algo que as farmacêuticas não estão dispostas a revelar, o que deixa os clientes (sobretudo os Estados e as seguradoras, mas também os pacientes) numa posição de extrema vulnerabilidade, negociando com uma única empresa que detém o exclusivo da cura e que, por isso, pode exigir o preço que quiser. Por cada paciente tratado com sofosbuvir, Portugal pagará cerca de 20 mil euros. Mas, segundo investigadores da Universidade de Liverpool, um tratamento de 12 semanas custará entre 60 e 120 euros a produzir. Pegando nesse valor, Pita Barros e os seus colegas espanhóis calcularam os custos de investigação e também os de marketing e chegaram à conclusão que um preço final razoável nunca deveria ultrapassar os 300 euros, preço da versão genérica vendida na Índia, onde a patente foi recusada. No “Huffington Post”, Jeffrey Sachs escreveu que o fármaco era “um medicamento extraordinário”, capaz de salvar vidas, mas mostrava também a ganância dos laboratórios, gerando “lucros privados arbitrariamente elevados pagos pelo contribuinte”. As farmacêuticas justificam-se com a necessidade de recuperar os custos de investigação, mas o argumento não convence os críticos. Para o desmontar, basta recorrer à calculadora. Veja-se novamente o caso do sofosbuvir: a Gilead comprou-o por cerca de 10 mil milhões de euros, o que pode parecer uma fortuna, mas recuperou o investimento em menos de um ano — o fármaco faturou mais de 11 mil milhões de euros em 2014. Se se considerar antes o custo de investigação e desenvolvimento, que Jeffrey Sachs estima em menos de 300 milhões de euros, este foi recuperado em poucas semanas. COMO SE ESTABELECE O PREÇO? A pergunta impõe-se: como é que um medicamento pode ser vendido por cerca de mil vezes do que custou a ser produzido? Na génese do problema, aponta Pedro Pita Barros, está o facto de o mercado farmacêutico assentar num sistema de patentes que cria situações de monopólio onde, sem a ameaça da concorrência, as farmacêuticas fixam o preço que entenderem. E fazem-no tendo como referência não o custo de produção mas o valor que consideram que criam para o paciente, ou seja, o valor mais elevado que o cliente está disposto a pagar. Uma política que o economista contesta. “O princípio da eficiência económica é que o preço se aproxime do custo unitário de produção, não do valor máximo que o beneficiário está disposto a pagar.”

FOTO TIAGO MIRANDA

Um dos caminhos para baixar o preço dos medicamentos inovadores passa, por isso, por rever o sistema de patentes, defende o economista. “Se não admitimos monopólios que estabeleçam os preços que querem noutras áreas, não há razão para que tal aconteça na inovação farmacêutica.” Num campo delicado como o da saúde, não pode valer tudo. “Deverá ser permitida uma remuneração adequada do investimento realizado, não uma transferência maciça de valor [para as farmacêuticas].” Enquanto isso não acontece, os Estados dispõem de mecanismos para “fazer prevalecer o interesse coletivo sobre o interesse privado”, considera Marta Temido. Podem, por exemplo, contestar as patentes, acusando os laboratórios de deter um monopólio e de estar a vender o fármaco a preços especulativos. Não é inédito. O Brasil já o fez no caso dos antirretrovirais e, mais recentemente, a Índia fê-lo com o sofosbuvir. A Gilead enfrenta processos semelhantes nos EUA, Argentina, Brasil, China, Rússia, Ucrânia e UE, neste caso num processo interposto pela ONG Médicos do Mundo. “Considerar que alguns preços podem representar um abuso do direito de patente é uma hipótese que tem sido esgrimida, a meu ver com muito bons argumentos, em trabalhos recentes”, refere a presidente da APAH. REPOR O EQUILÍBRIO Pedro Pita Barros alerta que, se o atual modelo de fixação de preços não for mudado, os problemas de acesso aos fármacos inovadores irão acentuar-se em todo o mundo. Por isso, recuperar o equilíbrio entre os interesses dos pacientes, por um lado, e os das farmacêuticas, por outro, passa, em primeiro lugar, por reduzir os preços mediante negociação com a indústria, ajustando-os aos custos reais, incluindo os de investigação. Ora isso exige “muita transparência no conhecimento dos custos de investigação e de produção”, rigor na avaliação das vantagens de cada medicamento e um “aumento na eficiência do próprio processo de desenvolvimento” dos fármacos, refere António Melo Gouveia. Eurico Castro Alves, presidente do Infarmed, antevê um obstáculo na negociação com os laboratórios: a pouca coordenação que existe a nível europeu no relacionamento com a indústria. “As farmacêuticas têm informação sobre os preços nos vários países, mas estes guardam sigilo sobre as condições obtidas”, explica. Como cada país (especialmente os mais ricos) tenta negociar o melhor preço possível, os mais pequenos (com menor volume de compras) têm menos capacidade de negociar. “A verdade é que há uma negociação em cada país entre as autoridades de saúde e as companhias que desenvolveram os produtos”, confirma Vítor Virgínia, diretor-geral da Merck em Portugal. “Nestas discussões são sempre consideradas questões como o custo de desenvolvimento dos medicamentos e a escala potencial de utilização, mas também as condições de cada sistema de saúde.” A farmacêutica submeteu para aprovação da EMA uma substância para o melanoma, o pembrolizumab, cujo custo nos EUA supera os 130 mil euros por ano. No caso dos medicamentos para a hepatite C, o acordo conseguido pelo Governo português foi, segundo Paulo Macedo, “o melhor da Europa”, mas poderia ter sido mais vantajoso se os parceiros europeus tivessem adotado uma estratégia conjunta. O Infarmed propôs uma aliança para negociar um preço máximo por tratamento cerca de seis vezes o do Egito, na direta proporção com a média do PIB europeu, ou seja, cerca de 5 mil euros, um quarto daquilo que Portugal paga. A iniciativa falhou, porque muitos Estados decidiram negociar isoladamente.

A revisão do próprio modelo de fixação de preços será, por isso, muito complexa, considera Marta Temido, porque implicará “um movimento global forte num tema que ainda é relativamente recente nas agendas políticas”. Pita Barros concorda. “Será necessária uma discussão internacional sobre o que significa pagar a inovação” e sobre como se deve determinar o preço. Para isso, urge apurar em cada doença o que é um benefício clinicamente significativo, pois muitos dos medicamentos que chegam ao mercado, apesar de extremamente caros, não são inovadores nem têm um valor acrescentado que justifique o seu preço. Para o economista, além de “formas diferentes de lidar com as patentes” e mesmo com o processo de investigação, uma das possibilidades seria a criação de mecanismos que permitissem separar o financiamento da inovação do preço dos medicamentos. Por exemplo, estabelecendo “um prémio fixo para uma inovação terapêutica” ou criando fundos globais destinados a esse fim, no âmbito da UE ou da Organização Mundial de Saúde. Para salvaguardar os pacientes, deveriam impor-se licenças obrigatórias para os casos em que não se produzisse um acordo justo.

David Clifford

Karen esperou dez anos pelo medicamento que lhe pode salvar a vida. Depois, quando este foi aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), esperou mais um ano até que o Ministério da Saúde se entendesse com o laboratório que o comercializa: 48 mil euros por cada tratamento era um valor “completamente imoral”, considerava o ministro Paulo Macedo. O acordo fez-se por fim, em fevereiro, na semana em que um paciente foi ao Parlamento implorar que não o deixassem morrer por causa da hepatite C. Mas Karen continuou à espera. A médica esqueceu-se de a avisar que o medicamento já estava na farmácia do hospital. Dois meses. Como se 60 dias fossem uma insignificância na vida de quem tem um vírus que vai destruindo o fígado, podendo originar falência hepática, cirrose e cancro. O desfecho é, em muitos casos, a morte. Foi por isso que José Carlos Saldanha foi à Assembleia dizer ao ministro que queria viver. Para que não tivesse o destino da paciente que morrera dias antes após meses à espera do inovador — mas caro — tratamento. Chamava-se Maria Manuela Ferreira, tinha 51 anos. O filho, David, pondera processar o Estado português. “Não quiseram dar a cura à minha mãe. Ela não morreu, foi morta por eles.” Maria foi, segundo o bastonário da Ordem dos Médicos, “uma mártir nos cortes do financiamento da saúde”. Não foi caso único, garante Karen. “Conheci umas três pessoas para quem a aprovação do medicamento já chegou tarde.” A convicção é reforçada pelas palavras de José Cotter, presidente da Sociedade de Gastrenterologia. “Têm morrido doentes por não terem tido acesso ao medicamento”, admitia em janeiro. Morrer por causa da hepatite C foi um cenário que Karen Gaidão, de 43 anos (que ficou conhecida quando era mulher do ex-futebolista Mário Jardel), só colocou uma vez. Foi há 11 anos, tinha ela 33, quando descobriu a razão de se sentir sempre cansada: terá contraído a doença numa transfusão sanguínea quando era criança. “Na altura, não sabia nada sobre a hepatite e fiquei muito assustada. Perguntei ao médico: ‘Doutor, vou morrer?’ Mas nunca mais pensei nisso. Sempre disse que esta doença não me iria matar”, conta ao Expresso. Mal soube que era portadora do vírus iniciou o primeiro tratamento: uma injeção por semana de interferão e cinco comprimidos por dia de uma substância chamada ribavirina. A terapia tem uma taxa de sucesso de 60%, que varia consoante o genótipo da doença, mas não produziu efeitos em Karen. Agora, uma década depois, espera ficar do lado bom da estatística. A nova substância, chamada sofosbuvir, usada de forma isolada ou, no caso da ex-modelo e ex-apresentadora de televisão, em combinação com outro fármaco, o ledipasvir (com um preço ainda mais caro), cura a doença em mais de 90% dos casos. Karen está otimista. “Sinto que tudo vai correr bem.” SOBE, SOBE, BALÃO, SOBE O exemplo do sofosbuvir é um dos mais mediáticos entre uma nova geração de medicamentos promissores, mais eficazes, mais seguros e com menos efeitos secundários, mas, ao mesmo tempo, muito mais caros, que estão a gerar intensa controvérsia. Não é só a sustentabilidade dos sistemas de saúde que está em causa, ameaçada pela despesa galopante. É também o acesso de milhões de pacientes a esses fármacos. “Pela primeira vez, em países considerados de alta renda, foi negado o acesso a um medicamento por causa do seu preço a um grupo muito numeroso de pacientes (vários milhões de pessoas na UE)”, referem os autores do estudo luso-espanhol “Acesso a Novos Medicamentos: o Exemplo da Hepatite C”, publicado em junho, e no qual participou Pedro Pita Barros, especialista em economia da saúde. “Cidadãos sem acesso a medicamentos por causa do preço é, não esqueçamos, a realidade insuportável de muitos países do globo”, lembra Marta Temido, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH). “O que mudou foi que essa questão se coloca agora nos países de alta renda. A nós.”

Miguel A. Lopes/Lusa

Preços extremamente elevados não são, porém, um exclusivo do fármaco da hepatite C. Por exemplo, em 2012, o Estado português aceitou pagar 30 milhões de euros (120 mil euros por paciente) para tratar 250 doentes com paramiloidose, conhecida como a “doença dos pezinhos”, com a primeira molécula desenvolvida para a patologia. Outro exemplo: nos EUA, um tratamento para uma forma rara de fibrose cística custa cerca de 280 mil euros por ano. Um dos maiores desafios vem dos fármacos usados em oncologia, cujos preços não param de subir. “Os orçamentos quase duplicaram numa década, não porque se tratem mais pacientes mas sim porque estes são tratados por mais tempo e com medicamentos muito mais caros”, refere António Melo Gouveia, diretor dos Serviços Farmacêuticos do IPO de Lisboa. No ano passado, o Infarmed autorizou a utilização em meio hospitalar do ipilimumab, a primeira substância aprovada a demonstrar sobrevivência a longo prazo em pacientes previamente tratados para o melanoma avançado. Preço: 12.500 euros por sessão, 50 mil euros em média por doente. E há substâncias ainda mais caras a caminho, cuja despesa anual ultrapassa frequentemente os 100 mil euros. Nos EUA, que têm os medicamentos mais caros do mundo, porque o seu preço não pode ser negociado, as faturas médicas tornaram-se a principal causa de falência dos cidadãos. No caso das doenças oncológicas, os resultados representam, muitas vezes, pouco mais do que uns meses de vida, o que tem feito crescer o debate sobre se os benefícios para os pacientes justificam os custos para os sistemas de saúde. Luís Costa, diretor do Departamento de Oncologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, não tem dúvidas: os medicamentos “têm de refletir o benefício que proporcionam”, mas aumentar “em média seis meses a um ano de vida, por exemplo”, a um doente com cancro avançado “é um ganho muito grande para o atual estado do tratamento da doença nessa fase”. O importante é encontrar um modelo que funcione para que os medicamentos cheguem aos pacientes em tempo útil. Este problema não é só nacional. Basta ver o que aconteceu também nos EUA com o fármaco da hepatite C, conhecido como o “comprimido dos mil dólares” e descrito pelo economista Jeffrey Sachs como o fármaco “que está a levar a América à falência”. O preço é confidencial e varia de país para país, criando grandes disparidades. Nos EUA, chega a custar mais de 75 mil euros, mas o Egito — que tem a maior prevalência da doença no mundo e recusou algumas das patentes relacionadas com o sofosbuvir — paga cerca de 800 euros, quase 100 vezes menos.

João Lima

CUSTO VS. PREÇO Poderia pensar-se que alguns medicamentos são mais caros porque custa mais produzi-los, mas não é necessariamente assim, garante Pedro Pita Barros, professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa. “Não foi o custo dos medicamentos inovadores que disparou mas sim o preço pedido.” A distinção é importante, sublinha, porque, ao contrário do que acontece com outros bens, os preços elevados de alguns fármacos não refletem o que custou produzi-los. Sem surpresa, esse custo é algo que as farmacêuticas não estão dispostas a revelar, o que deixa os clientes (sobretudo os Estados e as seguradoras, mas também os pacientes) numa posição de extrema vulnerabilidade, negociando com uma única empresa que detém o exclusivo da cura e que, por isso, pode exigir o preço que quiser. Por cada paciente tratado com sofosbuvir, Portugal pagará cerca de 20 mil euros. Mas, segundo investigadores da Universidade de Liverpool, um tratamento de 12 semanas custará entre 60 e 120 euros a produzir. Pegando nesse valor, Pita Barros e os seus colegas espanhóis calcularam os custos de investigação e também os de marketing e chegaram à conclusão que um preço final razoável nunca deveria ultrapassar os 300 euros, preço da versão genérica vendida na Índia, onde a patente foi recusada. No “Huffington Post”, Jeffrey Sachs escreveu que o fármaco era “um medicamento extraordinário”, capaz de salvar vidas, mas mostrava também a ganância dos laboratórios, gerando “lucros privados arbitrariamente elevados pagos pelo contribuinte”. As farmacêuticas justificam-se com a necessidade de recuperar os custos de investigação, mas o argumento não convence os críticos. Para o desmontar, basta recorrer à calculadora. Veja-se novamente o caso do sofosbuvir: a Gilead comprou-o por cerca de 10 mil milhões de euros, o que pode parecer uma fortuna, mas recuperou o investimento em menos de um ano — o fármaco faturou mais de 11 mil milhões de euros em 2014. Se se considerar antes o custo de investigação e desenvolvimento, que Jeffrey Sachs estima em menos de 300 milhões de euros, este foi recuperado em poucas semanas. COMO SE ESTABELECE O PREÇO? A pergunta impõe-se: como é que um medicamento pode ser vendido por cerca de mil vezes do que custou a ser produzido? Na génese do problema, aponta Pedro Pita Barros, está o facto de o mercado farmacêutico assentar num sistema de patentes que cria situações de monopólio onde, sem a ameaça da concorrência, as farmacêuticas fixam o preço que entenderem. E fazem-no tendo como referência não o custo de produção mas o valor que consideram que criam para o paciente, ou seja, o valor mais elevado que o cliente está disposto a pagar. Uma política que o economista contesta. “O princípio da eficiência económica é que o preço se aproxime do custo unitário de produção, não do valor máximo que o beneficiário está disposto a pagar.”

FOTO TIAGO MIRANDA

Um dos caminhos para baixar o preço dos medicamentos inovadores passa, por isso, por rever o sistema de patentes, defende o economista. “Se não admitimos monopólios que estabeleçam os preços que querem noutras áreas, não há razão para que tal aconteça na inovação farmacêutica.” Num campo delicado como o da saúde, não pode valer tudo. “Deverá ser permitida uma remuneração adequada do investimento realizado, não uma transferência maciça de valor [para as farmacêuticas].” Enquanto isso não acontece, os Estados dispõem de mecanismos para “fazer prevalecer o interesse coletivo sobre o interesse privado”, considera Marta Temido. Podem, por exemplo, contestar as patentes, acusando os laboratórios de deter um monopólio e de estar a vender o fármaco a preços especulativos. Não é inédito. O Brasil já o fez no caso dos antirretrovirais e, mais recentemente, a Índia fê-lo com o sofosbuvir. A Gilead enfrenta processos semelhantes nos EUA, Argentina, Brasil, China, Rússia, Ucrânia e UE, neste caso num processo interposto pela ONG Médicos do Mundo. “Considerar que alguns preços podem representar um abuso do direito de patente é uma hipótese que tem sido esgrimida, a meu ver com muito bons argumentos, em trabalhos recentes”, refere a presidente da APAH. REPOR O EQUILÍBRIO Pedro Pita Barros alerta que, se o atual modelo de fixação de preços não for mudado, os problemas de acesso aos fármacos inovadores irão acentuar-se em todo o mundo. Por isso, recuperar o equilíbrio entre os interesses dos pacientes, por um lado, e os das farmacêuticas, por outro, passa, em primeiro lugar, por reduzir os preços mediante negociação com a indústria, ajustando-os aos custos reais, incluindo os de investigação. Ora isso exige “muita transparência no conhecimento dos custos de investigação e de produção”, rigor na avaliação das vantagens de cada medicamento e um “aumento na eficiência do próprio processo de desenvolvimento” dos fármacos, refere António Melo Gouveia. Eurico Castro Alves, presidente do Infarmed, antevê um obstáculo na negociação com os laboratórios: a pouca coordenação que existe a nível europeu no relacionamento com a indústria. “As farmacêuticas têm informação sobre os preços nos vários países, mas estes guardam sigilo sobre as condições obtidas”, explica. Como cada país (especialmente os mais ricos) tenta negociar o melhor preço possível, os mais pequenos (com menor volume de compras) têm menos capacidade de negociar. “A verdade é que há uma negociação em cada país entre as autoridades de saúde e as companhias que desenvolveram os produtos”, confirma Vítor Virgínia, diretor-geral da Merck em Portugal. “Nestas discussões são sempre consideradas questões como o custo de desenvolvimento dos medicamentos e a escala potencial de utilização, mas também as condições de cada sistema de saúde.” A farmacêutica submeteu para aprovação da EMA uma substância para o melanoma, o pembrolizumab, cujo custo nos EUA supera os 130 mil euros por ano. No caso dos medicamentos para a hepatite C, o acordo conseguido pelo Governo português foi, segundo Paulo Macedo, “o melhor da Europa”, mas poderia ter sido mais vantajoso se os parceiros europeus tivessem adotado uma estratégia conjunta. O Infarmed propôs uma aliança para negociar um preço máximo por tratamento cerca de seis vezes o do Egito, na direta proporção com a média do PIB europeu, ou seja, cerca de 5 mil euros, um quarto daquilo que Portugal paga. A iniciativa falhou, porque muitos Estados decidiram negociar isoladamente.

A revisão do próprio modelo de fixação de preços será, por isso, muito complexa, considera Marta Temido, porque implicará “um movimento global forte num tema que ainda é relativamente recente nas agendas políticas”. Pita Barros concorda. “Será necessária uma discussão internacional sobre o que significa pagar a inovação” e sobre como se deve determinar o preço. Para isso, urge apurar em cada doença o que é um benefício clinicamente significativo, pois muitos dos medicamentos que chegam ao mercado, apesar de extremamente caros, não são inovadores nem têm um valor acrescentado que justifique o seu preço. Para o economista, além de “formas diferentes de lidar com as patentes” e mesmo com o processo de investigação, uma das possibilidades seria a criação de mecanismos que permitissem separar o financiamento da inovação do preço dos medicamentos. Por exemplo, estabelecendo “um prémio fixo para uma inovação terapêutica” ou criando fundos globais destinados a esse fim, no âmbito da UE ou da Organização Mundial de Saúde. Para salvaguardar os pacientes, deveriam impor-se licenças obrigatórias para os casos em que não se produzisse um acordo justo.

David Clifford

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