Combater a precariedade na ciência com contratos precários?

23-11-2019
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Parece bizarro, mas é o que está em cima da mesa. Pode sempre dizer-se que ter um contrato precário, a termo incerto, com o máximo de seis anos, revogável a qualquer altura e sem perspetiva de integração numa carreira é melhor do que ter uma bolsa, igualmente precária mas com ainda menos proteção social. Mas quer no modo, quer na abrangência, todos esperam muito mais deste Governo no combate à precariedade na ciência.

Portugal teve, na década de 2000, um acréscimo global das despesas em Investigação e Desenvolvimento (1,59% do PIB em 2010, quando em 2000 era de 0,73%) e do volume de trabalhadores científicos (de 0,44% do emprego total em 2000 passou para 1,06% em 2010). Esse investimento, que teve em Mariano Gago o seu rosto mais visível, foi interrompido pelo PSD e pelo CDS, com cortes nas bolsas, avaliações enviesadas que determinaram o encerramento de centros de investigação, interrupção de linhas de investigação e emigração de centenas de cientistas. Mas em todo o período de consolidação do sistema científico em Portugal, desde o final da década de 1990, houve sempre um calcanhar de Aquiles: o facto de ele se ter feito à custa da degradação das condições de trabalho dos investigadores.

Por um lado, as restrições impostas à renovação dos quadros de pessoal incentivaram a utilização abusiva da figura da bolsa de investigação para necessidades de trabalho permanentes dos centros, ou o recurso a bolsas de formação avançada em gestão da ciência para trabalhos de investigação. Por outro, o estatuto de bolseiro foi sempre precário, colocando os investigadores num estatuto híbrido que os priva de grande parte dos direitos laborais dos trabalhadores assalariados.

Um inquérito realizado pela Associação de Combate à Precariedade em 2014 revelava que 69% dos investigadores eram bolseiros e apenas 15,7% tinham um vínculo laboral. No total, 77,8% dos investigadores nunca tiveram um contrato de trabalho e 50,2% dos bolseiros acumulam entre 5 e 15 anos nesta condição, ou seja, existe uma tendência para o prolongamento deste estatuto. Além disso, 79,5% dos investigadores que estiveram desempregados não tiveram acesso a proteção social no desemprego, dado que o estatuto de bolseiro não consagra esse direito.

Perante isto, a proposta de Manuel Heitor, tendo o mérito de reconhecer que os investigadores doutorados devem ter um contrato e não uma bolsa, é uma desilusão. Desilusão porque não é ainda desta que estamos a discutir o problema do conjunto dos bolseiros (os licenciados, os doutorandos, os de gestão de ciência, etc.). Desilusão porque não se pronuncia sobre a Carreira de Investigador, que continua fechada. Desilusão porque responde ao problema através da criação de uma carreira paralela precária, com salários muito inferiores, onde se sucedem contratos de seis anos, enquadrados pela figura do “contrato a termo incerto” (prevista legalmente para substituição temporária de um trabalhador ausente, em licença, ou para tarefas ocasionais, o que torna a sua utilização neste caso um paradoxo se o objetivo é reconhecer a necessidade destes trabalhadores), e sem estar previsto nenhum mecanismo de absorção ao fim desse prazo.

É claro que as instituições poderiam sempre vir a integrar estas pessoas ao fim de seis anos. Manuel Heitor já disse até que “espera e acredita” que as unidades de investigação o façam. Mas aqui vem a segunda má notícia, que faz com que a proposta não bata certo. O Governo anunciou esta semana um acordo com as instituições de ensino superior que prevê a manutenção, ao longo de toda a legislatura, dos níveis de financiamento deste ano. Ora, como se sabe, o orçamento deste ano é igual ao que vinha de trás. Ou seja, a promessa é manter os níveis de subfinanciamento do passado. A concretizar-se, como se pode esperar que as instituições contratem os cerca de dois mil bolseiros pós-doc mais os mil investigadores que estão no Programa Investigador FCT? Como dizia a um jornal Paulo Granjo, um dos porta vozes da Rede de Investigadores contra a Precariedade, “sem dinheiro, não há palhaços”.

Ficam por isso duas questões para os próximos meses. O Governo tem estado, e bem, a discutir com os investigadores o decreto que quer lançar para os enquadrar do ponto de vista laboral. Mas é preciso que essa iniciativa passe também pelo Parlamento, onde se conforma a maioria que o sustenta. A segunda questão é a do dinheiro. Portugal deve discutir o próximo orçamento com plena noção das dificuldades, identificando as rendas que estão a sorver recursos (como na energia ou na saúde) para investir no que interessa, recusando sanções e as pressões de Bruxelas. E quanto ao que interessa, temos de ser coerentes: o país precisa da ciência e do conhecimento e não há recuperação possível sem investimento público e sem trabalho com direitos.

Parece bizarro, mas é o que está em cima da mesa. Pode sempre dizer-se que ter um contrato precário, a termo incerto, com o máximo de seis anos, revogável a qualquer altura e sem perspetiva de integração numa carreira é melhor do que ter uma bolsa, igualmente precária mas com ainda menos proteção social. Mas quer no modo, quer na abrangência, todos esperam muito mais deste Governo no combate à precariedade na ciência.

Portugal teve, na década de 2000, um acréscimo global das despesas em Investigação e Desenvolvimento (1,59% do PIB em 2010, quando em 2000 era de 0,73%) e do volume de trabalhadores científicos (de 0,44% do emprego total em 2000 passou para 1,06% em 2010). Esse investimento, que teve em Mariano Gago o seu rosto mais visível, foi interrompido pelo PSD e pelo CDS, com cortes nas bolsas, avaliações enviesadas que determinaram o encerramento de centros de investigação, interrupção de linhas de investigação e emigração de centenas de cientistas. Mas em todo o período de consolidação do sistema científico em Portugal, desde o final da década de 1990, houve sempre um calcanhar de Aquiles: o facto de ele se ter feito à custa da degradação das condições de trabalho dos investigadores.

Por um lado, as restrições impostas à renovação dos quadros de pessoal incentivaram a utilização abusiva da figura da bolsa de investigação para necessidades de trabalho permanentes dos centros, ou o recurso a bolsas de formação avançada em gestão da ciência para trabalhos de investigação. Por outro, o estatuto de bolseiro foi sempre precário, colocando os investigadores num estatuto híbrido que os priva de grande parte dos direitos laborais dos trabalhadores assalariados.

Um inquérito realizado pela Associação de Combate à Precariedade em 2014 revelava que 69% dos investigadores eram bolseiros e apenas 15,7% tinham um vínculo laboral. No total, 77,8% dos investigadores nunca tiveram um contrato de trabalho e 50,2% dos bolseiros acumulam entre 5 e 15 anos nesta condição, ou seja, existe uma tendência para o prolongamento deste estatuto. Além disso, 79,5% dos investigadores que estiveram desempregados não tiveram acesso a proteção social no desemprego, dado que o estatuto de bolseiro não consagra esse direito.

Perante isto, a proposta de Manuel Heitor, tendo o mérito de reconhecer que os investigadores doutorados devem ter um contrato e não uma bolsa, é uma desilusão. Desilusão porque não é ainda desta que estamos a discutir o problema do conjunto dos bolseiros (os licenciados, os doutorandos, os de gestão de ciência, etc.). Desilusão porque não se pronuncia sobre a Carreira de Investigador, que continua fechada. Desilusão porque responde ao problema através da criação de uma carreira paralela precária, com salários muito inferiores, onde se sucedem contratos de seis anos, enquadrados pela figura do “contrato a termo incerto” (prevista legalmente para substituição temporária de um trabalhador ausente, em licença, ou para tarefas ocasionais, o que torna a sua utilização neste caso um paradoxo se o objetivo é reconhecer a necessidade destes trabalhadores), e sem estar previsto nenhum mecanismo de absorção ao fim desse prazo.

É claro que as instituições poderiam sempre vir a integrar estas pessoas ao fim de seis anos. Manuel Heitor já disse até que “espera e acredita” que as unidades de investigação o façam. Mas aqui vem a segunda má notícia, que faz com que a proposta não bata certo. O Governo anunciou esta semana um acordo com as instituições de ensino superior que prevê a manutenção, ao longo de toda a legislatura, dos níveis de financiamento deste ano. Ora, como se sabe, o orçamento deste ano é igual ao que vinha de trás. Ou seja, a promessa é manter os níveis de subfinanciamento do passado. A concretizar-se, como se pode esperar que as instituições contratem os cerca de dois mil bolseiros pós-doc mais os mil investigadores que estão no Programa Investigador FCT? Como dizia a um jornal Paulo Granjo, um dos porta vozes da Rede de Investigadores contra a Precariedade, “sem dinheiro, não há palhaços”.

Ficam por isso duas questões para os próximos meses. O Governo tem estado, e bem, a discutir com os investigadores o decreto que quer lançar para os enquadrar do ponto de vista laboral. Mas é preciso que essa iniciativa passe também pelo Parlamento, onde se conforma a maioria que o sustenta. A segunda questão é a do dinheiro. Portugal deve discutir o próximo orçamento com plena noção das dificuldades, identificando as rendas que estão a sorver recursos (como na energia ou na saúde) para investir no que interessa, recusando sanções e as pressões de Bruxelas. E quanto ao que interessa, temos de ser coerentes: o país precisa da ciência e do conhecimento e não há recuperação possível sem investimento público e sem trabalho com direitos.

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