Voldemort e os objetores

07-09-2020
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Todas as crianças têm o direito inalienável à educação. Aqui inalienável significa que esse direito não só não depende da liberdade dos pais como está acima dela. A educação universal é tanto uma questão de desenvolvimento individual como é alicerce de uma comunidade nacional que partilha história, cultura, valores democráticos.

Tudo começou quando os pais de duas crianças disseram aos dois filhos para faltarem à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e, cometida a imprudência, recusaram um plano de recuperação. Essa decisão dos encarregados de educação teve consequências no sucesso escolar dos jovens. Este seria apenas um triste episódio, esperançosamente resolvido a favor das crianças, não fosse o desespero político em que vive a direita portuguesa.

Um conjunto de 100 personalidades quis dar dignidade de debate político ao acontecido, invocando através de um abaixo-assinado o suposto direito dos pais e mães à “objeção de consciência” quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento.

Os signatários reclamam direito à “liberdade de escolha” do currículo, uma expressão que é desde há quarenta anos serventia dos liberais em defesa do mercado contra os serviços públicos universais. A violação dessa liberdade levaria os pais a serem objetores da consciência dos filhos. E é aí que tudo derrapa porque uma coisa é escolher entre a escola A e B, outra é querer privar os filhos de uma parte do currículo nacional (e de ter consciência própria).

Todas as crianças têm o direito inalienável à educação. Aqui inalienável significa que esse direito não só não depende da liberdade dos pais como está acima dela. A educação universal é tanto uma questão de desenvolvimento individual como é alicerce de uma comunidade nacional que partilha história, cultura, valores democráticos.

Pode a democracia tolerar objeções de consciência aos Direitos Humanos? À ideia de que os seres humanos nascem iguais? Ao princípio constitucional de que a educação deve contribuir para “o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva”? Por outro lado, cabe a um pai ou a uma mãe vedar o acesso do seu filho ou filha a instrumentos educativos que lhe permitam ser um adulto saudável e consciente?

Estas são as matérias de Cidadania e Desenvolvimento, conteúdos tão subversivos como segurança rodoviária, igualdade, direitos humanos, literacia financeira, direitos do consumidor, saúde e sexualidade, diversidade cultural, empreendedorismo, bem-estar animal e educação ambiental. E tem a Declaração Universal dos Direitos Humanos como uma das suas referências.

Perante os conteúdos, argumentam ainda que a disciplina deixa demasiado espaço à “doutrinação”. Conheço poucas disciplinas mais sujeitas à disputa ideológica recente do que a história ou as ciências físicas, veja-se a abordagem ao colonialismo no ensino obrigatório. Os currículos estão sempre em debate mas poderá alguém mais esclarecido sobre a influência do passado no presente racista do nosso país declarar objeção de consciência ao programa de História? Mais, não se lecionam economias que não cumpram a ortodoxia neoliberal, poderá isso ser motivo de objeção de consciência?

Deixemo-nos de conversa fiada, estas pessoas não são objetores de consciência e muito menos defensores da liberdade. No Brasil, o mesmo movimento chamado “Escola Sem Partido” foi lançado por fanáticos para servir a campanha de Bolsonaro. A única diferença é que em Portugal os novos fanáticos acham-se moderados.

O que estes signatários pretendem não é a liberdade individual mas impor uma mudança de valores coletivos, a substituição da Declaração dos Direitos Humanos e da Constituição por qualquer outra coisa mais aparentada com o obscurantismo. Por algum motivo, a razão e as luzes voltam a ser discutidas pelos ideólogos da direita.

Muito disto tem cheiro de enxofre a antecipar agitações no PSD mas numa altura em que a extrema-direita avança no mundo é triste ver parte da direita democrática a deixar-se passar para o lado de lá, qual fiéis conjurados por Lord Voldemort.

Será a imagem do mundo do Harry Potter demasiado rebuscada? Talvez. Mas não é por acaso que Salazar Slytherin é o mais impiedoso e cruel dos quatro fundadores de Hogwarts.

Deputada do Bloco de Esquerda

Todas as crianças têm o direito inalienável à educação. Aqui inalienável significa que esse direito não só não depende da liberdade dos pais como está acima dela. A educação universal é tanto uma questão de desenvolvimento individual como é alicerce de uma comunidade nacional que partilha história, cultura, valores democráticos.

Tudo começou quando os pais de duas crianças disseram aos dois filhos para faltarem à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e, cometida a imprudência, recusaram um plano de recuperação. Essa decisão dos encarregados de educação teve consequências no sucesso escolar dos jovens. Este seria apenas um triste episódio, esperançosamente resolvido a favor das crianças, não fosse o desespero político em que vive a direita portuguesa.

Um conjunto de 100 personalidades quis dar dignidade de debate político ao acontecido, invocando através de um abaixo-assinado o suposto direito dos pais e mães à “objeção de consciência” quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento.

Os signatários reclamam direito à “liberdade de escolha” do currículo, uma expressão que é desde há quarenta anos serventia dos liberais em defesa do mercado contra os serviços públicos universais. A violação dessa liberdade levaria os pais a serem objetores da consciência dos filhos. E é aí que tudo derrapa porque uma coisa é escolher entre a escola A e B, outra é querer privar os filhos de uma parte do currículo nacional (e de ter consciência própria).

Todas as crianças têm o direito inalienável à educação. Aqui inalienável significa que esse direito não só não depende da liberdade dos pais como está acima dela. A educação universal é tanto uma questão de desenvolvimento individual como é alicerce de uma comunidade nacional que partilha história, cultura, valores democráticos.

Pode a democracia tolerar objeções de consciência aos Direitos Humanos? À ideia de que os seres humanos nascem iguais? Ao princípio constitucional de que a educação deve contribuir para “o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva”? Por outro lado, cabe a um pai ou a uma mãe vedar o acesso do seu filho ou filha a instrumentos educativos que lhe permitam ser um adulto saudável e consciente?

Estas são as matérias de Cidadania e Desenvolvimento, conteúdos tão subversivos como segurança rodoviária, igualdade, direitos humanos, literacia financeira, direitos do consumidor, saúde e sexualidade, diversidade cultural, empreendedorismo, bem-estar animal e educação ambiental. E tem a Declaração Universal dos Direitos Humanos como uma das suas referências.

Perante os conteúdos, argumentam ainda que a disciplina deixa demasiado espaço à “doutrinação”. Conheço poucas disciplinas mais sujeitas à disputa ideológica recente do que a história ou as ciências físicas, veja-se a abordagem ao colonialismo no ensino obrigatório. Os currículos estão sempre em debate mas poderá alguém mais esclarecido sobre a influência do passado no presente racista do nosso país declarar objeção de consciência ao programa de História? Mais, não se lecionam economias que não cumpram a ortodoxia neoliberal, poderá isso ser motivo de objeção de consciência?

Deixemo-nos de conversa fiada, estas pessoas não são objetores de consciência e muito menos defensores da liberdade. No Brasil, o mesmo movimento chamado “Escola Sem Partido” foi lançado por fanáticos para servir a campanha de Bolsonaro. A única diferença é que em Portugal os novos fanáticos acham-se moderados.

O que estes signatários pretendem não é a liberdade individual mas impor uma mudança de valores coletivos, a substituição da Declaração dos Direitos Humanos e da Constituição por qualquer outra coisa mais aparentada com o obscurantismo. Por algum motivo, a razão e as luzes voltam a ser discutidas pelos ideólogos da direita.

Muito disto tem cheiro de enxofre a antecipar agitações no PSD mas numa altura em que a extrema-direita avança no mundo é triste ver parte da direita democrática a deixar-se passar para o lado de lá, qual fiéis conjurados por Lord Voldemort.

Será a imagem do mundo do Harry Potter demasiado rebuscada? Talvez. Mas não é por acaso que Salazar Slytherin é o mais impiedoso e cruel dos quatro fundadores de Hogwarts.

Deputada do Bloco de Esquerda

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