Patrícia Reis

06-09-2020
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As duas mulheres conversaram até por sms. O nervosismo era imenso. Pelo meio, um rapaz mandava mais sms. A ansiedade. Depois o desgosto. Por fim, horas mais tarde, a lucidez de perceber que não podia ser de outra maneira e que os extraordinários são-no por não serem outra coisa.

publicado por Patrícia Reis às 12:25 link | comentar

Há duas semanas vivemos a morte de um amigo. Hoje da avó de uma amiga. Depois da feira do livro, aos pingos, frio e sem churros, na companhia da Lídia Jorge e da Graça Fonseca e da Ana Daniela Soares. A cidade enlouqueceu com o trânsito para o rock in rio, parece que temos rolling stones hoje. Tudo bem. A Igreja de Santos-o-Velho não foi difícil de encontrar. Triste foi ver a minha amiga a contar a forma como foi tratada pela Servilusa, a mesma que tem um contrato com a Misericórdia. A avó da minha amiga estava num lar da Misericórdia. Fiquei com o cartão da senhora que atendeu a minha amiga, tenciono maçar a administração com as piores palavras que me sairem da boca. Se o velório e cremação não estivessem ao abrigo de um acordo com a Misericórdia, pois os serviços seriam outros, a empatia e sensibilidade também. Felizmente, como boa produtora, a minha amiga, sem tempo para chorar a avó, ligou à agência funerária do bairro onde cresceu e tudo correu de feição. Paga tudo o que tem de pagar e, caso não tivesse como, passaria a ter, felizmente somos muitos os amigos que estão com ela neste momento. Maio foi um mês terrível. O departamento de recursos humanos, como diz a minha madrinha, lá no céu, anda com problemas de organização. Amanhã volto ao crematório dos Olivais. Volto a ver o coração rebolar pela calçada, o coração de uma neta, de uma bisneta e de uma filha. A morte é sempre inesperada.

A vida é curta para só ser vivida ao fim-de-semana. É preciso aprender a calar a algumas coisas, dizer outras. A mulher cruzou-se com uma amiga no Chiado. Disparatou como é, por vezes, tão habitual nela. Faz justiça ao rótulo que tanto lhe colam: bruta. Frontal é diferente de bruta. E ser bruta é má educação. Logo, foi mal educada. E pediu desculpa, de imediato, ao telemóvel. Não se senti bem consigo, com a sua pele. Jurou calar-se para sempre, sabendo que a jura não tem qualquer validade. Depois, voltou ao mesmo: a vida é curta para só se viver ao fim-de-semana. E ela nem ao fim-de-semana tem vida digna desse nome. E a amiga também não. Faz um esforço para não se queixar. Odeia ter de dizer que está cansada. Odeia mulheres que passam o dia com lamúrias. Não odeia, é excessivo. Não gosta. Enfim. Podia mudar de pele?

publicado por Patrícia Reis às 00:08 link | comentar

Eu podia contar-te tudo. Numa pose composta, sossegada, em meio-tom, a gerar cumplicidade, num jogo de construção de algo íntimo no qual acreditarias por impulso. Então, nesse instante, o meu corpo desenharia um semi-arco, as costas curvas, um prenúncio de confidência, algum mau-estar, onde a ideia de culpa se mistura com o pedido de perdão. Perdão é pouco: salvação. Gosto mais. E no teu olhar talvez haja esse mistério que carrega a possibilidade de me salvar no momento em que te conto a verdade por inteiro, todas as minhas maldades, os meus desvios, as mentiras e as outras coisas que um dia chamaste sedução. E eu não entendi. Estou a correr, eu sei, espera mais um pouco. Vê como agarro as mãos, uma na outra, as unhas roídas, as peles salientes, o verniz gasto, um verniz de velha. Não é a imagem que tens de mim? Quando te contar tudo aproveito a ocasião e mostro-te o meu corpo. Não penses que o conheces. Agarrá-lo e despejar o que há em ti de animal não te dá qualquer poder sobre mim, apenas sobre o meu sexo. E o meu corpo está para lá do sexo. Se quiseres faço-te um mapa. Se quiseres: tudo o que mudou, o que significa cada cicatriz, onde nasceram novos sinais, onde me dói mais. A dor é fundamental. Posso disfarçar, claro. Disfarço sempre. Mas agora não. Como tu não estás é mais fácil. Num exercício infantil prometo-me: conto tudo se chegares cansado; se disseres olá, se trouxeres o fato castanho; se ainda conseguir. Pode ser assim? (texto para o livro Díptico # 01 com fotografias de Cláudio Garrudo e textos de várias mulheres)

publicado por Patrícia Reis às 00:38 link | comentar

Um beijo, Marianna

Não é que tenha de ter razão. Não preciso de me sentir certa todos os dias. Acredita. Posso cometer os mesmos erros de sempre e dizeres que, pese as horas de conversa e acusações mútuas, sou incapaz de aprender. O pior, sabes, é que quando sinto que a certeza mora cá dentro fico cheia de palavras que podem cair como uma chuva de pedras. O amor sem condição é impossível. Estar certa, completamente ciente de que o caminho que percorro é o justo, longe das sombras e outras maldades. Posso arriscar e dizer que, terás de me perdoar, mas desta vez ganho eu. E é assim. Tenho razão. Queres que explique melhor? As palavras não são a verdade inteira da justiça do que sinto. As palavras são poucas e estão gastas, terás de ouvir o silêncio do que te digo ou escrevo. Arrisca um pouco, deixa o pedestal de ser o que achas que tens de ser, desce à rua da amargura, mesmo aqui aos teus pés, e vê como o meu coração se desfaz nas pedras para que o possas pisar. Sim, a razão é essa, o meu coração derramado, incapaz de se moldar de novo, transformar-se num músculo dentro de um corpo. Eu já não tenho corpo e tu nem dás por isso. Olha para mim, não olhes para o que pensas que eu sou, mas para quem eu sou. Não o sabes fazer? Já o sei. Tanta coisa que é impossível saber. Deixa, não te rales, a vida é feita destas intrigas e pedaços de fracasso, sem drama, vamos aprendendo a ver conforme nos é possível. Por isto tudo, o meu coração já não pulsa, permanece aos teus pés e falas para um coração morto. Podes contar das tuas razões até ao Verão. Já cá não estou para te ouvir, mas estou certa. Certa da minha morte em ti. Quando tropeçares naquele líquido não será vermelho de paixão, apenas uma cor vil de fim. Não te surpreendas, mas tens permissão para chorar e dizer que não entendes. Quando foi que entendeste?

Não estás feliz? Olha, não sei, as coisas acontecem apenas e temos de as enfrentar. Como num tribunal, as acusações nos olhos de terceiros, a garganta seca, a culpa, a maldita culpa a castigar tudo e todos. Não há espaço para mais nada, não voltarei a ser criança nos teus braços. Cometo erros por falta de tranquilidade. O que é a tranquilidade? O nosso mundo está partido aos pedaços, tem brechas brutais que se agravam a cada hora de um relógio que não nos pertence. Estamos em colisão, em extinção, ameaçados. Relacionar-se-á com amor? Duvido. O amor morre de repente. Quando damos por isso, foi-se. Partiu numa direcção estranha e desconhecida. O nosso amor é agora o amor de outros, cumpre a sua função, deixou um vazio, mas preenche as necessidades de quem vive, neste minuto, o momento da excitação de descobrir outro, qualquer outro que seja. Por esta altura, julgaras que me desfaço nas palavras, que as atiro contra a folha do computador apenas num acaso, a ver se formulo um pensamento, um desvario. Estou sossegada, sabes, porque os dedos correm no teclado sem grande pressa e sinto-me despegada de tudo, sobretudo das palavras que te deixo hoje, na véspera das férias de verão. Tu visitas a tua mãe e eu, a pretexto de um trabalho que não terminará nunca, deixei-me estar aqui. Não faz calor. Há um silêncio confortável. Vejo os candeeiros desligados, as mesas de trabalho, os estiradores, as maquetas tridimensionais, edifícios por construir. Os arquitectos têm uma expressão - fazer cidade - e é fácil de entender que o ambicionam, embora seja altamente duvidável que o consigam concretizar. Seja como for, sou apenas uma desenhadora. Muito boa, dizem. Pouco importa. Gosto das linhas e do desenho preciso, dos cálculos matemáticos que colocam todas as questões numa qualquer ordem. Preciso disso, dou-me mal no caos. Há um abismo que me atemoriza primeiro. Depois chego, como hoje, à indiferença. É o pior dos sentimentos porque não leva a qualquer espécie de emoção, de tristeza ou de ruptura. Ficas como que dormente depois de teres tomado uma decisão. Basta comunicá-la e está tudo resolvido. Não verei as estrelas contigo amanhã à noite. Perdoa-me. O mundo não me ama e eu tão pouco te amo. O amor fugiu, escapou. Estou a repetir a mesma ideia, já sei. Perdoa-me, mas a coerência nunca foi o meu forte. Sabes que sonho em viajar no espaço? Não numa nave, não, nada disso, nada de tão sofisticado. Sonho que voo baixinho e sinto a relva com as pontas dos dedos, que posso subir e ver as janelas dos prédios mais altos, a vida das pessoas, que atravesso nuvens e me junto ao ballet acertado do bando de aves migratórias, sabedoras de coisas sobre o tempo e o vento. Não me importava de ficar assim, uma ave humana perdida num bando. Tem algo de poético ou de ridículo, ainda não decidi. Há muitas coisas sobre as quais ainda não decidi. Outras, porém, tenho-as com a certeza esmagadora de uma inevitabilidade biológica. Acredito que Jesus sabia estas coisas. As fantasias à sua volta são apenas isso: fantasias. Jesus sabia sobre o amor e a sua fuga e quis avisar-nos. Ouvimos? Não. Estamos sempre muito ocupados e há dois mil e tal anos já estávamos a cumprir com uma qualquer azáfama. Não queres saber de Jesus. Compreendo. Lembrei-me de como será o natal sem ti. A coisa do menino Jesus nas palhinhas e tal. Desculpa. Sim, é um pouco lamechas, mas o que queres? Podemos conversar sobre o logótipo da cristandade, inventado no século IV? A cruz, o melhor logótipo do mundo. Não? Certo. Estou a desconversar. Posso pegar na mala, ligar o alarme, sair para a avenida deserta, ver as janelas iluminadas e imaginar as famílias. Sabes o que eu queria? Queria um filho, já to disse e não me valeu de grande coisa. As tuas prioridades, as minhas prioridades, o dinheiro, a condição de vida, a saúde, o aquecimento global, a paz no mundo, tudo o que teima em falhar. Se pensares bem é sempre a mesma história: começamos por querer o mesmo e depois seguimos trilhos distintos, como índios especialistas em pegadas e coisas assim, cada um a desvendar o seu mistério, o respectivo segredo. Não me digas nada. Quando chegares a casa não terás nada meu, nem uma peça de roupa, um livro, um quadro. Deixei-te o gato, porque... enfim, é uma companhia e vais precisar por seres tu o abandonado. Essa maldade – “ela levou-me o gato” – não a quero em cima da minha cabeça. Desculpa. Precisas de comprar areia e comprimidos para desparasitar a criatura. Está na altura. O gato deve ter percebido tudo porque escapou às minhas festas com um certo desdém. Não faz mal. Eu até sou alérgica ao pêlo, era um esforço por amor. Seja lá isso o que for. Sabes o que é? Eu não. Já soube. Agora não. Deixo-me estar quieta no meu canto e não digo nada, o meu corpo não se movimenta na direcção certa, pouco me importa que não me apreciem ou que o façam com excesso. Estou a salvo. Sobrevivi a tudo e estou imune. Mesmo a gripe A não me pode apanhar. É como a euforia do Verão ou o espírito de natal. Dentro do meu carro, com as coisas amontoadas na bagageira, sinto-me livre de obrigações. Se tivesse um filho, repara, seria diferente. Não tenho, ou melhor, não temos, por isso desejo-te um resto de ano extraordinário. Eu irei encontrar um bando para voar baixinho. E, mesmo que fique sozinha, posso sempre encarar o vazio do meu corpo e culpar-me inteiramente. Pouco ou nada sobrará para ti. Não estás feliz?

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1. aleggro Quando o teu corpo, como uma sonata, se mexeu, contei os quatro movimentos e pensei em Mahler. Não perguntes porquê. Talvez por causa de Alma e de Freud. Não sabes a história? Pouco importa. Ou, na verdade, importa. Mahler amava a mulher e era traído. Freud conversava com o compositor e fumava. À época, Mahler escrevia a sinfonia a que nunca quis chamar nona, baptizando assim a obra de poema sinfónico. Parece existir uma superstição qualquer, mas sobre isso nada sei. Não, espera, sei: há uma série de mortes de músicos depois da composição de nonas sinfonias. Parece estranho, porque Mahler deixou a décima por terminar, embora tenha a Canção da Terra que, para todos os efeitos, se apresenta com a estrutura de uma sinfonia. O compositor a brincar com o destino? Sim. Pode ser. A imaginação aliada ao receio constrói o que quer, até o inesperado. Tu gostas de Mahler? Sofria. Por ter qualquer coisa no coração, uma corda partida. A mulher. Uma mulher é uma coisa, "a" mulher é outra. Foi em tudo isto que pensei quando te vi mexer no assento e na forma como te podia desenhar: virado para a frente, a mão no pacote de cigarros, o olhar para o lado como quem prepara a frase e, depois, o corpo que se encostou à cadeira. Eu tinha vinte e dois anos. Tinha estado entretida. Havia uma música de Natal que ocupava a minha cabeça, mas como tenho sempre uma música na cabeça, não era uma surpresa. O que me surpreendeu foi o movimento do teu corpo, essa melodia escondida, depois a voz, o vocabulário e, mais tarde, os textos como escalas, andamentos dentro dos movimentos. Um rendilhar de palavras que compõem, ainda agora, toda a ideia que consegues dividir pela matemática. Espera. Oiçamos o rondó. Movimentos lentos ficam-te bem, já te disse? E eu preciso da lentidão para pensar, para desenhar melhor, apesar de viver numa vertigem que ninguém parece conter ou conseguir parar. Acredito que a culpa seja minha. Nunca pedi para ser parada. Se tudo não fosse impresso ao som da música talvez o meu corpo quisesse esse sossego que vejo nos outros, uma certa calma, um estar sem fazer. Imaginas o que seria um mundo sem música? A tristeza seria maior, um lago escuro que nos engoliria sem piedade. A música confere-nos a humanidade de nos conseguirmos transcender. A possibilidade existe. Pensa em Bach. Todas as suas composições têm, como interlocutor, o invisível, a fé, aquela ideia de que Deus está e, por isso, o mundo será menos exigente. Sim, menos exigente foi o que disse. Mahler acreditava num outro Deus. Ser judeu não é o mesmo que ser católico. À tua frente, ainda sem saber nada do cheiro, toque, ou palavras de ordem, respirei fundo. Talvez não te recordes, o prédio ao lado estava em obras e, no frio de Dezembro, o ruído das máquinas era insuportável. Observava o fumo do teu cigarro a correr na direcção da janela. Sentia o corpo a gelar. Foi então que perguntei Sabe quem eu sou? Era uma questão retórica. Fiquei presa nela. E quem sou? A rapariga-rapaz que não quer ser vista e que, quando desenha, ouve música dentro da cabeça e quando sobe e desce escadas ouve música e não sabe nada de música e não tem sequer um piano, mas consegue distinguir as Suites de Bach? Estava nessa fase obsessiva relativamente à música. Tinha convicções muito veementes sobre a importância de Haydn e a sobrevalorização de Mozart. Uma heresia, dirás. Eu era a rapariga à tua frente, a contabilizar os gestos do teu corpo, o fumo, a ouvir a tal música e o ruído das máquinas. E era ainda a tua amante. Sim, de forma espontânea. Tu não viste. Eu? Vi como o meu corpo se encaixaria no teu e podias fazer os quatro movimentos agarrado a mim. Senti a perplexidade do momento, uma certa vergonha. O corpo tem ordens suas, apenas suas, e a cabeça, bom, a cabeça não tem ordem e pode imaginar o que conseguir e eu estava ali, sem saber ao que ia, a fazer amor contigo. Conseguiste imaginar o meu corpo no teu? O tempo demora o que precisa, a não ser que seja Natal, um tempo que nos obrigamos a viver dentro de tradições inquestionáveis. Nesse ano, não o sabes, mas posso contar, liguei à minha mãe e, alegando qualquer coisa que ela soube de imediato ser mentira, escapei aos rituais, à família. Apesar da surpresa, como é habitual na minha mãe, perguntou E precisas de alguma coisa? E eu que não, nada. No dia seguinte começariam os saldos, disse. Tive esse ímpeto de humor idiota. Ela tentou rir. Alguém a chamou. Lembro-me de ter sentido um arrependimento inesperado só por ouvir o nome da minha mãe, mas não mudei de ideias. A casa estava gelada, andei o resto da noite abraçada a uma manta. Preparei um chá. Da janela vi os diferentes natais das pessoas do prédio da frente. Não me senti triste, apenas aliviada. O teu rosto tinha sido eliminado com a conversa da véspera. No presépio, instalado numa prateleira, um presépio de linhas modernas, ninguém me olhava. Era Natal e estava sozinha. 2. andante Um ano depois, o Natal pareceu-me outra coisa. O aeroporto de Paris, Charles de Gaulle, às seis e meia da tarde, estava cheio. Sentia-me uma liliputiana a ser atropelada por malas e tróleis, crianças e mulheres de burka. Um Pai Natal gigante com uma sineta rompia o ruído do mundo para nos lembrar: é dezembro, temos de ser melhores em dezembro. É dezembro, temos de ser melhores em dezembro. Paris? Gosto tanto de Paris. A melhor cidade quando se está apaixonado, a pior quando não se está. E depois o bilhete em cima da minha mesa e uma folha quadrada a dizer Chego amanhã, às 18h30, Charles de Gaulle. Fui. Obediente. Por total fascínio em antever o que sabia certo e, ao mesmo tempo, para entender o que te motivava a este encontro. Eu só vira tudo o que havia para ver de Godard e tinha uma colecção já vasta sobre escultura francesa, em especial Rodin e Camille Claudel. Coleccionava. Para saber, na presunção de que a cultura geral é o que nos dá riqueza, que o dinheiro não é nada. Não vale nada. Tu tens do dinheiro uma outra ideia. Nenhum número constitui um mistério para ti e, para alguém como eu, alguém que não sabe balançar na lógica dos números, só os entende na música, o dinheiro parecia-me excessivo e, por isso, disse Não precisamos desse restaurante. Vamos a um bistro. Dessa vez, o obediente foste tu. Eu não podia entrar num restaurante como esses que conheces. Tinha umas calças de ganga, duas camisas, uma t-shirt, um casaco de lã. Tudo metido num saco. Uns sapatos rasos. Não podia, percebes? E, por isso, brinquei com o pão e ouvi-te falar sobre os jardins na Índia. Contei-te a história do almirante inglês. A Índia ainda estava ocupada pela Grã-Bretanha. O almirante tinha uma frota pronta para o que fosse - que não seria nada - os indianos acatariam sem discutir. Era a convicção. O almirante apreciava os jantares prolongados em casa, mas, acima de tudo, o final da tarde, aquela luz que só existe na Índia, copo de gin na mão; o almirante a admirar o seu jardim. O almirante recebeu a visita de um professor português e, ao pôr do sol, olhando para o jardim disse É perfeito e, apesar disso, falta-lhe qualquer coisa. O português respondeu que lhe faltava liberdade, que a natureza não se pode domar com tanta perfeição. O almirante não gostou. Sorriste. A perfeição não te interessa. Quando nos deitámos, pela primeira vez nus, um perto do outro, a tua mão limitou-se a fazer a curva do meu corpo repetidamente, até que te engoli num beijo. Na manhã seguinte, ouvi-te ao telefone com a tua mulher. Escrevo a tua mulher, por teres sido casado com ela. É esse o rótulo justo que se pode dar à mulher que estava a ser enganada por uma miúda que te arrastava de museu em museu e não queria jóias ou malas de marca. Tu explicavas que ainda não tinhas tido tempo, que lhe comprarias qualquer coisa, que seria uma surpresa para a noite da consoada. E, a meio da tarde, eu - apenas para me ferir - decidi Aqui tens a prenda perfeita para ela. Sim, ela, a cobardia também se revê nas palavras. Podia ter dito o nome, sabia o nome, repetia o nome como uma lengalenga infantil, mas repara que pouco interessava para o caso, não havia música no nome da tua mulher e, para mais, tu concordaste e compraste o lenço com a assinatura de uma grande casa de alta costura, um lenço de seda devidamente embrulhado em papel seda cor de vinho tinto. O teu cartão era dourado. E o pagamento foi rápido. Ela estava, assim, despachada, e eu podia fingir que a esquecia enquanto andávamos pelas ruas. A tua mão na minha. Um frio bom, luzes que acendiam e apagavam. Em frente a uma loja elogiaste o vestido na montra, era bonito e eu iria precisar de um vestido e de uns sapatos. Empurraste a porta e foste, prontamente, atendido por um rapaz com um sorriso quase felino. Sentei-me. Parecia uma menina amuada. Sabia que precisava de um vestido. Afinal, era Mahler e a sala de concertos não era uma qualquer. O vestido caiu-me como uma gota, o tecido colado ao corpo como uma pele só minha e saí do provador para to mostrar. O empregado trouxe uns sapatos altos, demasiado altos e tu disseste, de imediato, que não, teriam de ser outros. O senhor retirou-se com pressa. Tu pediste Dá uma volta. O senhor chegou com outros sapatos e, com alguma delicadeza, apreciei a pele, a tira de sapato antigo, um salto meio alto, confortável. Tudo junto, se queres saber, não era eu, pouco importa. Eu descrevo-te: era de veludo o meu corpo no vestido de seda que escorria, os sapatos escondidos, apenas a ponta de pele trabalhada e ainda a tira a atravessar o peito do meu pé, uma sensação estrangeira. O vestido, se rodado, era mais curto atrás e as costas descobertas com um despudor que te fez sorrir. Aquela não era só uma mentira de mim e, perdoa-me, era ainda uma outra pronta para chorar ou rir a teu pedido. Já na rua, a tua mão regressou à minha, o saco a bater-me nas pernas. Antes da consoada, já tinha a minha prenda de Natal. Éramos nós ou não? Uma ideia de nós como uma sombra do possível. Alguém tocava acordeão na rua e quis parar. O teu telemóvel tocou. Fiquei ali, largada. Pouco sei do que Deus quer de mim e, por isso, deixei-me ficar a ver as mãos do homem no acordeão. Pensei na música e nela outra vez e, depois, para te desagradar mordi uma pele do polegar, arranquei-a e fiz sangue, uma ferida a gritar para que não te fosses. E tu regressaste. Quanto tempo terá passado? E quem conta o tempo e dentro do tempo o que será verdadeiramente importante? Eu não sabia e agora, se for preciso dizê-lo, tão-pouco sei. O tempo possui uma medida única e pode ser infinito ou rasgar o céu e deixar-nos cair, nanosegundos de suspensão, uma sensação de desconhecimento que não precisa de ser desagradável. Há muito de tentador na perdição. Assim, de regresso, tu querias voltar ao hotel, mas o meu castigo era uma exposição sobre os arquitectos da liberdade e debitei sobre Etienne Boulé como se tivesse escrito uma tese sobre os sonhos de um arquitecto do impossível. A curiosidade moveu-se no teu corpo. São os tais andamentos. A atenção é a vontade de fixar o melhor do mundo e há poucas pessoas assim. São os eleitos da beleza, vêem o que os outros não tentam sequer compreender e não se questionam. Deixei-te admirar uma planta gigante, um desenho feito à mão de um planetário, uma cúpula de vidro, uma base bizarra com se fosse uma previsão de nave espacial. Fiquei junto aos desenhos enormes dos jardins, desenhos que sempre me fascinaram. Queria voltar à história da Índia por ter mais que contar e não saber como. Hoje não sou uma pessoa calada, então limitava-me a falar se fosse crucial. Aprendi cedo o conforto do silêncio e não sabia se me querias pela cabeça, pelo corpo, pelos meus dedos num pau de carvão, rápidos, a desenhar ou se pela música que sei de cor. Não sabia, já te disse, quem era. E tu vieste ver a planta do jardim e murmuraste qualquer coisa sobre o que faltava e compreendi que não era preciso dizer mais nada. As coisas podem parecer perfeitas e, depois, sim, depois, acontece que o sonho se quebra por não ser um sonho numa bolha ao abrigo do poder de Deus. Tu dirás natureza. Eu não te vou contradizer. Nessa noite, de vestido e sapatos, com frio e sem saber como os meus seios se viam à transparência, eu, a miúda sem peito que não usa soutiens, estava espantada com a sala de concerto, com a elegância do teu fato e a música... Bom, sobre a música não preciso de te recordar por nos termos comovido ao mesmo tempo. No final, tu disseste que, não sendo um ortodoxo do seu tempo, começavas a entender Mahler. Eu só queria entender-nos. O meu coração era uma partitura por encher e estava à espera. Dirás que a metáfora é fraca e tens razão. O amor é estranho e nem podemos esperar pela sua coerência. Quando voltámos, no avião, tu pediste Canta-me uma canção. Escolhi body and soul. Não te expliquei porquê. As explicações são actos de um egoísmo e presunção e maldade e... haverá mais para dizer, não me ocorre, perdoa-me, uma explicação é levantar a cortina e fica tudo exposto ou apenas uma parte e nós só éramos uma parte, mesmo no ar, já não estávamos um no outro. A tua mão soltou-se da minha. O porquê importa pouco; o avião aterrou. O meu adeus foi sussurrado e os teus dedos procuravam um cigarro e eu tentei sorrir e pedi que fosses, precisava de levantar dinheiro. E tu a querer saber quanto dinheiro queria e eu a virar as costas, as lágrimas de dor ou incompreensão. Nunca seria uma relação, uma potencial família. Consegui antever todas as prendas que trarias das viagens onde seríamos outros e onde, por razões insuspeitas, te deixarias arrastar para locais que não faziam parte do teu território, como o bar de jazz ranhoso, o bistro barato, a loja de crepes na rua. Para falares a minha linguagem seria preciso descer de uma qualquer nuvem já que, apesar dos sapatos que ainda tenho, do vestido preto de costas abertas, guardado num cabide especial, nunca seria a outra da tua vida. E o nunca ficou entendido com a recusa do teu dinheiro. Hoje posso dizer que apanhei o autocarro. Na minha mala de nómada levava o vestido, os sapatos e uma história. No saco levava o teu coração, porém não o entendi e tu não mo explicaste. As tuas frases enganam, sabes? Não dizes muito sobre ti e eu só andava a caçar borboletas em extinção, certa da sua morte. Hoje sei entender o que me podias ter dito numa frase apenas. Uma frase pequena Amanhã... e eu diria que sim com um beijo que ninguém veria e o mundo manteria a sua rotação. A tua boca manteve-se cerrada e ela à tua espera. Voltei as costas e assim passaram-se anos. Nessa noite, ajudei a minha mãe a fazer a ceia de Natal e não pensei em ti. 3. minueto A vida não é o ideal imaginado. É como aqueles bonecos animados que correm e deixam rasto, pode ser que escapem ao dinamite, à rocha que ameaça cair numa avalanche. Nunca se sabe exactamente nada e tudo pode mudar em segundos. Foi o que aconteceu. O trabalho começou ser demasiado exigente. Para quê um curso de escultura, perguntara a família. A minha irmã riu-se, estridente, e queixou-se da enorme falta de modéstia de algumas pessoas, mudando de assunto rapidamente. Se eu queria ser uma artista desgraçada, pois que o fosse mas sem maçar o resto da gente trabalhadora, verdadeiramente contribuinte. Foi com surpresa que todos, incluindo eu, receberam a notícia da bolsa de estudos para ir um ano para fora. O meu sorriso, diria que vingativo - ou dirias tu se o tivesses visto - não serviu de muito, porém recebi os abraços e felicitações da ordem. O meu pai disse Olha, vê lá agora não estragas tudo. Não me admirei, nunca me admiro com o meu pai. Nunca viu uma exposição na vida, nunca compreendeu o que era essa coisa de ir para Belas Artes e chegar a casa fisicamente tão cansada que não sabia fazer mais que dormir ou ouvir música. As queixas sobre mim significavam apenas desilusão. Quando saí de casa, pouco antes de te conhecer, estava a acabar o curso e decidira dividir uma caixa de fósforos com uma amiga. Sentia um sufoco que em casa dos meus pais podia ser descrito como algo similar ao sufoco das pessoas que sofrem de asma. A bolsa de estudos chegou. Meti numa mochila e num saco os discos e os blocos de desenho, a roupa mais quente e apanhei um avião que, pela primeira vez na minha vida, atravessou o atlântico escuro sem eu entender que tal enormidade é possível. Tive medo quando o aparelho começou a deslizar, quando levantou, assustei-me com uma vaga turbulência e quase chorei quando aterrou. Para salvação tinha apenas uns headphones e ouvi Bach por Glenn Gould vezes sem fim, no modo repeat, para me sossegar. Uma vez no aeroporto, a confusão espantou-me. Eram quatro da tarde. Chegar a Newark não era em nada igual ao que é hoje. Ninguém me pediu para tirar os sapatos, não vi cães a cheirar malas, polícias com um ar mais severo. Dizem que depois do 11/9 tudo mudou. É verdade. Não fomos os dois ver o ground zero mas levei a minha filha num carrinho de criança, ela a brincar com um elefante de peluche, enquanto eu chorava. Um buraco é um lugar de morte e emoção. Isso eu já sabia, qualquer escultor sabe. A matéria, a pedra, a lama, o ferro, a areia, tudo tem um significado e o mesmo muda conforme a disposição. Um escultor joga com a matéria para provocar emoções. O ground zero não é arte, mas, como diria Vergílio Ferreira, um contra-monumento. O escritor usou a expressão para definir o campo de concentração de Dachau. Contra-monumento. Nova Iorque é uma cidade que passou a ter essa cicatriz. A minha filha, chama-se Mia, não deu por nada e, nessa noite, via-a dormir ao som dos dedos mágicos de Keith Jarrett e atirei-me ao estirador com uma vontade e raiva quase desconhecidas. Isto foi três anos depois de ter chegado aos Estados Unidos. A fundação que me atribuíra a bolsa não queria que me fosse embora. A directora disse É muito ambicioso o que tenciona fazer. Acredito em si. No seu futuro. Não me lembro de ter respondido. Estava convencida de que era um projecto demasiado grande para alguém como eu: uma mistura da minha visão do mundo e de todas as influências clássicas, nada muito moderno ou vanguardista. Quando todos os bolseiros mostravam peças e instalações abstractas, eu optara por fazer de uma escultura um jardim por onde as pessoas caminhassem, tocassem e ouvissem música. Era - ainda é - uma peça com trinta metros, se os contar de forma linear, com três de largura. Era o labirinto da Alice no País das Maravilhas e era a minha cabeça em simultâneo. Pretendia, estávamos no fim da década de 90 do século XX, criar algo que fosse mais próximo das pessoas e exigisse interacção. A directora tinha o meu portfólio e sabia que todo o meu trabalho escapava ao habitual. Disse As ideias têm todas música. Não sei fazer nada sem música. Não me perguntes, num ímpeto dei-lhe o meu velho discman - ainda te lembras dessas coisas? - e pedi-lhe para ouvir. Não era clássico ou jazz, era fado. Amália. Vi-lhe lágrimas nos olhos e sorri. Apesar de não entender português, a directora comoveu-se. Contei-lhe que Amália tinha vindo para Nova Iorque com o intuito de se suicidar e que os filmes de Fred Astaire a salvaram. Pareceu compreender. Comecei a trabalhar num armazém da fundação, a música nos ouvidos e – posso garantir - sem pensar em ti. Meditava apenas nos materiais: a substância, o volume, a espessura, o tempo de secagem. O meu jardim de metal e pedra, de gesso e areia. Misturava, experimentava, deitava fora, morria de frustração, estava exausta ao fim de pouco tempo e deixei de comer. O jardim era uma obsessão. A minha mãe escreveu a dizer que vinha fazer uma visita e eu vomitei. A maioria das pessoas não entenderá, mas fazer o quê? Não te vou mentir. A minha mãe ficou uma semana, viu o armazém, a que chamou atelier por uma qualquer razão que me escapou, perdeu-se em Chinatown e comprou tudo o que lhe pareceu barato. Acompanhei-a, tentando contar a história disto ou daquilo, levando-a aos museus mais importantes e, claro, sendo arrastada para um musical que ainda hoje está na moda. A Broadway muda, mas não muda tanto assim. 4. rondó Sem ti, vendo a minha posição na fundação ganhar força, coleccionadores especiais a visitarem o espaço para verem o meu trabalho, tudo isso fez com que eu deixasse de ser a miúda de Paris. Posso dizer que usei o teu vestido e calcei os sapatos na apresentação conjunta e, sem temer comentários, outra vez na primeira exposição individual. Curiosamente, ou talvez não, a minha apresentação foi durante a festa de Natal da fundação. Um acontecimento anual de extrema importância, foi o que me garantiram durante semanas. Nesse dia, quando regressei a casa, bebi um copo de vinho e ouvi Mahler, a Canção da Terra, e despedi-me do compositor. A sua música perdeu-se em mim. Quando vendi a primeira peça, o tal jardim que está na entrada impotente de um grande edifício, decidi que vodka preto seria a minha bebida. Nessa noite, sem grande memória, a Mia foi concebida. O pai é um músico que andava então pelos bares de Nova Iorque e que hoje estará algures, pouco importa. Dirás que tem direito a saber que é pai. Tem, não o nego. Não me apeteceu procurá-lo quando descobri que estava grávida porque naquela noite, a noite em que descobri a vodka, o sexo foi uma sucessão de gestos mecânicos e não me lembro de nada. Na manhã seguinte, já perto das duas da tarde, um daqueles sábados glaciares na cidade, ele já não estava. E que importância tinha? Nenhuma. Tomei um comprimido para a dor de cabeça e comi cereais. Dois meses mais tarde descobri que estava grávida e não sabia nada daquele homem que fora apenas um corpo. O único homem que ocupava, por vezes, a minha mente eras tu. Os movimentos do teu corpo. Fiz uma escultura assim: um homem sentado a fumar. Levei meses. Queria que fosses tu e não queria. Não vieste atrás de mim, pois não? Depois de Paris, nesse dia do regresso, deixei uma mensagem a dizer que não voltaria à empresa. Que tinha um novo emprego. Não era verdade, nem era mentira. Todos os meus empregos foram fugas, formas de evitar o inevitável. Ser artista nunca foi um estatuto. Significava, e o meu pai não se cansava de mo lembrar, tal como a minha irmã, que não iria a lado algum. A bolsa de estudo salvou-me e, depois, a fundação e a directora. Havia algo nela que se aproximava de ti. Não gostava de perfeição. As pessoas – os bolseiros – tentavam todas as manobras para a seduzir, para ter uma relação com ela. Eu limitava-me ao aceno de cabeça, sempre com a música nos ouvidos. Quando queria falar tocava-me no ombro, eu carregava no stop e olhava-a fixamente. Ela fazia uma ou outra observação sobre o trabalho. Quando a bolsa estava próxima do fim, chamou-me ao gabinete Gostava que ficasse. Como coordenadora dos bolseiros. Não sou boa a lidar com outras pessoas. Aprende e tem um emprego e um espaço para continuar o seu trabalho. A fundação quer que fique. Não se discute com uma pessoa assim. Talvez por ter acenado positivamente não tenham existido, posteriormente, comentários sobre a minha gravidez. A Mia nasceu numa sexta-feira 13, a última do milénio. Dois dias depois estava de volta à fundação, a Mia numa cadeira mínima. Deixei de usar headphones. Comprei um aparelho pequeno e mantive o volume baixo para não a incomodar. A minha filha cresceu assim, no meio do pó e dos artistas, de música, com uma mãe que, de repente, percebeu que se sentia tão sozinha que a maternidade era uma bênção. Falava com ela constantemente. Sempre na nossa língua. É um património. Nesse ano, fui a Portugal passar o Natal, mostrar o rebento, enfrentar a tempestade que se resumia à pergunta sobre o putativo pai. A minha vontade, para ser completamente sincera, era dizer que o pai era uma garrafa de vodka. E mesmo quando insistiram comigo, pormenores de legalidade, o que colocara no registo do nascimento, que nome de que pai, eu encolhi os ombros. Quando a registei dei o teu nome e passaste a ser pai. Pareceu-me o mais natural e conseguia imaginar-te a chegar com um urso gigante para ver a menina. Tinha assim uns cenários que me moviam para dentro de um filme que nunca seria o nosso, mas pouco importava, estava consciente da ficção. Nunca me iludi. A Mia nunca perguntou pelo pai. Na escola existem muitos meninos e meninas sem pai ou sem mãe, ou com dois pais e duas mães. A América também é isso. Sem me dar conta ganhei o meu estatuto de artista com propostas de agentes e uma carreira internacional. Quando ia a Portugal já não era invisível. Disso não me podiam acusar. A minha mãe queixava-se da distância e de a única neta ser criada longe do seu colo. Nunca mais ouvi qualquer comentário da minha irmã e o meu pai remeteu-se a um silêncio que eu, interiormente, agradeci. Estava neste estado semi-adormecido, focada na Mia e nas coisas do trabalho, nas novas ideias e solicitações, ouvindo ópera de uma forma obsessiva, outra vez, quando tu me telefonaste. Era dezembro outra vez e eu estava em Lisboa. Nunca perguntei como tinhas conseguido o meu número. Almoçámos num dos meus restaurantes preferidos no Bairro Alto. Cheguei mais cedo. Queria ver-te, medir a forma do teu rosto, os movimentos do teu corpo, perceber se ainda te via no meu. E tu, com a calma de quem vem animado, um sorriso nos lábios e depois, como se fosse natural, nada ensaiado, sem qualquer pudor, depositaste um leve beijo nos meus lábios. Estávamos de novo em Paris. Senti uma tontura e depois sorri. Tu disseste Serás sempre uma das mulheres mais estranhas que conheci. E desatámos a rir. Ser estranha, eis um rótulo antigo, desde sempre e, no teu caso, era evidente que o podias dizer. Já não era uma miúda, não perdi o chão. Encomendámos qualquer coisa e conversámos como se não se tivessem passado anos. Vi a tua aliança, diferença da anterior, e perguntei E a Isabel? Como está? Penso que bem. Divorciámo-nos há cinco anos. E a aliança? Ah, tu sabes que eu posso casar muitas vezes. Pois podes. Suspirei. Para te chocar abri a pasta de fotografias no telemóvel e fiz-te um resumo da curta vida de Mia. Como é impossível ficar indiferente aos encantos da minha filha, foste tu quem suspirou. E o pai? Não faço ideia. Vens para ficar? Não. Regresso a Nova Iorque daqui a dois dias. Talvez te vá visitar. Papéis invertidos. A música que tocávamos era desconhecida. Eu não percebi o tom. Tu terás compreendido tudo, como te é habitual. Quando nos despedimos foi com um abraço e eu podia ficar ali, escondida no perfume do teu casaco, no cheiro que é só teu. Mas há limites e, em plena Praça Camões, foste para um lado e eu para outro. A razão do teu telefonema? Quando perguntei, riste e disseste a palavra saudade, com ternura. E é Natal, não sabes? Ao almoço fizeste perguntas sucessivas sobre a fundação e o meu trabalho e, já depois do abraço final, já virado na direcção oposta à minha, tu gritaste Olha que te vou fazer uma encomenda de trabalho enorme. Prepara-te. E eu só gosto de ferro. Ferro. Tu que amas a minha instalação, o meu jardim imperfeito, achaste que me podias atemorizar com um material. O ferro é meu amigo, ainda estive para dizer em voz alta, mas não o fiz. O trânsito estava caótico e a Mia à minha espera. De repente percebi que Lisboa já não era a minha cidade. Podemos amar uma cidade ao ponto de a sentirmos como alguém da família. Lisboa sempre foi o meu espaço, apesar disso, naquele momento, senti-me estrangeira. O que pretendia era afastar-me de ti. Anos volvidos estava lá tudo, novamente: a mesma imagem dos dois, o teu sorriso ao canto da boca, a forma como fumas, o teu vocabulário peculiar e a minha vontade de te dar a mão. Repreendi-me por isso e, como forma de castigo, bani-me da cidade. Da minha cidade. 5. finalle Passaram-se dois anos. A Europa já não era o meu chão. O meu pai morreu de forma súbita e a minha mãe, ao telefone, disse Não venhas. Vem no Natal. Vou precisar de ti no Natal. Obedeci. A Mia viu as fotografias do avô e perguntou numa miscelânea de americano com português se eu estava muito triste. Respondi que sim e que não. A morte faz parte da vida. Ela deu-me um abraço e ligou à melhor amiga. Mãe, a Hailey pode dormir cá hoje? A vida, como o planeta, gira. Nada interfere e tudo pode enlouquecer-nos. Comecei uma nova série de esculturas, uma encomenda e, quando reservava as passagens para Lisboa vi-te passar. Tu, em Spring Street. Um sobretudo cor de camelo, uma mulher pela mão, alguém que mirava as lojas com uma avidez ou com o que me pareceu avidez. Nova Iorque estava engalanada para as festas. Mia e eu tínhamos celebrado o Hanuka com uns amigos judeus. Disso saberás pouco. Despachei a mulher da agência de viagens, a mesma que continua a querer que eu faça tudo on-line por mais que lhe explique que sou uma info excluída. Segui os vossos passos, arrastando a minha filha que não entendia o meu objectivo e, já em Prince Street, chamei-te, alto, pelo nome. Vi o teu corpo, esses movimentos que me assaltam ainda, sempre que me deixo ir por aí, sorri e desatei a correr para o outro lado da rua, eu, alguém com pressa mais uma miúda com as unhas pintadas de azul. Tu, perplexo, parado e eu a gritar Feliz Natal! Não sei se respondeste. Pouco importa. Soube então que nunca mais te veria. Tal como deixei de ouvir Mahler, deixei-te morrer dentro de mim nesses dias antes do Natal. A Mia perguntou Quem é? E eu respondi, sorrindo É alguém que podia ser o teu pai. Ela sorriu e apertou-me a mão. E eu lembrei-me do tal Pai Natal, há muito tempo É dezembro, temos de ser melhores em dezembro. É dezembro, temos de ser melhores em dezembro...

Ia agora começar a escrever, palavras só para ti. Agora mesmo. Desisti por fraqueza, compreenderás mais tarde, estou certa. Corro como uma cega nas palavras e não tenho pressa de chegar seja onde for. Não há palavras para ti. Secaram-se na angústia de me explicar. Talvez seja melhor começar pelo início. O início é sempre um momento de verdade, algo louco, imprevisto. Como um fado que se canta sem se saber a letra, na comoção de reconhecer algo sem, ao mesmo tempo, conseguir dizer o poema e a sua intenção inteira. Todas as histórias de amor, como as cartas, já se sabe, têm uma dimensão ridícula, sobretudo quando terminam. O fim do amor é dispensável e não tem possibilidade de se alcançar no segundo exacto da sua morte. É uma ideia errada, repara, eu sei exactamente quando nós morremos. É uma imagem fixa que guardo. Não como uma fotografia, porque há o som e o estremecer do coração, coisas de mulher, dirás. Seja. O final nunca é só triste, é o princípio de uma luta e isso eu não sabia. O destino é ou não é o que se quer? Pouco importa. Passaram-se anos desde que o amor nos morreu. Se não foram anos, parecem-me e isso, o peso do tempo, a lentidão mortal de não conseguir sair daqui, torna-me prisioneira disto e, logo, de ti. Fiquei à espera de algo; de uma viragem do vento, um encontro mais feliz. O encanto que existia não o encontro agora. Seja onde for. Vejo-me a minguar, como diria a minha avó. Já te contei da minha avó? Talvez não. Não tivemos tempo para tudo, afinal. Era mestre na arte de soprar o vidro, tarefa nada habitual nas mulheres, um ofício de homens que herdou do marido. Ainda me lembro das coisas extraordinárias que saíam desse sopro controlado e sempre invejei a delicadeza do gesto. Não queres ouvir nada disto? Eu sei. Vamos voltar ao início, como prometi.

Trazias um livro de poemas contigo. Era uma ousadia quase feminina, se pensares. Sim, tinhas ainda um molho de jornais, incluindo os desportivos. Perguntei se era literatura de fim de semana e tu sorriste com o rosto todo. O amor começou ali. Colegas são as putas, dizias tu. Portanto, éramos parceiros de amarguras num open space sofisticado, empresa moderna com cestos de fruta para os funcionários. Isto basta como definição porque o que fazíamos, uma vida inteira, dia atrás de dia, pouco nos importava. Pelo menos era o que eu achava então. O emprego pagava os iogurtes e cumpria a função social à qual estamos obrigados. Só isso. Estava longe de suspeitar que querias mais e que tinhas em ti a ambição terrível de subir, subir até ao pódio do poder que pode desfazer as cores da realidade. O poder pode ser um vício, sei-o agora. Vi-te em conversas formais, repletas de indirectas e subserviência, conversas que te levaram ao clube dos homens, directo a assessor da administração e, depois a director geral. Foram anos, dirás, já sei que sim. Porquê invocar este passado e ser sincera? Porque no começo é importante dizer tudo e no fim é urgente.

Uma noite, sozinhos, experimentámos a alcatifa do gabinete do chefe. Olhei-te nos olhos, directamente para dentro de ti, invadindo o teu corpo sem pudor ou vergonha, disposta a tudo por estar ali, no momento, encaixada em ti, na perfeição; sentindo uma pertença que nunca antes me chegara. Não, não era a minha primeira vez, até nos rimos disso, uma mulher com quarenta anos, mesmo que recatada, tem aventuras ou, no mínimo, um passado erótico. Não inquiri sobre o teu por o conseguir adivinhar sem esforço. Era público. Podia contar, pelo menos, doze relacionamentos que nunca escondeste. Por estares ali, no mar azul da alcatifa, pensei que seria o início de uma relação. Ingenuidade? Não. Quando se ama crê-se. É mesmo um princípio fundamental, acreditar que somos no outro o tudo e o nada. Pode ser efémero e ilusório, já sei, pode até durar uma noite, mas é assim. Nada disto te importa agora. Eu sei. Vivo eu aqui nesta redoma de memórias inúteis apenas por vazio. Toda eu estou oca, o meu corpo mirra, as peles secas e o cabelo sem brilho. Uma velha. De certa forma. Ser velha antes de ser velha é um costume meu. Desde miúda. Porque me apaixono sempre até ao fim, com tudo o que tenho e, quando me vejo só, não me encontro, pareço um daqueles bonecos dos desenhos animados, há rastos de mim que ficam pelo caminho, como riscos de todas as cores. É uma pena, dizem-me. As mulheres devem, leio por aí, ser independentes e autónomas. Dá-me vontade de rir, sabes? Por ter sido educada para casar e ter filhos, para me organizar sempre em função de uma relação. Não ter alguém na nossa vida é uma diminuição do nosso papel no mundo. O amor agora quer-se rápido e eu entendi isso no dia seguinte, quando chegaste com o livro de poesia e os desportivos, sorriso aberto. Só faltou chamares-me colega. Puta senti-me de imediato. Era óbvio que a noite passada nunca acontecera. O que terás dito à tua mulher? Consigo imaginar com facilidade, sabes? Oiço-te mentir há anos, ao telefone, coisas de nada, mas que me espantam sempre porque tens o mesmo à vontade com a falsidade que pretendes ter com a verdade das coisas da tua vida. Repara bem, as coisas da tua vida. Sei quase todas. Fui coleccionando pedaços de ti e quando me entreguei a ti, naquela noite, sabia que a ruína tinha começado. Sou um prédio a desmoronar-se, estás a ouvir? Com o teu livro de poesia debaixo do braço, as tuas graças de sabedoria e cultura de algibeira, acabaste por me rodear das mentiras que eu já conhecia. Escolhi não pensar. Aceitei o teu sorriso aberto. Durante essa semana esperei um gesto. Um almoço, um pedido, uma graça. Nada saía de ti, estavas completamente vazio. E antes que o mesmo acontecesse comigo tomei a decisão de te humilhar, ali mesmo, no nosso local de trabalho, este que tanto estimas e onde pontificas com alguma importância. Acima de ti há apenas três homens. Decidi que se não me dissesses nada um destes seria contemplado com um dos meus sorrisos, um vestido decotado e todo o descaramento que nunca tive. À tua frente, claro, tudo isto se passaria à tua frente para que desses valor, para que te doesse. Repara que eu, ingénua, ainda acreditava na dor, na possibilidade de te provocar uma dor tão funda que todo o teu corpo se ressentiria. Ficarias com menos uns centímetros. Tudo isto se passava na minha cabeça enquanto te via, na sala de reuniões, toda em vidro, a dirigir uma reunião, ou então ao telemóvel sorrindo, falando com outra pessoa junto à mesa do café. Coisas destas. Para pôr fim ao meu teatrinho pessoal chegaste dengoso e a pergunta foi: “Queres tu almoçar com este fariseu?” Todos os cenários desfaleceram. Eram de manteiga, como um molho de cobertura de bolo. A maldade desapareceu. O meu decote no sítio certo, a tua perna contra a minha debaixo da mesa do restaurante. Tentei, juro-te, não fazer muitas perguntas. Fizeste então as despesas da conversa. Fiquei a saber que gostas de levar a tua filha ao parque. Que fazes compras todos os dias por acreditares que os produtos frescos são melhores do que os embalados. E ainda que a tua mulher estava a redecorar a casa, tendo mandado pintar o primeiro andar todo. Estranhei a menção a um andar, mas muito rápido, tu esclareceste que vives numa vivenda geminada perto do rio. Calei a minha perplexidade. Onde é que estava o homem que me olhara com um amor infinito na noite em que os anjos desceram sobre mim? A conversa era casual. Apenas uma forma de colocar tudo no sítio certo. Na verdade, o almoço era um recado: não estou disponível, não estragues isto, sê uma boa menina. Ora, ser uma boa menina está para lá das minhas capacidades e, sinceramente, não tenho idade. Fiquei a remoer nas tuas palavras, a ver se encontrava sub-textos a que me agarrar, pequenas deixas que algumas entoações podem transportar. Afastei as fantasias de forma pragmática. Um dos nossos superiores hierárquicos entrou no restaurante. Tu ficaste atrapalhado, cumprimentaste, eu calada. E já estavas a pedir a conta, arrependido, quem sabe. Uma vez na rua andámos os três quarteirões até ao emprego sem dizer nada. O amor traz muito lixo. O silêncio é eloquente. Já sei. Deixei-te subir no elevador sozinho, fiquei para trás a ver uma coisa na mala, a fingir que lia uma mensagem no telemóvel. Fiz-te um sinal com a mão e tu foste. Sim, senti-me uma puta outra vez. É um sentimento recorrente. Afinal, perguntarás, o que é esperava, o que é que queria de ti? Um pouco de amor? Soa até ridículo. Nunca pensei que divorciarias por mim, que abandonarias o teu castelo familiar, que abdicarias da paternidade. Ainda não percebi quando é que a paternidade passou a ser um porta-estandarte na vida dos homens. As mães são o que são. Os novos pais, para ser honesta, são muito aborrecidos. Não por fazerem ou por tentarem, mas por se compararem às mães. De repente, os homens não podem viver sem os filhos. Podem viver como tu vives, numa relação estragada, cheia de bolor e musgo, isso não importa, porque o amor dos filhos é superior. Desde quando? E onde estão as loucuras que se fazem por amor? Atormentada por estas interrogações mesquinhas, sentindo-me mal e má, em simultâneo, voltei ao dia-a-dia. Tu passavas e dizias bom-dia, o tal sorriso aberto. Duas semanas depois de termos feito amor, uma semana depois de termos almoçado e teres anunciado que és um homem casado e homens casados não dormem em camas alheias, apenas em tapetes de gabinetes obscuros, mas o recato da casa é indispensável, setenta e duas horas depois de ter pensando e repensado a minha vida, decidi matar-te. Por isso te escrevo, compreendes. Porque matar-te apenas não me chega, tenho de contar toda a história para que faça sentido, para que seja conhecida e falada. Passarás a ser uma lenda da mediocridade masculina. Não achas graça? Claro que não, tu até lês poesia e levas a tua filha ao parque, tendo o cuidado de accionar o modo silencioso do teu telemóvel. Nada perturba o pai e a filha, olhem que bonito. Sim, a ironia talvez não seja o meu forte. Já não peço desculpa, apesar de tudo. Cresci um pouco com tudo isto. Deve ser a idade ou a ilusão do tempo, as camadas de horas em que pensei em ti, concentrada em ti, moldando tudo ao teu nome e ao teu corpo para descobrir que, afinal, a tua entrega fora apenas um modo geral de actuar, nada de novo, automático e masculino, indolor. Podes ler poesia. Não sabes nada das mulheres. Matar-te é bastante mais fácil do que imaginas. A morte começa na colecção das tuas mentiras, das atrocidades que, diariamente, cometes sem qualquer pudor. Uma palavra aqui, um email ali. E eu, qual espião profissional, recolho tudo. O teu forte são as contas, não é? Tens a responsabilidade do relatório e contas, do balancete. Tabelas e quadros são a tua especialidade. Não os entendia, agora consigo desvendar-lhes todos os segredos. E aqui começa a tua morte. Sei de onde saiu o dinheiro do projecto brasileiro. Sei para onde foi. Almocei com o fornecedor a quem pedes luvas e fiz uma lista de mais oito que, certamente, perante um decote em condições tornarão a minha missão tão mais simples. Uma mulher faz o que pode, compreendes? Posso ser apenas uma funcionária, sim, um número na folha de salários, mas nunca me faltaram os neurónios; de certa forma a ideia de vingança aguça os neurónios e estes fervilham de ideias. Já te disse o que vou fazer? Ah, espero mais um pouco. Deixa-me contar a história da tua mulher, porque tem graça, vá lá. Sim, a tua mulherzinha que redecorou o castelo, paredes cor de alfazema, cortinados com forro duplo para evitar os raios solares, a tua mulherzinha com os cabelos pintados de loiro, a catrapiscar o rapaz da recepção, com a mala Louis Vuitton, de imitação, comprada na feira, claro, a dizer que é a tua mulher e que vem fazer uma surpresa. Pois eu, muito cândida, apresento-me, sou tua colega, sei exactamente onde estás, porque não me acompanha. A tua mulherzinha no elevador, ajeitando o cabelo, verificando se o mostrador do relógio está no sítio certo, centrado no pulso vagamente papudo, a espreitar os meus sapatos, a minha cor de unhas nos pés pequenos. Sim, os meus pés pequenos que te fazem sofrer. Pobrezinho. Levo a tua mulher pelo open space como quem leva o Óscar para casa, ela é a minha bonequinha de estimação e, quando chego à porta do teu gabinete, com o meu melhor sorriso, abro sem bater e vejo-te branco a tentar fazer desaparecer o ecrã do computador. Sim, eu vi, não te preocupes, já recolhi o histórico do teu computador, sei de todos os teus sites pornográficos. Confesso que a minha preferência vai para a encomenda de uma pérola cinematográfica com o título: bocas gulosas. Muito educativo. Poético. A tua mulherzinha agradece-me e eu saio disparada para o meu sítio. Tu morreste ali, um bocadinho, mas não o suficiente. Por isso te digo que será pior. Juntei as papeladas que consegui, todos os teus esquemas, as pastas que tens num servidor supostamente secreto, as contas e as saídas de dinheiro (fiz-me passar por tua mulher e falei com o teu gerente de conta, não sabes? Pois é, a tua password para tudo é o nome da tua filha. Se ela soubesse. Que não saberá nada, tem agora cinco anos, não se recordará de ti, vais ver. O tempo faz milagres). Agora que tenho tudo isto em meu poder só me resta uma solução. Expor-te que é o equivalente a matar-te e depois, desculpa o mau jeito, ficar com o teu lugar. Estás preparado? Claro que não, eu compreendo. Tens o teu livro de poesia e os desportivos debaixo do braço, é sexta-feira, tens pressa de sair. Eu subirei dois pisos, até à administração e não será a tua cabeça numa bandeja, qual Salomé, nada disso, mas será um momento delicioso de poder e só isso me bastará para terminar este amor. Sim, o amor quando chega ao desprezo já não vale, pode ser amachucado, rasgado e até esquecido. Assim, amor, esquece-me, esquece-me hoje que eu já não sei quem és.

...

O meu nome é Joey Luft. Dizem-me que Luft, em alemão, quer dizer ar. Pode ser que sim. Nunca me preocupei com isso. O mundo, felizmente, nunca se preocupou em saber de mim. Já não se pode dizer o mesmo de uma das minhas irmãs. São escolhas que se fazem. A minha irmã chama-se Lorna Luft. A outra tem um apelido mais sonante. Para o mundo o nome da minha segunda irmã, em estrelas, com as luzes da ribalta, em posters e capas de disco é Lizza Minnelli. Sim, isto quer então dizer que sou filho de Judy Garland, a rapariga dos sapatos vermelhos na estrada amarela à procura de Oz, longe do Kansas, longe de casa. O filme, glorificado até hoje, é uma boa metáfora para a vida da minha mãe que morreu, de overdose (para quê disfarçar e mentir?) aos quarenta e sete anos de idade. Eu era muito pequeno. As pessoas tinham a mania de me cantar When a star is born

They possess a gift or two

One of them is this

They have the power to make a wish come true

When you wish upon a star

Makes no difference who you are

Anything your heart desires will come to you

If your heart is in your dream

No request is too extreme

When you wish upon a star

As dreamers do

Fate is kind

She brings to those who love

The sweet fulfillment of their secret longing

Like a bolt out of the blue

Fate steps in and sees you through

When you wish upon a star

Your dreams come true

When you wish upon a star

Makes no difference who you are

Anything your heart desires will come to you

If your heart is in your dream

No request is too extreme

When you wish upon a star

As dreamers do

Fate is kind

She brings to those who love

The sweet fulfillment of their secret longing

Like a bolt out of the blue

Fate steps in and sees you through

When you wish upon a star

Your dreams come true E, durante muito tempo, eu deixei que a canção fizesse parte de mim, como faz parte do imaginário colectivo de tantas gerações já. Não queria lutar contra a minha mãe e, por outro lado, saber que a letra foi escrita por ela dava-me uma certa tranquilidade. Hoje não a posso ouvir, confesso. A minha irmã, a Lizza, canta-a. Ainda agora, imagine-se. Sobra-lhe um fio de voz ou, como diz com a graça de sempre, há um engenheiro de som com um programa que faz milagres e ninguém desafina. A coisa das fífias foi-se, morreu com a tecnologia. Lorna diz que qualquer um pode ser cantor. Não creio que seja verdade. Sempre existiu alguma competição entre as duas e eu faço por ignorar. Todos sabem quem é Lizza Minnelli, ninguém se lembra de uma pobre e fraca actriz chamada Lorna Luft, certo? E não se pode dizer que a minha irmã não se tenha esforçado. Vejam na wikipédia, tenho a certeza que foi ela mesma quem escreveu aquela página, apesar disso... vale a pena espreitar. Triste é a fotografia: loira, o cabelo curto e tão longe, tão longe da imagem da nossa mãe. A determinada altura, parecia que o sucesso estava numa parceria com Lizza. Não teve o resultado esperado. Sempre ouvi dizer que negócios e família são bons quando estão distantes. Lizza é mais parecida com a nossa mãe. Os traços do rosto, a voz, a forma de colocar as mãos, tudo nela mostra os genes de Judy Garland. Eu oiço-a. E vejo a vida dela com o mesmo receio com que li os livros e notícias sobre a minha mãe. O mundo é cruel. É a conclusão a que chego e, se os seus sonhos tivessem ficado no ar, como o meu apelido, talvez o destino fosse mais carinhoso. Era tudo o que ela queria? Sim. Isso e a fama. Nunca esquecer essa pequena palavra que, pensa-se, dá poder. A fama inebria, faz com que possamos sair da nossa pele, transfigura-nos. A minha mãe viveu presa numa vida de espectáculos, sempre com o olhar mais triste de todos, mesmo nos filmes, mesmo a fazer de qualquer coisa. Sim, porque a minha mãe fazia qualquer coisa. Interpretar estava-lhe no sangue, cantar era natural e tinha estudado dança. Estava, digamos, formatada para o mundo do espectáculo, como se fosse uma espécie de destino dramático antecipadamente infeliz. A minha mãe casou-se cinco vezes, divorciou-se quatro – Lorna e eu somos produto do terceiro casamento, acho eu, perco-me nas contas - e a brincadeira é dizer que não viveu tempo suficiente para entregar os papéis para uma quinta separação. Ela esperava tudo do amor. O amor não esperava nada dela. Os homens sugavam-lhe a alma. Os produtores, realizadores, guionistas, músicos, todos os que a seguiam, não a tratavam como uma diva. Nada disso. Estava gorda. Tinha de aprender a falar melhor. Tinha de ser assim ou assado, como fosse, mas nunca como era. Era urgente ser outra. E a minha mãe fabricou essa outra que dá pelo nome de Judy Garland e que hoje é um ícone. Ela chamava-se Frances Ethel Gumm. Do momento em que nasceu ao momento em que morreu, com fama e glória, muitos comprimidos e droga, Judy matou Frances que é o mesmo que dizer que matou a minha mãe. Teve ajudas, é certo. Recebeu o seu primeiro Óscar com a sua interpretação no filme “O Feiticeiro de Oz”, um Óscar infantil. E depois foi arrecadando prémios com uma velocidade extrema, sempre com o mesmo sorriso, a agradecer, o corpo inclinado para o lado direito, um sorriso a três quartos. Mas tudo começou antes, a praga estava lançada ela ainda não tinha nascido. Os meus avós eram malta do espectáculo, como se dizia então. Com dois anos e meio, a minha mãe juntou-se às minhas tias para subir ao palco e representar um espectáculo natalício. A minha avó atacava o piano no teatro do marido. As netas eram sensação. E depois a história conta o percurso normal: mudar de cidade, descobrir os mistérios do cinema, ainda os anos trinta do século XX estavam por chegar. Frances Ethel Gumm não era muito atraente e, inspirada por uma canção de Hoagy Carmichael, a minha mãe opta por se transformar em Judy. Há outras versões, já sei, mas prefiro esta e, sinceramente, com a minha idade, posso escolher a que me apetecer. A minha irmã disse a um jornalista qualquer que a nossa mãe escolheu o nome... Já não me recordo qual era a razão. Como dito, pouco importa. I could go on singing Fui coleccionando recortes de jornais e de revistas, tenho imensa tralha acumulada, tralha que não me devolve sequer o cheiro da minha mãe ou a memória dela sem ser infeliz, a cair, quase a cair, a chorar outra vez. Há uma certa tendência para a tragédia nas cantoras e actrizes como ela, disse-me um médico. Em especial quando começam muito novas. Pode ser que sim. Judy Garland assinou contrato com a Metro-Goldwyn-Mayer tinha 13 anos. As belezas da época autora eram Ava Gardner, uma das senhoras Sinatra, Lana Turner, Elisabeth Taylor. Com tanta perfeição, a minha mãe sentia-se uma espécie de patinho feio que nunca se tornaria um cisne e, se formos sinceros, não era uma mulher bonita, era outra coisa, tinha um encanto especial. Gosto de a ouvir cantar You made me love you. A primeira vez que cantou foi numa festa de aniversário de Clark Gable e, mais tarde, num filme olhando para a fotografia dele. Tenho também imensas fotografias com Rooney, mas se formos alinhar todos os actores com quem contracenou nunca mais saímos daqui. Os estúdios, as exigências, os produtores, os filmes, tudo isso lhe roubou a infância, a adolescência e até a idade adulta. Nunca seria ninguém fora daquilo e já não aguentava a pressão, os prémios, os fotógrafos, os elogios da crítica. Tudo junto não lhe davam segurança ou alegria, levavam-na ao oposto, até a tentativas de suicídio, internamentos em instituições especializadas em depressões. De algum modo, a minha mãe e a sua história são o clássico exemplo do que era a vida em Hollywood. Do que ainda é a vida em Hollywood. O mais curioso? No dia em que nasci, a minha mãe estava nomeada para o Óscar de melhor actriz na 27ª edição dos Óscares. Grace Kelly levou a estatueta para casa e depois, presumo, para o Mónaco. A minha mãe, no hospital, dizem que sorriu e, mais tarde, recebeu um telegrama de Groucho Marx dizendo que o facto de ter perdido era “o maior roubo desde Brinks”. Hoje ninguém percebe a piada e eu estou velho e não me apetece contá-la. Estou como a minha mãe esteve em tempos, tenho uma sentença de morte dada pelos médicos, o que alivia de uma certa pressão face à vida, tenho de admitir. Judy Garland, a minha mãe, lutou contra a doença, ainda cantou e desiludiu e encantou novamente. Depois morreu de uma overdose que um médico, porventura um fã, terá classificado como “acidental”. Foram mais de vinte mil pessoas ao funeral. Eu não conseguia respirar. Se há mais histórias? Sim, muitas histórias e muitas outras que a minha irmã Lorna conta no seu livro, incluindo a parte em que diz que a nossa mãe pediu o divórcio alegando que o meu pai era violento. Sobre isso não quero falar... Aliás, se não se importam, desliguem lá as máquinas. Por hoje terminamos. Amanhã podemos gravar outra vez.

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Dedicatória: para a minha mãe

Sempre pintei ao som do fado. Não por causa da música, mas pelos poemas, palavras que se casam com uma sabedoria desconhecida. Prefiro os homens no fado; gosto de tentar igualar a fraqueza da minha voz à voz deles. Os homens que cantam fado em Portugal encenam-se menos do que as mulheres, preservam uma certa ingenuidade. As mulheres seguem as pisadas de Amália Rodrigues e, afinal, é por ela que aqui estou. Quarto 113 do Ritz de Lisboa. Subi do deserto melancólico e quase vazio do interior alentejano para imitar a grande diva. Pareceu-me o mais acertado. Vi aquele documentário sobre ela, bem feito, ela já de cabelo aloirado, com rugas, as mãos dançando com unhas pintadas de vermelho... é impossível de pintar, a dança. Seja ela qual for, é secreta e íntima, não se reproduz. Vi, ao longo da vida, muitas fotografias de bailarinos. Não mostram a essência do que se faz. Ficamos presos na ideia dos músculos, daquele corpo igual ao nosso, mas que é que é diferente. Da delicadeza de movimentos. Ir mais longe. Fazer o impossível. Nunca pintei a dança. Pinto mulheres e homens, pinto a terra e a desolação. Os críticos fazem-me elogios. Não me comovem. Não consigo encher-me de mim. Amália, agitando as mãos, diz, no tal documentário, que nunca foi feliz, apesar de tudo o que Deus lhe deu. A mim, Deus deu-me a minha mãe, ela que trabalhou e trabalha para nos obrigar a fazer o nosso caminho.

Trabalha, Maria, trabalha, que vais lá chegar. Cada um tem o seu caminho, terás de construir o teu.

Quando lhe disse que queria seguir Artes, a minha mãe nem pestanejou, arrastou todas as suas posses até Lisboa. Eu tinha quinze anos. Fiquei num quarto alugado para os lados de Campo de Ourique, casa de uma senhora viúva, americana, uma designer de jóias chamada Nora. Aprendi a amar o fado com Nora e descobri Lisboa pelas mãos de uma estrangeira. Talvez por isso ela me levasse aos sítios aonde os lisboetas não vão e eu a seguisse todos os fins-de-semana. Conheço todos os miradouros da cidade. Sei histórias de santos e de mártires que ninguém ensina na escola. Uma tarde, rumámos até junto à Pascoal de Melo para espreitar a fachada mais estreita da Europa na rua Aquiles Monteverde, número 16. Ficámos ali apenas a ver por uns momentos. Sentámo-nos depois no jardim e Nora reparou nos miúdos e nas brincadeiras. Foi um bom dia.

Durante a semana estava na escola. Desenhava, moldava, experimentava. Não estava numa fase de rebelião, como tantos colegas meus. Não pintei o cabelo de roxo, não me interessava a moda dos punks ou dos outros. As minhas mãos eram o reflexo exacto do que fazia. Todas as noites as limpava – e continuo com esse ritual diário – com cuidado; todos os vestígios de tinta que se imprimem no meu corpo desaparecem por umas horas e depois voltam a instalar-se. A tinta sempre foi a minha moda.

A minha mãe telefonava pelas sete da tarde. Fazíamos o relato completo das actividades. Ouvia-lhe o riso miudinho, a dizer que sim, que era engraçado, que tinha razão sobre qualquer questão banal, e a contar a última asneira do Zé da Chica e outras familiaridades. Todos os meses, eu mandava para casa uma carta com desenhos de Lisboa, de Nora, do Jardim da Parada, da vista do Tejo perto da escola. Ainda hoje, a minha mãe os guarda.

Depois entrei em Belas Artes. Ganhei uma bolsa de estudo. Mantive-me, mesmo assim, com Nora que, por essa altura, já começava a dar sinais de instabilidade. Os papéis inverteram-se. Comecei a colocar “post-it” amarelos pela casa a identificar as coisas:

fogão, desligar limpar a ferida apanhar a roupa do estendal fazer a cama abrir o correio

Coisas assim. Nora seguia-me. Baralhava as coisas, datas e acontecimentos. Guardava, contudo, memórias extraordinárias da América e eu fui tomando notas à minha maneira: desenhava para ela.

Era assim?

Não, não, a rua tinha mais pessoas e ali havia uma loja de antiguidades. Preciosa. Era quase um segredo. Era necessário tocar à companhia para entrarmos. Nunca comprei nada, claro, não havia dinheiro para isso, mas adorava ir ver.

Que idade tinha, Nora?

Uns dezassete? Sim, talvez.

E desenhava jóias com essa idade?

Sim, mas isso foi tudo antes do Bill e do casamento.

Era muito nova.

Nunca somos demasiado novos, Maria. Não estamos é atentos como deveríamos estar. Demoramos a cá chegar.

Depois encostava-se ao cadeirão de orelhas e ficava a ouvir Carlos do Carmo e outros, o Fernando Farinha, o Marceneiro. Por vezes, na cozinha, cantarolava o “Fado do Estudante”, imitando o Vasco Santana, e dizia que era em minha honra. Ríamos do sotaque dela, da pose, da almofada que enfiava debaixo da camisola para se fazer barriguda como o Vasquinho amaldiçoado pela “da franja”.

Quando é cantado e a rigor Bem afinado e com fulgor É belo o Fado, ninguém há quem lhe resista É a canção mais popular, toda a emoção faz-nos vibrar Eis a razão de ser Doutor e ser Fadista

Ríamos com tanta facilidade que não chegámos a perceber que estávamos a viver os melhores momentos de todos. Aprendi tanto com ela, mas isso já disse, não é? Repetir as coisas é uma forma de viver, também isso me ficou de Nora e, decerto, com a minha mãe, sempre a dizer as mesmas coisas.

Tem cuidado contigo. Não te canses. Faz o teu melhor, não precisas de ser a melhor e nunca faças aos outros o que não queres que te façam a ti.

A minha mãe. Nora. A minha orientadora de tese, Inês, uma mulher que dobrava a pedra e o ferro com astúcia e violência, contra o mundo conformado, contra os preconceitos. Só existem mulheres fortes na minha vida, mulheres que tanto admiro, e que agora, quem sabe?, vou desiludir. Mas ainda é cedo. O quarto tem a luz de fim de dia de Lisboa. Ando descalça e os pés pisam a alcatifa mole quase amorosamente. Cheguei ontem. Fui à minha mãe, como se diz, fiquei por lá uns dias e regressei. A casa de Nora já não existe, claro; ela está nos Estados Unidos há uns anos.

Deve ter sido uma coisa assim: a filha telefonou uma vez e achou que Nora estava confusa; telefonou mais vezes e meteu-se num avião. Num americano nasalado, repetidamente invocando o Senhor num “Oh my God”, a filha rica levou a mãe para casa. Nora estava com um princípio de Alzheimer. Eu sabia e não sabia. Fiquei órfã de Nora e das suas histórias. Nesse ano, desenhei tudo o que consegui lembrar-me da vida daquele mulher pequena que me acolheu. Aluguei outro quarto e enfiei tudo o que tinha debaixo da cama alta de ferro preto. Não era uma cama como esta, nada disso; rangia com vida própria. Acabei a escola e uns coleccionadores estimados no meio competitivo das artes compraram as peças que exibi no fim do curso. Fiquei, pareceu-me então, rica. Mandei dinheiro à minha mãe que, diligente, voltou a colocar a mesma quantia na minha conta bancária.

Ó mãe, mas isso era preciso?

É dinheiro do teu trabalho, Maria. Nem penses. Eu estou bem.

Aluguei uma casa e deixei a cama que rangia. Para não correr riscos, coloquei o colchão no chão e, com um certo desprezo, decidi que não precisava de móveis. Ainda que me lembro da cara da minha mãe quando me visitou a primeira vez.

Então, mas tu vives assim? Sem cama, sem cortinas, sem tapetes...

Não preciso de nada disso, basta-me o estirador e boa luz, mãe.

Se tu o dizes.

Não me lembro de uma zanga entre nós. A minha mãe deixa as coisas fluírem, tem essa sabedoria, mesmo agora que já não é nova. Demonstra um certo orgulho no meu percurso, faz recortes de jornais desde que comecei a expor e, quando fui a Madrid pela primeira vez, decidi levá-la comigo: ela com tanto medo de multidões, ela sem perceber o que os espanhóis diziam; parecia um papel de parede, uma mulher na meia-idade a sorrir por causa da filha. Nunca senti tanta ternura por ela como nesse momento. Portugal era um dos países convidados de um certame importante. O escritor alentejano, José Luís Peixoto, um homem bonito ornamentado de tatuagens e piercings, numa noite de jantar e alguma formalidade, disse, maravilhosamente, o poema “Cinco à Mesa”. A minha mãe abandonou a sala a chorar.

Foi a única vez que a vi chorar.

Agora, a imagem dela na soleira da porta — eu a entrar no carro com sacos de bolo podre feito com aguardente e mel, com pão fresco e queijo — está presa a tudo. Não sei o que faço aqui, mãe. Podia ter ido para minha casa. Mas não, está lá o Miguel e, por isso, não posso, seria como ir à guerra. O Ritz era um sonho antigo.

Quando for rica vou dormir para o Ritz.

Disse-o muitas vezes, em tom de brincadeira, sem pensar no que dizia. Imaginava o Ritz como ele é, cheio de histórias e solene, com alcatifa mole no chão dos quartos e camas feitas de forma impecável. Imaginava o Ritz com música de fundo. Amália dizia que tudo lhe aconteceu por acaso, que foi Deus, mas que também foi a Sorte, já que possuía a coragem para reinventar o fado, de cantar rancheras e outras coisas, de aceder aos poetas e músicos, de representar nos filmes por mera intuição. Ela, a quem nunca ensinaram nada. Eu não posso dizer o mesmo. Talvez tenha uma espécie de talento que me leva ao carvão ou ao óleo; sim, posso ter isso, todavia sou um elo de esforços, pessoas que fizeram caminho uma vida inteira para eu cá chegar. Não tenho um tumor na cabeça nem noutro sítio, tenho-o no coração. Amália fugiu para Nova Iorque para se matar. Era o medo da traição do corpo, desse diagnóstico infeliz. Enfiou-se num hotel, não sei qual, e deduzo que tenha bebido e visto televisão, até que foi salva por Fred Astaire. É ela quem o afirma. Começou a percorrer as lojas todas atrás dos filmes de Fred Astaire. Ficava o dia inteiro sentada a vê-lo dançar. Dançar com Judy Garland, com Audrey Hepburn, com Cid Charisse, com Gene Kelly, com Ginger Rogers, com Bing Crosby. Consigo imaginá-la com facilidade e essa imaginação leva-me ao desenho. Tenho Lisboa aos meus pés, literalmente, e o carvão mostra-me os passos elegantes de Fred Astaire a cantar “Puttin’ On the Ritz”. Parece-me justo. Já disse que não é possível desenhar a dança? A dança tem uma teimosia, digamos, que não se captura. Trouxe comigo um dos meus filmes preferidos, “Blues Skies” ou “Romance Inacabado” em boa tradução portuguesa. Tenciono vê-lo no computador daqui a pouco. Enquanto isso, penso. Penso e desenho e oiço a Amália na minha cabeça, a “Gaivota”, o “Grito”, a “Estranha Forma de Vida”. Sei os poemas de cor. Sei-os por causa de Nora, ela que os dizia num português emprestado, sibilante e arrastado. Por esta altura, deve estar num lar e não sei se me reconheceria. Por vezes, ligo à Helen, a filha. Ela começa logo a falar de forma estridente e pouco ou nada diz da mãe.

She’s fine, dear. It’s so nice of you to care, but there’s nothing we can do.

Irrita-me a falta de tristeza de Helen. Talvez eu a tenho pelas duas. Não sei. Consigo ser injusta quando não estou bem. Quando sou assolada por estes pensamentos. Amália foi para Nova Iorque para se matar. Queria que o tumor desaparecesse sem dramatismo. Estava decidida a isso. Não contava, porém, com o poder hipnotizante de Fred Astaire. Um homem magro, com pouca voz, para quem todos os grandes compositores americanos escreveram.

Now, if you're blue And you don't know where to go to Why don't you go where fashion sits Puttin' on the Ritz Different types who wear a daycoat Pants with stripes and cutaway coat Perfect fits Puttin' on the Ritz

Deixo o bloco em cima da secretária, junto à jarra com flores, corro os reposteiros pesados e deixo-me ficar na cama a fazer de estrela do mar. O corpo tenso, os braços e as pernas abertos. Tenho quase quarenta anos agora. O Miguel está à espera de explicações. É um homem que aprecia a troca de palavras, pode até ser violento, mas sobre isso não falarei. Não sei se consigo voltar para casa. A minha mãe, sempre na soleira da porta, a gritar para dentro do carro em andamento:

A tua cama está sempre feita de lavado, querida.

Não tenho forças, mãe. Já não sei o caminho das coisas certas. Não consigo falar do Miguel, é apenas um homem na minha vida. Não me dá paz, nem luz, não se confunde nas minhas tintas. Julga-me e condena-me. Diz coisas absurdas. Odeia o cheiro da aguarrás, dos pincéis, das telas. Se me soubesse aqui, bem quente no Ritz, escondida do mundo, rir-se-ia com desdém. Tem um absoluto desprezo pelo luxo. Vou ficar aqui dentro deste quarto, como num aquário, e tentar dormir. Invocarei a senhora dona Amália, pedir-lhe-ei que me assalte os sonhos e apareça a dançar com Fred Astaire aqui mesmo. Terei um vestido negro e colocarei umas pérolas para os acompanhar na dança majestosa, alcançarei uma graça que nunca possuí. Serei uma personagem do Ritz. Vou entrar num filme dentro do meu sonho. Depois disso, talvez, possa voltar para casa. Mandarei para o escritório do Miguel um desenho a servir de fim de conversa e peço aos anjos para se colocarem na direcção do campo, do Alentejo mais calado e profundo. Pode ser que aí seja, por fim, feliz. Ou, como na canção de Amália, sem secar as minhas lágrimas, vá adormecer cantando baixinho

Cheia de penas me deito E com mais penas me levanto Já me ficou no meu peito O jeito de te querer tanto. Nota: Amália Rodrigues morreu há dez anos, a 6 de Outubro de 1999. A expressão "puttin’ on the Ritz," significa “vestir de forma sofisticada” e teve como inspiração o Ritz Hotel em Nova Iorque. Fred Astaire cantou e dançou esta música de Irving Berlin, escrita em 1929, no filme “Romance Inacabado” de 1946.

Roga-se a quem... No areal o sol criava as ilusões próprias da reverberação, ondas de calor provocavam pequenos enganos, atiçando a imaginação de uns, confundindo outros. Adultos e crianças saíam da agua e subiam o declive de areia molhada, pedras e restos de conchas, franzindo o sobrolho, em estado de vigia, em busca do guarda sol, da toalha, da família. No mar, exibindo efeitos de uma vaidade aquática, uma mota de água. Um pouco mais à frente uma gaivota de pedais com um escorrega incorporado. À beira mar dois homens observavam um grupo de crianças. Uma mãe construía uma pista para uma perigosa e concorrida competição de caricas, com cuidado, a mão alisando a areia, as crianças à espera com as caricas na mão. Um bebé de fralda molhava os pés e fugia, rápido, rindo alto. O cenário do verão concentrava-se naqueles metros quadrados de famílias, de sombrinhas às riscas, coloridas e em apetrechos de época, bóias, baldes, raquetes e bolas para desafiar os adultos ao fim do dia. Não havia, porém, uma algaraviada descontrolada, a praia, generosa, abrigava cada história com extensão, cada um no seu sítio. Não havia uma concentração de meter medo ou a sensação de aperto. As pessoas deitavam-se ao sol e conseguiam sentir-se sozinhas, sozinhas à espera de ficar secas e brilhantes, bronzeadas e bem dispostas. Umas liam em cadeiras coloridas, outras dormiam simplesmente. Era o fim do verão e esse fim, temido por uns, ansiado por outros, podia ser o pretexto para mais uma ida ao mar, uma bola de berlim com creme, uma salada de tomate ao fim do dia temperada com cerveja ou vinho branco. E, claro, havia sempre espaço para gelados. Gelados de chocolate, de morango, com bolacha, em cone, em misturas de sabores. O Verão permitia tudo isso e o passar das horas era quase indiferente. De repente, inesperado, um altifalante gritou para o areal Perdeu-se um menino de cinco anos. Chama-se Carlos, tem um fato de banho castanho com flores. Roga-se a quem o encontrar que se dirija de imediato ao banhista Por momentos, a praia agitou-se, as pessoas levantaram as cabeças, verificaram a informação, repetiram-na. Uma mãe disse a quatro jovens Sigam para aquele lado, procurem o menino. Uma mulher, mergulhada no seu livro de capa amarela, tentou manter-se serena sem qualquer sucesso. Levantou-se e encarou o resto da praia. De certeza que os pais estavam desesperados, de certeza que procuravam o Carlos de cinco anos com afinco. Pensou nisto por segundos e depois começou a andar. Não tinha um destino exacto, seguiu pela parte de cima da praia. Percebeu que o marido a seguia. Não trocaram uma palavra. A mulher pensava na criança perdida, imaginava-lhe o rosto, o cabelo escuro, o sorriso traquina. Cinco anos. Um princípio de vida. O marido disse que o menino podia ter saído da praia, ter atravessado a rua. Nesse instante, a voz repetiu Perdeu-se um menino de cinco anos. Chama-se Carlos, tem um fato de banho castanho com flores. Roga-se a quem o encontrar que se dirija de imediato ao banhista. A mulher estranhou serem as mesmas palavras, a mesma entoação, como se fosse um modelo qualquer escrito há muito tempo, como se não tivesse um nível de importância que levasse à emoção. Suspirou. Viu os seus filhos, seguros, a regressar de mais um banho. Mirou-os com olhos que não eram seus. Tremeu com o crescimento que a ultrapassava, com a autonomia. Ainda se recordava de os ter aos cinco anos, aos seis... por aí. Bebés pequenos de sorrisos mágicos e pés comestíveis. As saudades tomaram conta de si, sentiu as lágrimas nos olhos. Uma criança é um milagre que não sabemos apreciar quando devemos. Estamos demasiado ocupados com as coisas do dia-a-dia para nos enternecermos com a fragilidade da vida que está preste a entrar no mundo para nos dizer, para nos ensinar algo mais. Os filhos da mulher correram para as toalhas, os cabelos molhados, a pele morena. Queria tanto que voltassem para trás. Queria ser ela a rir-se do bebé de fralda que molhava os pés desafiando as ondas. Ela a carregar uma mochila extra com comida passada, chupetas e fraldas, mudas de roupa e aconchegos, brinquedos em plástico, formas para desenhar estrelas na areia, baldes para construir os mais belos castelos. O marido estacou e concluiu que na praia havia muita gente, não fazia sentido procurar o Carlos que não conheciam. A mulher olhou para o mar e ele disse Não está no mar, está aí algures a ver alguma coisa, distraído com uma coisa maravilhosa. Ela assentiu e começou o caminho de volta para debaixo da sombrinha laranja. Passou por duas senhoras de idade que conversaram em espanhol a uma velocidade tal que não permitia qualquer compreensão. Sentiu-se estrangeira. O marido instalou-se na sua cadeira de praia, livro na mão. Ela hesitou ainda, abriu a geleira, bebeu água e o filho mais novo pediu uma sandes de fiambre. Pediu como deve ser, acrescentando “se faz favor” e, no fim, agradecendo. A mulher sorriu. O mais novo é sempre o protegido. A mulher sabia disso desde sempre, era a irmã mais velha de um rapaz que, ainda hoje, todos protegiam. Sentira na pele essa diferença e não sofria com isso. Tudo o que é pequeno tem mais graça, dizia-lhe a mãe. E ela concordava e ainda hoje concorda. O Carlos, com cinco anos, será decerto mais engraçado que os seu filhos, apenas por estar ali, nos cinco anos. A pequenez e a respectiva graça não são sobre o amor. O amor dos filhos é incontornável às coisas do crescimento. Ter filhos é ter o coração fora do corpo. Ela também sabia disso. Sentou-se afastando outros sonhos e necessidades. Queria regressar ao livro e esquecer-se de tudo por momentos. Começou a ler. E, como no princípio da tarde, a voz anunciou Avisam-se os senhores banhistas que o menino já foi encontrado e está com os seus pais. A praia inteira desatou a bater palmas. A mulher sentiu as lágrimas a escorreu, escondidas nos óculos escuros. O marido não deu conta, embrulhado na leitura. A praia voltou à sua rotina. O tempo do amor não permite partilhar tudo, sobretudo a dor. A mulher também sabia isso há muito tempo.

publicado por Patrícia Reis às 17:26 link | comentar

A mulher disse que com um esforço tudo era possível. O rapaz não acreditou. A mulher insistiu e depois calou-se. O rapaz perguntou Não dizes mais nada? Não. Porquê? Há coisas que são impossíveis de explicar, portanto faz o que precisas de fazer, se te magoares, cá estou.

Estás sempre. Sempre.

As duas mulheres fumam sem pressa e bebem o vinho que talvez nenhuma devesse beber. Falam de coisas delas, só delas. Ninguém sabe, ninguém suspeita, é como se fossem uma da outra sem previsão de que tal fosse possível, possível apesar do tempo, das famílias, da vida. A vida que corre tão depressa e tão lenta. As duas mulheres não existem. E essa percepção é real. Elas sabem. Por isso, falam e bebem e ninguém as vê.

As duas mulheres conversaram até por sms. O nervosismo era imenso. Pelo meio, um rapaz mandava mais sms. A ansiedade. Depois o desgosto. Por fim, horas mais tarde, a lucidez de perceber que não podia ser de outra maneira e que os extraordinários são-no por não serem outra coisa.

publicado por Patrícia Reis às 12:25 link | comentar

Há duas semanas vivemos a morte de um amigo. Hoje da avó de uma amiga. Depois da feira do livro, aos pingos, frio e sem churros, na companhia da Lídia Jorge e da Graça Fonseca e da Ana Daniela Soares. A cidade enlouqueceu com o trânsito para o rock in rio, parece que temos rolling stones hoje. Tudo bem. A Igreja de Santos-o-Velho não foi difícil de encontrar. Triste foi ver a minha amiga a contar a forma como foi tratada pela Servilusa, a mesma que tem um contrato com a Misericórdia. A avó da minha amiga estava num lar da Misericórdia. Fiquei com o cartão da senhora que atendeu a minha amiga, tenciono maçar a administração com as piores palavras que me sairem da boca. Se o velório e cremação não estivessem ao abrigo de um acordo com a Misericórdia, pois os serviços seriam outros, a empatia e sensibilidade também. Felizmente, como boa produtora, a minha amiga, sem tempo para chorar a avó, ligou à agência funerária do bairro onde cresceu e tudo correu de feição. Paga tudo o que tem de pagar e, caso não tivesse como, passaria a ter, felizmente somos muitos os amigos que estão com ela neste momento. Maio foi um mês terrível. O departamento de recursos humanos, como diz a minha madrinha, lá no céu, anda com problemas de organização. Amanhã volto ao crematório dos Olivais. Volto a ver o coração rebolar pela calçada, o coração de uma neta, de uma bisneta e de uma filha. A morte é sempre inesperada.

A vida é curta para só ser vivida ao fim-de-semana. É preciso aprender a calar a algumas coisas, dizer outras. A mulher cruzou-se com uma amiga no Chiado. Disparatou como é, por vezes, tão habitual nela. Faz justiça ao rótulo que tanto lhe colam: bruta. Frontal é diferente de bruta. E ser bruta é má educação. Logo, foi mal educada. E pediu desculpa, de imediato, ao telemóvel. Não se senti bem consigo, com a sua pele. Jurou calar-se para sempre, sabendo que a jura não tem qualquer validade. Depois, voltou ao mesmo: a vida é curta para só se viver ao fim-de-semana. E ela nem ao fim-de-semana tem vida digna desse nome. E a amiga também não. Faz um esforço para não se queixar. Odeia ter de dizer que está cansada. Odeia mulheres que passam o dia com lamúrias. Não odeia, é excessivo. Não gosta. Enfim. Podia mudar de pele?

publicado por Patrícia Reis às 00:08 link | comentar

Eu podia contar-te tudo. Numa pose composta, sossegada, em meio-tom, a gerar cumplicidade, num jogo de construção de algo íntimo no qual acreditarias por impulso. Então, nesse instante, o meu corpo desenharia um semi-arco, as costas curvas, um prenúncio de confidência, algum mau-estar, onde a ideia de culpa se mistura com o pedido de perdão. Perdão é pouco: salvação. Gosto mais. E no teu olhar talvez haja esse mistério que carrega a possibilidade de me salvar no momento em que te conto a verdade por inteiro, todas as minhas maldades, os meus desvios, as mentiras e as outras coisas que um dia chamaste sedução. E eu não entendi. Estou a correr, eu sei, espera mais um pouco. Vê como agarro as mãos, uma na outra, as unhas roídas, as peles salientes, o verniz gasto, um verniz de velha. Não é a imagem que tens de mim? Quando te contar tudo aproveito a ocasião e mostro-te o meu corpo. Não penses que o conheces. Agarrá-lo e despejar o que há em ti de animal não te dá qualquer poder sobre mim, apenas sobre o meu sexo. E o meu corpo está para lá do sexo. Se quiseres faço-te um mapa. Se quiseres: tudo o que mudou, o que significa cada cicatriz, onde nasceram novos sinais, onde me dói mais. A dor é fundamental. Posso disfarçar, claro. Disfarço sempre. Mas agora não. Como tu não estás é mais fácil. Num exercício infantil prometo-me: conto tudo se chegares cansado; se disseres olá, se trouxeres o fato castanho; se ainda conseguir. Pode ser assim? (texto para o livro Díptico # 01 com fotografias de Cláudio Garrudo e textos de várias mulheres)

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Um beijo, Marianna

Não é que tenha de ter razão. Não preciso de me sentir certa todos os dias. Acredita. Posso cometer os mesmos erros de sempre e dizeres que, pese as horas de conversa e acusações mútuas, sou incapaz de aprender. O pior, sabes, é que quando sinto que a certeza mora cá dentro fico cheia de palavras que podem cair como uma chuva de pedras. O amor sem condição é impossível. Estar certa, completamente ciente de que o caminho que percorro é o justo, longe das sombras e outras maldades. Posso arriscar e dizer que, terás de me perdoar, mas desta vez ganho eu. E é assim. Tenho razão. Queres que explique melhor? As palavras não são a verdade inteira da justiça do que sinto. As palavras são poucas e estão gastas, terás de ouvir o silêncio do que te digo ou escrevo. Arrisca um pouco, deixa o pedestal de ser o que achas que tens de ser, desce à rua da amargura, mesmo aqui aos teus pés, e vê como o meu coração se desfaz nas pedras para que o possas pisar. Sim, a razão é essa, o meu coração derramado, incapaz de se moldar de novo, transformar-se num músculo dentro de um corpo. Eu já não tenho corpo e tu nem dás por isso. Olha para mim, não olhes para o que pensas que eu sou, mas para quem eu sou. Não o sabes fazer? Já o sei. Tanta coisa que é impossível saber. Deixa, não te rales, a vida é feita destas intrigas e pedaços de fracasso, sem drama, vamos aprendendo a ver conforme nos é possível. Por isto tudo, o meu coração já não pulsa, permanece aos teus pés e falas para um coração morto. Podes contar das tuas razões até ao Verão. Já cá não estou para te ouvir, mas estou certa. Certa da minha morte em ti. Quando tropeçares naquele líquido não será vermelho de paixão, apenas uma cor vil de fim. Não te surpreendas, mas tens permissão para chorar e dizer que não entendes. Quando foi que entendeste?

Não estás feliz? Olha, não sei, as coisas acontecem apenas e temos de as enfrentar. Como num tribunal, as acusações nos olhos de terceiros, a garganta seca, a culpa, a maldita culpa a castigar tudo e todos. Não há espaço para mais nada, não voltarei a ser criança nos teus braços. Cometo erros por falta de tranquilidade. O que é a tranquilidade? O nosso mundo está partido aos pedaços, tem brechas brutais que se agravam a cada hora de um relógio que não nos pertence. Estamos em colisão, em extinção, ameaçados. Relacionar-se-á com amor? Duvido. O amor morre de repente. Quando damos por isso, foi-se. Partiu numa direcção estranha e desconhecida. O nosso amor é agora o amor de outros, cumpre a sua função, deixou um vazio, mas preenche as necessidades de quem vive, neste minuto, o momento da excitação de descobrir outro, qualquer outro que seja. Por esta altura, julgaras que me desfaço nas palavras, que as atiro contra a folha do computador apenas num acaso, a ver se formulo um pensamento, um desvario. Estou sossegada, sabes, porque os dedos correm no teclado sem grande pressa e sinto-me despegada de tudo, sobretudo das palavras que te deixo hoje, na véspera das férias de verão. Tu visitas a tua mãe e eu, a pretexto de um trabalho que não terminará nunca, deixei-me estar aqui. Não faz calor. Há um silêncio confortável. Vejo os candeeiros desligados, as mesas de trabalho, os estiradores, as maquetas tridimensionais, edifícios por construir. Os arquitectos têm uma expressão - fazer cidade - e é fácil de entender que o ambicionam, embora seja altamente duvidável que o consigam concretizar. Seja como for, sou apenas uma desenhadora. Muito boa, dizem. Pouco importa. Gosto das linhas e do desenho preciso, dos cálculos matemáticos que colocam todas as questões numa qualquer ordem. Preciso disso, dou-me mal no caos. Há um abismo que me atemoriza primeiro. Depois chego, como hoje, à indiferença. É o pior dos sentimentos porque não leva a qualquer espécie de emoção, de tristeza ou de ruptura. Ficas como que dormente depois de teres tomado uma decisão. Basta comunicá-la e está tudo resolvido. Não verei as estrelas contigo amanhã à noite. Perdoa-me. O mundo não me ama e eu tão pouco te amo. O amor fugiu, escapou. Estou a repetir a mesma ideia, já sei. Perdoa-me, mas a coerência nunca foi o meu forte. Sabes que sonho em viajar no espaço? Não numa nave, não, nada disso, nada de tão sofisticado. Sonho que voo baixinho e sinto a relva com as pontas dos dedos, que posso subir e ver as janelas dos prédios mais altos, a vida das pessoas, que atravesso nuvens e me junto ao ballet acertado do bando de aves migratórias, sabedoras de coisas sobre o tempo e o vento. Não me importava de ficar assim, uma ave humana perdida num bando. Tem algo de poético ou de ridículo, ainda não decidi. Há muitas coisas sobre as quais ainda não decidi. Outras, porém, tenho-as com a certeza esmagadora de uma inevitabilidade biológica. Acredito que Jesus sabia estas coisas. As fantasias à sua volta são apenas isso: fantasias. Jesus sabia sobre o amor e a sua fuga e quis avisar-nos. Ouvimos? Não. Estamos sempre muito ocupados e há dois mil e tal anos já estávamos a cumprir com uma qualquer azáfama. Não queres saber de Jesus. Compreendo. Lembrei-me de como será o natal sem ti. A coisa do menino Jesus nas palhinhas e tal. Desculpa. Sim, é um pouco lamechas, mas o que queres? Podemos conversar sobre o logótipo da cristandade, inventado no século IV? A cruz, o melhor logótipo do mundo. Não? Certo. Estou a desconversar. Posso pegar na mala, ligar o alarme, sair para a avenida deserta, ver as janelas iluminadas e imaginar as famílias. Sabes o que eu queria? Queria um filho, já to disse e não me valeu de grande coisa. As tuas prioridades, as minhas prioridades, o dinheiro, a condição de vida, a saúde, o aquecimento global, a paz no mundo, tudo o que teima em falhar. Se pensares bem é sempre a mesma história: começamos por querer o mesmo e depois seguimos trilhos distintos, como índios especialistas em pegadas e coisas assim, cada um a desvendar o seu mistério, o respectivo segredo. Não me digas nada. Quando chegares a casa não terás nada meu, nem uma peça de roupa, um livro, um quadro. Deixei-te o gato, porque... enfim, é uma companhia e vais precisar por seres tu o abandonado. Essa maldade – “ela levou-me o gato” – não a quero em cima da minha cabeça. Desculpa. Precisas de comprar areia e comprimidos para desparasitar a criatura. Está na altura. O gato deve ter percebido tudo porque escapou às minhas festas com um certo desdém. Não faz mal. Eu até sou alérgica ao pêlo, era um esforço por amor. Seja lá isso o que for. Sabes o que é? Eu não. Já soube. Agora não. Deixo-me estar quieta no meu canto e não digo nada, o meu corpo não se movimenta na direcção certa, pouco me importa que não me apreciem ou que o façam com excesso. Estou a salvo. Sobrevivi a tudo e estou imune. Mesmo a gripe A não me pode apanhar. É como a euforia do Verão ou o espírito de natal. Dentro do meu carro, com as coisas amontoadas na bagageira, sinto-me livre de obrigações. Se tivesse um filho, repara, seria diferente. Não tenho, ou melhor, não temos, por isso desejo-te um resto de ano extraordinário. Eu irei encontrar um bando para voar baixinho. E, mesmo que fique sozinha, posso sempre encarar o vazio do meu corpo e culpar-me inteiramente. Pouco ou nada sobrará para ti. Não estás feliz?

publicado por Patrícia Reis às 00:01 link | comentar

1. aleggro Quando o teu corpo, como uma sonata, se mexeu, contei os quatro movimentos e pensei em Mahler. Não perguntes porquê. Talvez por causa de Alma e de Freud. Não sabes a história? Pouco importa. Ou, na verdade, importa. Mahler amava a mulher e era traído. Freud conversava com o compositor e fumava. À época, Mahler escrevia a sinfonia a que nunca quis chamar nona, baptizando assim a obra de poema sinfónico. Parece existir uma superstição qualquer, mas sobre isso nada sei. Não, espera, sei: há uma série de mortes de músicos depois da composição de nonas sinfonias. Parece estranho, porque Mahler deixou a décima por terminar, embora tenha a Canção da Terra que, para todos os efeitos, se apresenta com a estrutura de uma sinfonia. O compositor a brincar com o destino? Sim. Pode ser. A imaginação aliada ao receio constrói o que quer, até o inesperado. Tu gostas de Mahler? Sofria. Por ter qualquer coisa no coração, uma corda partida. A mulher. Uma mulher é uma coisa, "a" mulher é outra. Foi em tudo isto que pensei quando te vi mexer no assento e na forma como te podia desenhar: virado para a frente, a mão no pacote de cigarros, o olhar para o lado como quem prepara a frase e, depois, o corpo que se encostou à cadeira. Eu tinha vinte e dois anos. Tinha estado entretida. Havia uma música de Natal que ocupava a minha cabeça, mas como tenho sempre uma música na cabeça, não era uma surpresa. O que me surpreendeu foi o movimento do teu corpo, essa melodia escondida, depois a voz, o vocabulário e, mais tarde, os textos como escalas, andamentos dentro dos movimentos. Um rendilhar de palavras que compõem, ainda agora, toda a ideia que consegues dividir pela matemática. Espera. Oiçamos o rondó. Movimentos lentos ficam-te bem, já te disse? E eu preciso da lentidão para pensar, para desenhar melhor, apesar de viver numa vertigem que ninguém parece conter ou conseguir parar. Acredito que a culpa seja minha. Nunca pedi para ser parada. Se tudo não fosse impresso ao som da música talvez o meu corpo quisesse esse sossego que vejo nos outros, uma certa calma, um estar sem fazer. Imaginas o que seria um mundo sem música? A tristeza seria maior, um lago escuro que nos engoliria sem piedade. A música confere-nos a humanidade de nos conseguirmos transcender. A possibilidade existe. Pensa em Bach. Todas as suas composições têm, como interlocutor, o invisível, a fé, aquela ideia de que Deus está e, por isso, o mundo será menos exigente. Sim, menos exigente foi o que disse. Mahler acreditava num outro Deus. Ser judeu não é o mesmo que ser católico. À tua frente, ainda sem saber nada do cheiro, toque, ou palavras de ordem, respirei fundo. Talvez não te recordes, o prédio ao lado estava em obras e, no frio de Dezembro, o ruído das máquinas era insuportável. Observava o fumo do teu cigarro a correr na direcção da janela. Sentia o corpo a gelar. Foi então que perguntei Sabe quem eu sou? Era uma questão retórica. Fiquei presa nela. E quem sou? A rapariga-rapaz que não quer ser vista e que, quando desenha, ouve música dentro da cabeça e quando sobe e desce escadas ouve música e não sabe nada de música e não tem sequer um piano, mas consegue distinguir as Suites de Bach? Estava nessa fase obsessiva relativamente à música. Tinha convicções muito veementes sobre a importância de Haydn e a sobrevalorização de Mozart. Uma heresia, dirás. Eu era a rapariga à tua frente, a contabilizar os gestos do teu corpo, o fumo, a ouvir a tal música e o ruído das máquinas. E era ainda a tua amante. Sim, de forma espontânea. Tu não viste. Eu? Vi como o meu corpo se encaixaria no teu e podias fazer os quatro movimentos agarrado a mim. Senti a perplexidade do momento, uma certa vergonha. O corpo tem ordens suas, apenas suas, e a cabeça, bom, a cabeça não tem ordem e pode imaginar o que conseguir e eu estava ali, sem saber ao que ia, a fazer amor contigo. Conseguiste imaginar o meu corpo no teu? O tempo demora o que precisa, a não ser que seja Natal, um tempo que nos obrigamos a viver dentro de tradições inquestionáveis. Nesse ano, não o sabes, mas posso contar, liguei à minha mãe e, alegando qualquer coisa que ela soube de imediato ser mentira, escapei aos rituais, à família. Apesar da surpresa, como é habitual na minha mãe, perguntou E precisas de alguma coisa? E eu que não, nada. No dia seguinte começariam os saldos, disse. Tive esse ímpeto de humor idiota. Ela tentou rir. Alguém a chamou. Lembro-me de ter sentido um arrependimento inesperado só por ouvir o nome da minha mãe, mas não mudei de ideias. A casa estava gelada, andei o resto da noite abraçada a uma manta. Preparei um chá. Da janela vi os diferentes natais das pessoas do prédio da frente. Não me senti triste, apenas aliviada. O teu rosto tinha sido eliminado com a conversa da véspera. No presépio, instalado numa prateleira, um presépio de linhas modernas, ninguém me olhava. Era Natal e estava sozinha. 2. andante Um ano depois, o Natal pareceu-me outra coisa. O aeroporto de Paris, Charles de Gaulle, às seis e meia da tarde, estava cheio. Sentia-me uma liliputiana a ser atropelada por malas e tróleis, crianças e mulheres de burka. Um Pai Natal gigante com uma sineta rompia o ruído do mundo para nos lembrar: é dezembro, temos de ser melhores em dezembro. É dezembro, temos de ser melhores em dezembro. Paris? Gosto tanto de Paris. A melhor cidade quando se está apaixonado, a pior quando não se está. E depois o bilhete em cima da minha mesa e uma folha quadrada a dizer Chego amanhã, às 18h30, Charles de Gaulle. Fui. Obediente. Por total fascínio em antever o que sabia certo e, ao mesmo tempo, para entender o que te motivava a este encontro. Eu só vira tudo o que havia para ver de Godard e tinha uma colecção já vasta sobre escultura francesa, em especial Rodin e Camille Claudel. Coleccionava. Para saber, na presunção de que a cultura geral é o que nos dá riqueza, que o dinheiro não é nada. Não vale nada. Tu tens do dinheiro uma outra ideia. Nenhum número constitui um mistério para ti e, para alguém como eu, alguém que não sabe balançar na lógica dos números, só os entende na música, o dinheiro parecia-me excessivo e, por isso, disse Não precisamos desse restaurante. Vamos a um bistro. Dessa vez, o obediente foste tu. Eu não podia entrar num restaurante como esses que conheces. Tinha umas calças de ganga, duas camisas, uma t-shirt, um casaco de lã. Tudo metido num saco. Uns sapatos rasos. Não podia, percebes? E, por isso, brinquei com o pão e ouvi-te falar sobre os jardins na Índia. Contei-te a história do almirante inglês. A Índia ainda estava ocupada pela Grã-Bretanha. O almirante tinha uma frota pronta para o que fosse - que não seria nada - os indianos acatariam sem discutir. Era a convicção. O almirante apreciava os jantares prolongados em casa, mas, acima de tudo, o final da tarde, aquela luz que só existe na Índia, copo de gin na mão; o almirante a admirar o seu jardim. O almirante recebeu a visita de um professor português e, ao pôr do sol, olhando para o jardim disse É perfeito e, apesar disso, falta-lhe qualquer coisa. O português respondeu que lhe faltava liberdade, que a natureza não se pode domar com tanta perfeição. O almirante não gostou. Sorriste. A perfeição não te interessa. Quando nos deitámos, pela primeira vez nus, um perto do outro, a tua mão limitou-se a fazer a curva do meu corpo repetidamente, até que te engoli num beijo. Na manhã seguinte, ouvi-te ao telefone com a tua mulher. Escrevo a tua mulher, por teres sido casado com ela. É esse o rótulo justo que se pode dar à mulher que estava a ser enganada por uma miúda que te arrastava de museu em museu e não queria jóias ou malas de marca. Tu explicavas que ainda não tinhas tido tempo, que lhe comprarias qualquer coisa, que seria uma surpresa para a noite da consoada. E, a meio da tarde, eu - apenas para me ferir - decidi Aqui tens a prenda perfeita para ela. Sim, ela, a cobardia também se revê nas palavras. Podia ter dito o nome, sabia o nome, repetia o nome como uma lengalenga infantil, mas repara que pouco interessava para o caso, não havia música no nome da tua mulher e, para mais, tu concordaste e compraste o lenço com a assinatura de uma grande casa de alta costura, um lenço de seda devidamente embrulhado em papel seda cor de vinho tinto. O teu cartão era dourado. E o pagamento foi rápido. Ela estava, assim, despachada, e eu podia fingir que a esquecia enquanto andávamos pelas ruas. A tua mão na minha. Um frio bom, luzes que acendiam e apagavam. Em frente a uma loja elogiaste o vestido na montra, era bonito e eu iria precisar de um vestido e de uns sapatos. Empurraste a porta e foste, prontamente, atendido por um rapaz com um sorriso quase felino. Sentei-me. Parecia uma menina amuada. Sabia que precisava de um vestido. Afinal, era Mahler e a sala de concertos não era uma qualquer. O vestido caiu-me como uma gota, o tecido colado ao corpo como uma pele só minha e saí do provador para to mostrar. O empregado trouxe uns sapatos altos, demasiado altos e tu disseste, de imediato, que não, teriam de ser outros. O senhor retirou-se com pressa. Tu pediste Dá uma volta. O senhor chegou com outros sapatos e, com alguma delicadeza, apreciei a pele, a tira de sapato antigo, um salto meio alto, confortável. Tudo junto, se queres saber, não era eu, pouco importa. Eu descrevo-te: era de veludo o meu corpo no vestido de seda que escorria, os sapatos escondidos, apenas a ponta de pele trabalhada e ainda a tira a atravessar o peito do meu pé, uma sensação estrangeira. O vestido, se rodado, era mais curto atrás e as costas descobertas com um despudor que te fez sorrir. Aquela não era só uma mentira de mim e, perdoa-me, era ainda uma outra pronta para chorar ou rir a teu pedido. Já na rua, a tua mão regressou à minha, o saco a bater-me nas pernas. Antes da consoada, já tinha a minha prenda de Natal. Éramos nós ou não? Uma ideia de nós como uma sombra do possível. Alguém tocava acordeão na rua e quis parar. O teu telemóvel tocou. Fiquei ali, largada. Pouco sei do que Deus quer de mim e, por isso, deixei-me ficar a ver as mãos do homem no acordeão. Pensei na música e nela outra vez e, depois, para te desagradar mordi uma pele do polegar, arranquei-a e fiz sangue, uma ferida a gritar para que não te fosses. E tu regressaste. Quanto tempo terá passado? E quem conta o tempo e dentro do tempo o que será verdadeiramente importante? Eu não sabia e agora, se for preciso dizê-lo, tão-pouco sei. O tempo possui uma medida única e pode ser infinito ou rasgar o céu e deixar-nos cair, nanosegundos de suspensão, uma sensação de desconhecimento que não precisa de ser desagradável. Há muito de tentador na perdição. Assim, de regresso, tu querias voltar ao hotel, mas o meu castigo era uma exposição sobre os arquitectos da liberdade e debitei sobre Etienne Boulé como se tivesse escrito uma tese sobre os sonhos de um arquitecto do impossível. A curiosidade moveu-se no teu corpo. São os tais andamentos. A atenção é a vontade de fixar o melhor do mundo e há poucas pessoas assim. São os eleitos da beleza, vêem o que os outros não tentam sequer compreender e não se questionam. Deixei-te admirar uma planta gigante, um desenho feito à mão de um planetário, uma cúpula de vidro, uma base bizarra com se fosse uma previsão de nave espacial. Fiquei junto aos desenhos enormes dos jardins, desenhos que sempre me fascinaram. Queria voltar à história da Índia por ter mais que contar e não saber como. Hoje não sou uma pessoa calada, então limitava-me a falar se fosse crucial. Aprendi cedo o conforto do silêncio e não sabia se me querias pela cabeça, pelo corpo, pelos meus dedos num pau de carvão, rápidos, a desenhar ou se pela música que sei de cor. Não sabia, já te disse, quem era. E tu vieste ver a planta do jardim e murmuraste qualquer coisa sobre o que faltava e compreendi que não era preciso dizer mais nada. As coisas podem parecer perfeitas e, depois, sim, depois, acontece que o sonho se quebra por não ser um sonho numa bolha ao abrigo do poder de Deus. Tu dirás natureza. Eu não te vou contradizer. Nessa noite, de vestido e sapatos, com frio e sem saber como os meus seios se viam à transparência, eu, a miúda sem peito que não usa soutiens, estava espantada com a sala de concerto, com a elegância do teu fato e a música... Bom, sobre a música não preciso de te recordar por nos termos comovido ao mesmo tempo. No final, tu disseste que, não sendo um ortodoxo do seu tempo, começavas a entender Mahler. Eu só queria entender-nos. O meu coração era uma partitura por encher e estava à espera. Dirás que a metáfora é fraca e tens razão. O amor é estranho e nem podemos esperar pela sua coerência. Quando voltámos, no avião, tu pediste Canta-me uma canção. Escolhi body and soul. Não te expliquei porquê. As explicações são actos de um egoísmo e presunção e maldade e... haverá mais para dizer, não me ocorre, perdoa-me, uma explicação é levantar a cortina e fica tudo exposto ou apenas uma parte e nós só éramos uma parte, mesmo no ar, já não estávamos um no outro. A tua mão soltou-se da minha. O porquê importa pouco; o avião aterrou. O meu adeus foi sussurrado e os teus dedos procuravam um cigarro e eu tentei sorrir e pedi que fosses, precisava de levantar dinheiro. E tu a querer saber quanto dinheiro queria e eu a virar as costas, as lágrimas de dor ou incompreensão. Nunca seria uma relação, uma potencial família. Consegui antever todas as prendas que trarias das viagens onde seríamos outros e onde, por razões insuspeitas, te deixarias arrastar para locais que não faziam parte do teu território, como o bar de jazz ranhoso, o bistro barato, a loja de crepes na rua. Para falares a minha linguagem seria preciso descer de uma qualquer nuvem já que, apesar dos sapatos que ainda tenho, do vestido preto de costas abertas, guardado num cabide especial, nunca seria a outra da tua vida. E o nunca ficou entendido com a recusa do teu dinheiro. Hoje posso dizer que apanhei o autocarro. Na minha mala de nómada levava o vestido, os sapatos e uma história. No saco levava o teu coração, porém não o entendi e tu não mo explicaste. As tuas frases enganam, sabes? Não dizes muito sobre ti e eu só andava a caçar borboletas em extinção, certa da sua morte. Hoje sei entender o que me podias ter dito numa frase apenas. Uma frase pequena Amanhã... e eu diria que sim com um beijo que ninguém veria e o mundo manteria a sua rotação. A tua boca manteve-se cerrada e ela à tua espera. Voltei as costas e assim passaram-se anos. Nessa noite, ajudei a minha mãe a fazer a ceia de Natal e não pensei em ti. 3. minueto A vida não é o ideal imaginado. É como aqueles bonecos animados que correm e deixam rasto, pode ser que escapem ao dinamite, à rocha que ameaça cair numa avalanche. Nunca se sabe exactamente nada e tudo pode mudar em segundos. Foi o que aconteceu. O trabalho começou ser demasiado exigente. Para quê um curso de escultura, perguntara a família. A minha irmã riu-se, estridente, e queixou-se da enorme falta de modéstia de algumas pessoas, mudando de assunto rapidamente. Se eu queria ser uma artista desgraçada, pois que o fosse mas sem maçar o resto da gente trabalhadora, verdadeiramente contribuinte. Foi com surpresa que todos, incluindo eu, receberam a notícia da bolsa de estudos para ir um ano para fora. O meu sorriso, diria que vingativo - ou dirias tu se o tivesses visto - não serviu de muito, porém recebi os abraços e felicitações da ordem. O meu pai disse Olha, vê lá agora não estragas tudo. Não me admirei, nunca me admiro com o meu pai. Nunca viu uma exposição na vida, nunca compreendeu o que era essa coisa de ir para Belas Artes e chegar a casa fisicamente tão cansada que não sabia fazer mais que dormir ou ouvir música. As queixas sobre mim significavam apenas desilusão. Quando saí de casa, pouco antes de te conhecer, estava a acabar o curso e decidira dividir uma caixa de fósforos com uma amiga. Sentia um sufoco que em casa dos meus pais podia ser descrito como algo similar ao sufoco das pessoas que sofrem de asma. A bolsa de estudos chegou. Meti numa mochila e num saco os discos e os blocos de desenho, a roupa mais quente e apanhei um avião que, pela primeira vez na minha vida, atravessou o atlântico escuro sem eu entender que tal enormidade é possível. Tive medo quando o aparelho começou a deslizar, quando levantou, assustei-me com uma vaga turbulência e quase chorei quando aterrou. Para salvação tinha apenas uns headphones e ouvi Bach por Glenn Gould vezes sem fim, no modo repeat, para me sossegar. Uma vez no aeroporto, a confusão espantou-me. Eram quatro da tarde. Chegar a Newark não era em nada igual ao que é hoje. Ninguém me pediu para tirar os sapatos, não vi cães a cheirar malas, polícias com um ar mais severo. Dizem que depois do 11/9 tudo mudou. É verdade. Não fomos os dois ver o ground zero mas levei a minha filha num carrinho de criança, ela a brincar com um elefante de peluche, enquanto eu chorava. Um buraco é um lugar de morte e emoção. Isso eu já sabia, qualquer escultor sabe. A matéria, a pedra, a lama, o ferro, a areia, tudo tem um significado e o mesmo muda conforme a disposição. Um escultor joga com a matéria para provocar emoções. O ground zero não é arte, mas, como diria Vergílio Ferreira, um contra-monumento. O escritor usou a expressão para definir o campo de concentração de Dachau. Contra-monumento. Nova Iorque é uma cidade que passou a ter essa cicatriz. A minha filha, chama-se Mia, não deu por nada e, nessa noite, via-a dormir ao som dos dedos mágicos de Keith Jarrett e atirei-me ao estirador com uma vontade e raiva quase desconhecidas. Isto foi três anos depois de ter chegado aos Estados Unidos. A fundação que me atribuíra a bolsa não queria que me fosse embora. A directora disse É muito ambicioso o que tenciona fazer. Acredito em si. No seu futuro. Não me lembro de ter respondido. Estava convencida de que era um projecto demasiado grande para alguém como eu: uma mistura da minha visão do mundo e de todas as influências clássicas, nada muito moderno ou vanguardista. Quando todos os bolseiros mostravam peças e instalações abstractas, eu optara por fazer de uma escultura um jardim por onde as pessoas caminhassem, tocassem e ouvissem música. Era - ainda é - uma peça com trinta metros, se os contar de forma linear, com três de largura. Era o labirinto da Alice no País das Maravilhas e era a minha cabeça em simultâneo. Pretendia, estávamos no fim da década de 90 do século XX, criar algo que fosse mais próximo das pessoas e exigisse interacção. A directora tinha o meu portfólio e sabia que todo o meu trabalho escapava ao habitual. Disse As ideias têm todas música. Não sei fazer nada sem música. Não me perguntes, num ímpeto dei-lhe o meu velho discman - ainda te lembras dessas coisas? - e pedi-lhe para ouvir. Não era clássico ou jazz, era fado. Amália. Vi-lhe lágrimas nos olhos e sorri. Apesar de não entender português, a directora comoveu-se. Contei-lhe que Amália tinha vindo para Nova Iorque com o intuito de se suicidar e que os filmes de Fred Astaire a salvaram. Pareceu compreender. Comecei a trabalhar num armazém da fundação, a música nos ouvidos e – posso garantir - sem pensar em ti. Meditava apenas nos materiais: a substância, o volume, a espessura, o tempo de secagem. O meu jardim de metal e pedra, de gesso e areia. Misturava, experimentava, deitava fora, morria de frustração, estava exausta ao fim de pouco tempo e deixei de comer. O jardim era uma obsessão. A minha mãe escreveu a dizer que vinha fazer uma visita e eu vomitei. A maioria das pessoas não entenderá, mas fazer o quê? Não te vou mentir. A minha mãe ficou uma semana, viu o armazém, a que chamou atelier por uma qualquer razão que me escapou, perdeu-se em Chinatown e comprou tudo o que lhe pareceu barato. Acompanhei-a, tentando contar a história disto ou daquilo, levando-a aos museus mais importantes e, claro, sendo arrastada para um musical que ainda hoje está na moda. A Broadway muda, mas não muda tanto assim. 4. rondó Sem ti, vendo a minha posição na fundação ganhar força, coleccionadores especiais a visitarem o espaço para verem o meu trabalho, tudo isso fez com que eu deixasse de ser a miúda de Paris. Posso dizer que usei o teu vestido e calcei os sapatos na apresentação conjunta e, sem temer comentários, outra vez na primeira exposição individual. Curiosamente, ou talvez não, a minha apresentação foi durante a festa de Natal da fundação. Um acontecimento anual de extrema importância, foi o que me garantiram durante semanas. Nesse dia, quando regressei a casa, bebi um copo de vinho e ouvi Mahler, a Canção da Terra, e despedi-me do compositor. A sua música perdeu-se em mim. Quando vendi a primeira peça, o tal jardim que está na entrada impotente de um grande edifício, decidi que vodka preto seria a minha bebida. Nessa noite, sem grande memória, a Mia foi concebida. O pai é um músico que andava então pelos bares de Nova Iorque e que hoje estará algures, pouco importa. Dirás que tem direito a saber que é pai. Tem, não o nego. Não me apeteceu procurá-lo quando descobri que estava grávida porque naquela noite, a noite em que descobri a vodka, o sexo foi uma sucessão de gestos mecânicos e não me lembro de nada. Na manhã seguinte, já perto das duas da tarde, um daqueles sábados glaciares na cidade, ele já não estava. E que importância tinha? Nenhuma. Tomei um comprimido para a dor de cabeça e comi cereais. Dois meses mais tarde descobri que estava grávida e não sabia nada daquele homem que fora apenas um corpo. O único homem que ocupava, por vezes, a minha mente eras tu. Os movimentos do teu corpo. Fiz uma escultura assim: um homem sentado a fumar. Levei meses. Queria que fosses tu e não queria. Não vieste atrás de mim, pois não? Depois de Paris, nesse dia do regresso, deixei uma mensagem a dizer que não voltaria à empresa. Que tinha um novo emprego. Não era verdade, nem era mentira. Todos os meus empregos foram fugas, formas de evitar o inevitável. Ser artista nunca foi um estatuto. Significava, e o meu pai não se cansava de mo lembrar, tal como a minha irmã, que não iria a lado algum. A bolsa de estudo salvou-me e, depois, a fundação e a directora. Havia algo nela que se aproximava de ti. Não gostava de perfeição. As pessoas – os bolseiros – tentavam todas as manobras para a seduzir, para ter uma relação com ela. Eu limitava-me ao aceno de cabeça, sempre com a música nos ouvidos. Quando queria falar tocava-me no ombro, eu carregava no stop e olhava-a fixamente. Ela fazia uma ou outra observação sobre o trabalho. Quando a bolsa estava próxima do fim, chamou-me ao gabinete Gostava que ficasse. Como coordenadora dos bolseiros. Não sou boa a lidar com outras pessoas. Aprende e tem um emprego e um espaço para continuar o seu trabalho. A fundação quer que fique. Não se discute com uma pessoa assim. Talvez por ter acenado positivamente não tenham existido, posteriormente, comentários sobre a minha gravidez. A Mia nasceu numa sexta-feira 13, a última do milénio. Dois dias depois estava de volta à fundação, a Mia numa cadeira mínima. Deixei de usar headphones. Comprei um aparelho pequeno e mantive o volume baixo para não a incomodar. A minha filha cresceu assim, no meio do pó e dos artistas, de música, com uma mãe que, de repente, percebeu que se sentia tão sozinha que a maternidade era uma bênção. Falava com ela constantemente. Sempre na nossa língua. É um património. Nesse ano, fui a Portugal passar o Natal, mostrar o rebento, enfrentar a tempestade que se resumia à pergunta sobre o putativo pai. A minha vontade, para ser completamente sincera, era dizer que o pai era uma garrafa de vodka. E mesmo quando insistiram comigo, pormenores de legalidade, o que colocara no registo do nascimento, que nome de que pai, eu encolhi os ombros. Quando a registei dei o teu nome e passaste a ser pai. Pareceu-me o mais natural e conseguia imaginar-te a chegar com um urso gigante para ver a menina. Tinha assim uns cenários que me moviam para dentro de um filme que nunca seria o nosso, mas pouco importava, estava consciente da ficção. Nunca me iludi. A Mia nunca perguntou pelo pai. Na escola existem muitos meninos e meninas sem pai ou sem mãe, ou com dois pais e duas mães. A América também é isso. Sem me dar conta ganhei o meu estatuto de artista com propostas de agentes e uma carreira internacional. Quando ia a Portugal já não era invisível. Disso não me podiam acusar. A minha mãe queixava-se da distância e de a única neta ser criada longe do seu colo. Nunca mais ouvi qualquer comentário da minha irmã e o meu pai remeteu-se a um silêncio que eu, interiormente, agradeci. Estava neste estado semi-adormecido, focada na Mia e nas coisas do trabalho, nas novas ideias e solicitações, ouvindo ópera de uma forma obsessiva, outra vez, quando tu me telefonaste. Era dezembro outra vez e eu estava em Lisboa. Nunca perguntei como tinhas conseguido o meu número. Almoçámos num dos meus restaurantes preferidos no Bairro Alto. Cheguei mais cedo. Queria ver-te, medir a forma do teu rosto, os movimentos do teu corpo, perceber se ainda te via no meu. E tu, com a calma de quem vem animado, um sorriso nos lábios e depois, como se fosse natural, nada ensaiado, sem qualquer pudor, depositaste um leve beijo nos meus lábios. Estávamos de novo em Paris. Senti uma tontura e depois sorri. Tu disseste Serás sempre uma das mulheres mais estranhas que conheci. E desatámos a rir. Ser estranha, eis um rótulo antigo, desde sempre e, no teu caso, era evidente que o podias dizer. Já não era uma miúda, não perdi o chão. Encomendámos qualquer coisa e conversámos como se não se tivessem passado anos. Vi a tua aliança, diferença da anterior, e perguntei E a Isabel? Como está? Penso que bem. Divorciámo-nos há cinco anos. E a aliança? Ah, tu sabes que eu posso casar muitas vezes. Pois podes. Suspirei. Para te chocar abri a pasta de fotografias no telemóvel e fiz-te um resumo da curta vida de Mia. Como é impossível ficar indiferente aos encantos da minha filha, foste tu quem suspirou. E o pai? Não faço ideia. Vens para ficar? Não. Regresso a Nova Iorque daqui a dois dias. Talvez te vá visitar. Papéis invertidos. A música que tocávamos era desconhecida. Eu não percebi o tom. Tu terás compreendido tudo, como te é habitual. Quando nos despedimos foi com um abraço e eu podia ficar ali, escondida no perfume do teu casaco, no cheiro que é só teu. Mas há limites e, em plena Praça Camões, foste para um lado e eu para outro. A razão do teu telefonema? Quando perguntei, riste e disseste a palavra saudade, com ternura. E é Natal, não sabes? Ao almoço fizeste perguntas sucessivas sobre a fundação e o meu trabalho e, já depois do abraço final, já virado na direcção oposta à minha, tu gritaste Olha que te vou fazer uma encomenda de trabalho enorme. Prepara-te. E eu só gosto de ferro. Ferro. Tu que amas a minha instalação, o meu jardim imperfeito, achaste que me podias atemorizar com um material. O ferro é meu amigo, ainda estive para dizer em voz alta, mas não o fiz. O trânsito estava caótico e a Mia à minha espera. De repente percebi que Lisboa já não era a minha cidade. Podemos amar uma cidade ao ponto de a sentirmos como alguém da família. Lisboa sempre foi o meu espaço, apesar disso, naquele momento, senti-me estrangeira. O que pretendia era afastar-me de ti. Anos volvidos estava lá tudo, novamente: a mesma imagem dos dois, o teu sorriso ao canto da boca, a forma como fumas, o teu vocabulário peculiar e a minha vontade de te dar a mão. Repreendi-me por isso e, como forma de castigo, bani-me da cidade. Da minha cidade. 5. finalle Passaram-se dois anos. A Europa já não era o meu chão. O meu pai morreu de forma súbita e a minha mãe, ao telefone, disse Não venhas. Vem no Natal. Vou precisar de ti no Natal. Obedeci. A Mia viu as fotografias do avô e perguntou numa miscelânea de americano com português se eu estava muito triste. Respondi que sim e que não. A morte faz parte da vida. Ela deu-me um abraço e ligou à melhor amiga. Mãe, a Hailey pode dormir cá hoje? A vida, como o planeta, gira. Nada interfere e tudo pode enlouquecer-nos. Comecei uma nova série de esculturas, uma encomenda e, quando reservava as passagens para Lisboa vi-te passar. Tu, em Spring Street. Um sobretudo cor de camelo, uma mulher pela mão, alguém que mirava as lojas com uma avidez ou com o que me pareceu avidez. Nova Iorque estava engalanada para as festas. Mia e eu tínhamos celebrado o Hanuka com uns amigos judeus. Disso saberás pouco. Despachei a mulher da agência de viagens, a mesma que continua a querer que eu faça tudo on-line por mais que lhe explique que sou uma info excluída. Segui os vossos passos, arrastando a minha filha que não entendia o meu objectivo e, já em Prince Street, chamei-te, alto, pelo nome. Vi o teu corpo, esses movimentos que me assaltam ainda, sempre que me deixo ir por aí, sorri e desatei a correr para o outro lado da rua, eu, alguém com pressa mais uma miúda com as unhas pintadas de azul. Tu, perplexo, parado e eu a gritar Feliz Natal! Não sei se respondeste. Pouco importa. Soube então que nunca mais te veria. Tal como deixei de ouvir Mahler, deixei-te morrer dentro de mim nesses dias antes do Natal. A Mia perguntou Quem é? E eu respondi, sorrindo É alguém que podia ser o teu pai. Ela sorriu e apertou-me a mão. E eu lembrei-me do tal Pai Natal, há muito tempo É dezembro, temos de ser melhores em dezembro. É dezembro, temos de ser melhores em dezembro...

Ia agora começar a escrever, palavras só para ti. Agora mesmo. Desisti por fraqueza, compreenderás mais tarde, estou certa. Corro como uma cega nas palavras e não tenho pressa de chegar seja onde for. Não há palavras para ti. Secaram-se na angústia de me explicar. Talvez seja melhor começar pelo início. O início é sempre um momento de verdade, algo louco, imprevisto. Como um fado que se canta sem se saber a letra, na comoção de reconhecer algo sem, ao mesmo tempo, conseguir dizer o poema e a sua intenção inteira. Todas as histórias de amor, como as cartas, já se sabe, têm uma dimensão ridícula, sobretudo quando terminam. O fim do amor é dispensável e não tem possibilidade de se alcançar no segundo exacto da sua morte. É uma ideia errada, repara, eu sei exactamente quando nós morremos. É uma imagem fixa que guardo. Não como uma fotografia, porque há o som e o estremecer do coração, coisas de mulher, dirás. Seja. O final nunca é só triste, é o princípio de uma luta e isso eu não sabia. O destino é ou não é o que se quer? Pouco importa. Passaram-se anos desde que o amor nos morreu. Se não foram anos, parecem-me e isso, o peso do tempo, a lentidão mortal de não conseguir sair daqui, torna-me prisioneira disto e, logo, de ti. Fiquei à espera de algo; de uma viragem do vento, um encontro mais feliz. O encanto que existia não o encontro agora. Seja onde for. Vejo-me a minguar, como diria a minha avó. Já te contei da minha avó? Talvez não. Não tivemos tempo para tudo, afinal. Era mestre na arte de soprar o vidro, tarefa nada habitual nas mulheres, um ofício de homens que herdou do marido. Ainda me lembro das coisas extraordinárias que saíam desse sopro controlado e sempre invejei a delicadeza do gesto. Não queres ouvir nada disto? Eu sei. Vamos voltar ao início, como prometi.

Trazias um livro de poemas contigo. Era uma ousadia quase feminina, se pensares. Sim, tinhas ainda um molho de jornais, incluindo os desportivos. Perguntei se era literatura de fim de semana e tu sorriste com o rosto todo. O amor começou ali. Colegas são as putas, dizias tu. Portanto, éramos parceiros de amarguras num open space sofisticado, empresa moderna com cestos de fruta para os funcionários. Isto basta como definição porque o que fazíamos, uma vida inteira, dia atrás de dia, pouco nos importava. Pelo menos era o que eu achava então. O emprego pagava os iogurtes e cumpria a função social à qual estamos obrigados. Só isso. Estava longe de suspeitar que querias mais e que tinhas em ti a ambição terrível de subir, subir até ao pódio do poder que pode desfazer as cores da realidade. O poder pode ser um vício, sei-o agora. Vi-te em conversas formais, repletas de indirectas e subserviência, conversas que te levaram ao clube dos homens, directo a assessor da administração e, depois a director geral. Foram anos, dirás, já sei que sim. Porquê invocar este passado e ser sincera? Porque no começo é importante dizer tudo e no fim é urgente.

Uma noite, sozinhos, experimentámos a alcatifa do gabinete do chefe. Olhei-te nos olhos, directamente para dentro de ti, invadindo o teu corpo sem pudor ou vergonha, disposta a tudo por estar ali, no momento, encaixada em ti, na perfeição; sentindo uma pertença que nunca antes me chegara. Não, não era a minha primeira vez, até nos rimos disso, uma mulher com quarenta anos, mesmo que recatada, tem aventuras ou, no mínimo, um passado erótico. Não inquiri sobre o teu por o conseguir adivinhar sem esforço. Era público. Podia contar, pelo menos, doze relacionamentos que nunca escondeste. Por estares ali, no mar azul da alcatifa, pensei que seria o início de uma relação. Ingenuidade? Não. Quando se ama crê-se. É mesmo um princípio fundamental, acreditar que somos no outro o tudo e o nada. Pode ser efémero e ilusório, já sei, pode até durar uma noite, mas é assim. Nada disto te importa agora. Eu sei. Vivo eu aqui nesta redoma de memórias inúteis apenas por vazio. Toda eu estou oca, o meu corpo mirra, as peles secas e o cabelo sem brilho. Uma velha. De certa forma. Ser velha antes de ser velha é um costume meu. Desde miúda. Porque me apaixono sempre até ao fim, com tudo o que tenho e, quando me vejo só, não me encontro, pareço um daqueles bonecos dos desenhos animados, há rastos de mim que ficam pelo caminho, como riscos de todas as cores. É uma pena, dizem-me. As mulheres devem, leio por aí, ser independentes e autónomas. Dá-me vontade de rir, sabes? Por ter sido educada para casar e ter filhos, para me organizar sempre em função de uma relação. Não ter alguém na nossa vida é uma diminuição do nosso papel no mundo. O amor agora quer-se rápido e eu entendi isso no dia seguinte, quando chegaste com o livro de poesia e os desportivos, sorriso aberto. Só faltou chamares-me colega. Puta senti-me de imediato. Era óbvio que a noite passada nunca acontecera. O que terás dito à tua mulher? Consigo imaginar com facilidade, sabes? Oiço-te mentir há anos, ao telefone, coisas de nada, mas que me espantam sempre porque tens o mesmo à vontade com a falsidade que pretendes ter com a verdade das coisas da tua vida. Repara bem, as coisas da tua vida. Sei quase todas. Fui coleccionando pedaços de ti e quando me entreguei a ti, naquela noite, sabia que a ruína tinha começado. Sou um prédio a desmoronar-se, estás a ouvir? Com o teu livro de poesia debaixo do braço, as tuas graças de sabedoria e cultura de algibeira, acabaste por me rodear das mentiras que eu já conhecia. Escolhi não pensar. Aceitei o teu sorriso aberto. Durante essa semana esperei um gesto. Um almoço, um pedido, uma graça. Nada saía de ti, estavas completamente vazio. E antes que o mesmo acontecesse comigo tomei a decisão de te humilhar, ali mesmo, no nosso local de trabalho, este que tanto estimas e onde pontificas com alguma importância. Acima de ti há apenas três homens. Decidi que se não me dissesses nada um destes seria contemplado com um dos meus sorrisos, um vestido decotado e todo o descaramento que nunca tive. À tua frente, claro, tudo isto se passaria à tua frente para que desses valor, para que te doesse. Repara que eu, ingénua, ainda acreditava na dor, na possibilidade de te provocar uma dor tão funda que todo o teu corpo se ressentiria. Ficarias com menos uns centímetros. Tudo isto se passava na minha cabeça enquanto te via, na sala de reuniões, toda em vidro, a dirigir uma reunião, ou então ao telemóvel sorrindo, falando com outra pessoa junto à mesa do café. Coisas destas. Para pôr fim ao meu teatrinho pessoal chegaste dengoso e a pergunta foi: “Queres tu almoçar com este fariseu?” Todos os cenários desfaleceram. Eram de manteiga, como um molho de cobertura de bolo. A maldade desapareceu. O meu decote no sítio certo, a tua perna contra a minha debaixo da mesa do restaurante. Tentei, juro-te, não fazer muitas perguntas. Fizeste então as despesas da conversa. Fiquei a saber que gostas de levar a tua filha ao parque. Que fazes compras todos os dias por acreditares que os produtos frescos são melhores do que os embalados. E ainda que a tua mulher estava a redecorar a casa, tendo mandado pintar o primeiro andar todo. Estranhei a menção a um andar, mas muito rápido, tu esclareceste que vives numa vivenda geminada perto do rio. Calei a minha perplexidade. Onde é que estava o homem que me olhara com um amor infinito na noite em que os anjos desceram sobre mim? A conversa era casual. Apenas uma forma de colocar tudo no sítio certo. Na verdade, o almoço era um recado: não estou disponível, não estragues isto, sê uma boa menina. Ora, ser uma boa menina está para lá das minhas capacidades e, sinceramente, não tenho idade. Fiquei a remoer nas tuas palavras, a ver se encontrava sub-textos a que me agarrar, pequenas deixas que algumas entoações podem transportar. Afastei as fantasias de forma pragmática. Um dos nossos superiores hierárquicos entrou no restaurante. Tu ficaste atrapalhado, cumprimentaste, eu calada. E já estavas a pedir a conta, arrependido, quem sabe. Uma vez na rua andámos os três quarteirões até ao emprego sem dizer nada. O amor traz muito lixo. O silêncio é eloquente. Já sei. Deixei-te subir no elevador sozinho, fiquei para trás a ver uma coisa na mala, a fingir que lia uma mensagem no telemóvel. Fiz-te um sinal com a mão e tu foste. Sim, senti-me uma puta outra vez. É um sentimento recorrente. Afinal, perguntarás, o que é esperava, o que é que queria de ti? Um pouco de amor? Soa até ridículo. Nunca pensei que divorciarias por mim, que abandonarias o teu castelo familiar, que abdicarias da paternidade. Ainda não percebi quando é que a paternidade passou a ser um porta-estandarte na vida dos homens. As mães são o que são. Os novos pais, para ser honesta, são muito aborrecidos. Não por fazerem ou por tentarem, mas por se compararem às mães. De repente, os homens não podem viver sem os filhos. Podem viver como tu vives, numa relação estragada, cheia de bolor e musgo, isso não importa, porque o amor dos filhos é superior. Desde quando? E onde estão as loucuras que se fazem por amor? Atormentada por estas interrogações mesquinhas, sentindo-me mal e má, em simultâneo, voltei ao dia-a-dia. Tu passavas e dizias bom-dia, o tal sorriso aberto. Duas semanas depois de termos feito amor, uma semana depois de termos almoçado e teres anunciado que és um homem casado e homens casados não dormem em camas alheias, apenas em tapetes de gabinetes obscuros, mas o recato da casa é indispensável, setenta e duas horas depois de ter pensando e repensado a minha vida, decidi matar-te. Por isso te escrevo, compreendes. Porque matar-te apenas não me chega, tenho de contar toda a história para que faça sentido, para que seja conhecida e falada. Passarás a ser uma lenda da mediocridade masculina. Não achas graça? Claro que não, tu até lês poesia e levas a tua filha ao parque, tendo o cuidado de accionar o modo silencioso do teu telemóvel. Nada perturba o pai e a filha, olhem que bonito. Sim, a ironia talvez não seja o meu forte. Já não peço desculpa, apesar de tudo. Cresci um pouco com tudo isto. Deve ser a idade ou a ilusão do tempo, as camadas de horas em que pensei em ti, concentrada em ti, moldando tudo ao teu nome e ao teu corpo para descobrir que, afinal, a tua entrega fora apenas um modo geral de actuar, nada de novo, automático e masculino, indolor. Podes ler poesia. Não sabes nada das mulheres. Matar-te é bastante mais fácil do que imaginas. A morte começa na colecção das tuas mentiras, das atrocidades que, diariamente, cometes sem qualquer pudor. Uma palavra aqui, um email ali. E eu, qual espião profissional, recolho tudo. O teu forte são as contas, não é? Tens a responsabilidade do relatório e contas, do balancete. Tabelas e quadros são a tua especialidade. Não os entendia, agora consigo desvendar-lhes todos os segredos. E aqui começa a tua morte. Sei de onde saiu o dinheiro do projecto brasileiro. Sei para onde foi. Almocei com o fornecedor a quem pedes luvas e fiz uma lista de mais oito que, certamente, perante um decote em condições tornarão a minha missão tão mais simples. Uma mulher faz o que pode, compreendes? Posso ser apenas uma funcionária, sim, um número na folha de salários, mas nunca me faltaram os neurónios; de certa forma a ideia de vingança aguça os neurónios e estes fervilham de ideias. Já te disse o que vou fazer? Ah, espero mais um pouco. Deixa-me contar a história da tua mulher, porque tem graça, vá lá. Sim, a tua mulherzinha que redecorou o castelo, paredes cor de alfazema, cortinados com forro duplo para evitar os raios solares, a tua mulherzinha com os cabelos pintados de loiro, a catrapiscar o rapaz da recepção, com a mala Louis Vuitton, de imitação, comprada na feira, claro, a dizer que é a tua mulher e que vem fazer uma surpresa. Pois eu, muito cândida, apresento-me, sou tua colega, sei exactamente onde estás, porque não me acompanha. A tua mulherzinha no elevador, ajeitando o cabelo, verificando se o mostrador do relógio está no sítio certo, centrado no pulso vagamente papudo, a espreitar os meus sapatos, a minha cor de unhas nos pés pequenos. Sim, os meus pés pequenos que te fazem sofrer. Pobrezinho. Levo a tua mulher pelo open space como quem leva o Óscar para casa, ela é a minha bonequinha de estimação e, quando chego à porta do teu gabinete, com o meu melhor sorriso, abro sem bater e vejo-te branco a tentar fazer desaparecer o ecrã do computador. Sim, eu vi, não te preocupes, já recolhi o histórico do teu computador, sei de todos os teus sites pornográficos. Confesso que a minha preferência vai para a encomenda de uma pérola cinematográfica com o título: bocas gulosas. Muito educativo. Poético. A tua mulherzinha agradece-me e eu saio disparada para o meu sítio. Tu morreste ali, um bocadinho, mas não o suficiente. Por isso te digo que será pior. Juntei as papeladas que consegui, todos os teus esquemas, as pastas que tens num servidor supostamente secreto, as contas e as saídas de dinheiro (fiz-me passar por tua mulher e falei com o teu gerente de conta, não sabes? Pois é, a tua password para tudo é o nome da tua filha. Se ela soubesse. Que não saberá nada, tem agora cinco anos, não se recordará de ti, vais ver. O tempo faz milagres). Agora que tenho tudo isto em meu poder só me resta uma solução. Expor-te que é o equivalente a matar-te e depois, desculpa o mau jeito, ficar com o teu lugar. Estás preparado? Claro que não, eu compreendo. Tens o teu livro de poesia e os desportivos debaixo do braço, é sexta-feira, tens pressa de sair. Eu subirei dois pisos, até à administração e não será a tua cabeça numa bandeja, qual Salomé, nada disso, mas será um momento delicioso de poder e só isso me bastará para terminar este amor. Sim, o amor quando chega ao desprezo já não vale, pode ser amachucado, rasgado e até esquecido. Assim, amor, esquece-me, esquece-me hoje que eu já não sei quem és.

...

O meu nome é Joey Luft. Dizem-me que Luft, em alemão, quer dizer ar. Pode ser que sim. Nunca me preocupei com isso. O mundo, felizmente, nunca se preocupou em saber de mim. Já não se pode dizer o mesmo de uma das minhas irmãs. São escolhas que se fazem. A minha irmã chama-se Lorna Luft. A outra tem um apelido mais sonante. Para o mundo o nome da minha segunda irmã, em estrelas, com as luzes da ribalta, em posters e capas de disco é Lizza Minnelli. Sim, isto quer então dizer que sou filho de Judy Garland, a rapariga dos sapatos vermelhos na estrada amarela à procura de Oz, longe do Kansas, longe de casa. O filme, glorificado até hoje, é uma boa metáfora para a vida da minha mãe que morreu, de overdose (para quê disfarçar e mentir?) aos quarenta e sete anos de idade. Eu era muito pequeno. As pessoas tinham a mania de me cantar When a star is born

They possess a gift or two

One of them is this

They have the power to make a wish come true

When you wish upon a star

Makes no difference who you are

Anything your heart desires will come to you

If your heart is in your dream

No request is too extreme

When you wish upon a star

As dreamers do

Fate is kind

She brings to those who love

The sweet fulfillment of their secret longing

Like a bolt out of the blue

Fate steps in and sees you through

When you wish upon a star

Your dreams come true

When you wish upon a star

Makes no difference who you are

Anything your heart desires will come to you

If your heart is in your dream

No request is too extreme

When you wish upon a star

As dreamers do

Fate is kind

She brings to those who love

The sweet fulfillment of their secret longing

Like a bolt out of the blue

Fate steps in and sees you through

When you wish upon a star

Your dreams come true E, durante muito tempo, eu deixei que a canção fizesse parte de mim, como faz parte do imaginário colectivo de tantas gerações já. Não queria lutar contra a minha mãe e, por outro lado, saber que a letra foi escrita por ela dava-me uma certa tranquilidade. Hoje não a posso ouvir, confesso. A minha irmã, a Lizza, canta-a. Ainda agora, imagine-se. Sobra-lhe um fio de voz ou, como diz com a graça de sempre, há um engenheiro de som com um programa que faz milagres e ninguém desafina. A coisa das fífias foi-se, morreu com a tecnologia. Lorna diz que qualquer um pode ser cantor. Não creio que seja verdade. Sempre existiu alguma competição entre as duas e eu faço por ignorar. Todos sabem quem é Lizza Minnelli, ninguém se lembra de uma pobre e fraca actriz chamada Lorna Luft, certo? E não se pode dizer que a minha irmã não se tenha esforçado. Vejam na wikipédia, tenho a certeza que foi ela mesma quem escreveu aquela página, apesar disso... vale a pena espreitar. Triste é a fotografia: loira, o cabelo curto e tão longe, tão longe da imagem da nossa mãe. A determinada altura, parecia que o sucesso estava numa parceria com Lizza. Não teve o resultado esperado. Sempre ouvi dizer que negócios e família são bons quando estão distantes. Lizza é mais parecida com a nossa mãe. Os traços do rosto, a voz, a forma de colocar as mãos, tudo nela mostra os genes de Judy Garland. Eu oiço-a. E vejo a vida dela com o mesmo receio com que li os livros e notícias sobre a minha mãe. O mundo é cruel. É a conclusão a que chego e, se os seus sonhos tivessem ficado no ar, como o meu apelido, talvez o destino fosse mais carinhoso. Era tudo o que ela queria? Sim. Isso e a fama. Nunca esquecer essa pequena palavra que, pensa-se, dá poder. A fama inebria, faz com que possamos sair da nossa pele, transfigura-nos. A minha mãe viveu presa numa vida de espectáculos, sempre com o olhar mais triste de todos, mesmo nos filmes, mesmo a fazer de qualquer coisa. Sim, porque a minha mãe fazia qualquer coisa. Interpretar estava-lhe no sangue, cantar era natural e tinha estudado dança. Estava, digamos, formatada para o mundo do espectáculo, como se fosse uma espécie de destino dramático antecipadamente infeliz. A minha mãe casou-se cinco vezes, divorciou-se quatro – Lorna e eu somos produto do terceiro casamento, acho eu, perco-me nas contas - e a brincadeira é dizer que não viveu tempo suficiente para entregar os papéis para uma quinta separação. Ela esperava tudo do amor. O amor não esperava nada dela. Os homens sugavam-lhe a alma. Os produtores, realizadores, guionistas, músicos, todos os que a seguiam, não a tratavam como uma diva. Nada disso. Estava gorda. Tinha de aprender a falar melhor. Tinha de ser assim ou assado, como fosse, mas nunca como era. Era urgente ser outra. E a minha mãe fabricou essa outra que dá pelo nome de Judy Garland e que hoje é um ícone. Ela chamava-se Frances Ethel Gumm. Do momento em que nasceu ao momento em que morreu, com fama e glória, muitos comprimidos e droga, Judy matou Frances que é o mesmo que dizer que matou a minha mãe. Teve ajudas, é certo. Recebeu o seu primeiro Óscar com a sua interpretação no filme “O Feiticeiro de Oz”, um Óscar infantil. E depois foi arrecadando prémios com uma velocidade extrema, sempre com o mesmo sorriso, a agradecer, o corpo inclinado para o lado direito, um sorriso a três quartos. Mas tudo começou antes, a praga estava lançada ela ainda não tinha nascido. Os meus avós eram malta do espectáculo, como se dizia então. Com dois anos e meio, a minha mãe juntou-se às minhas tias para subir ao palco e representar um espectáculo natalício. A minha avó atacava o piano no teatro do marido. As netas eram sensação. E depois a história conta o percurso normal: mudar de cidade, descobrir os mistérios do cinema, ainda os anos trinta do século XX estavam por chegar. Frances Ethel Gumm não era muito atraente e, inspirada por uma canção de Hoagy Carmichael, a minha mãe opta por se transformar em Judy. Há outras versões, já sei, mas prefiro esta e, sinceramente, com a minha idade, posso escolher a que me apetecer. A minha irmã disse a um jornalista qualquer que a nossa mãe escolheu o nome... Já não me recordo qual era a razão. Como dito, pouco importa. I could go on singing Fui coleccionando recortes de jornais e de revistas, tenho imensa tralha acumulada, tralha que não me devolve sequer o cheiro da minha mãe ou a memória dela sem ser infeliz, a cair, quase a cair, a chorar outra vez. Há uma certa tendência para a tragédia nas cantoras e actrizes como ela, disse-me um médico. Em especial quando começam muito novas. Pode ser que sim. Judy Garland assinou contrato com a Metro-Goldwyn-Mayer tinha 13 anos. As belezas da época autora eram Ava Gardner, uma das senhoras Sinatra, Lana Turner, Elisabeth Taylor. Com tanta perfeição, a minha mãe sentia-se uma espécie de patinho feio que nunca se tornaria um cisne e, se formos sinceros, não era uma mulher bonita, era outra coisa, tinha um encanto especial. Gosto de a ouvir cantar You made me love you. A primeira vez que cantou foi numa festa de aniversário de Clark Gable e, mais tarde, num filme olhando para a fotografia dele. Tenho também imensas fotografias com Rooney, mas se formos alinhar todos os actores com quem contracenou nunca mais saímos daqui. Os estúdios, as exigências, os produtores, os filmes, tudo isso lhe roubou a infância, a adolescência e até a idade adulta. Nunca seria ninguém fora daquilo e já não aguentava a pressão, os prémios, os fotógrafos, os elogios da crítica. Tudo junto não lhe davam segurança ou alegria, levavam-na ao oposto, até a tentativas de suicídio, internamentos em instituições especializadas em depressões. De algum modo, a minha mãe e a sua história são o clássico exemplo do que era a vida em Hollywood. Do que ainda é a vida em Hollywood. O mais curioso? No dia em que nasci, a minha mãe estava nomeada para o Óscar de melhor actriz na 27ª edição dos Óscares. Grace Kelly levou a estatueta para casa e depois, presumo, para o Mónaco. A minha mãe, no hospital, dizem que sorriu e, mais tarde, recebeu um telegrama de Groucho Marx dizendo que o facto de ter perdido era “o maior roubo desde Brinks”. Hoje ninguém percebe a piada e eu estou velho e não me apetece contá-la. Estou como a minha mãe esteve em tempos, tenho uma sentença de morte dada pelos médicos, o que alivia de uma certa pressão face à vida, tenho de admitir. Judy Garland, a minha mãe, lutou contra a doença, ainda cantou e desiludiu e encantou novamente. Depois morreu de uma overdose que um médico, porventura um fã, terá classificado como “acidental”. Foram mais de vinte mil pessoas ao funeral. Eu não conseguia respirar. Se há mais histórias? Sim, muitas histórias e muitas outras que a minha irmã Lorna conta no seu livro, incluindo a parte em que diz que a nossa mãe pediu o divórcio alegando que o meu pai era violento. Sobre isso não quero falar... Aliás, se não se importam, desliguem lá as máquinas. Por hoje terminamos. Amanhã podemos gravar outra vez.

publicado por Patrícia Reis às 16:16 link | comentar

Dedicatória: para a minha mãe

Sempre pintei ao som do fado. Não por causa da música, mas pelos poemas, palavras que se casam com uma sabedoria desconhecida. Prefiro os homens no fado; gosto de tentar igualar a fraqueza da minha voz à voz deles. Os homens que cantam fado em Portugal encenam-se menos do que as mulheres, preservam uma certa ingenuidade. As mulheres seguem as pisadas de Amália Rodrigues e, afinal, é por ela que aqui estou. Quarto 113 do Ritz de Lisboa. Subi do deserto melancólico e quase vazio do interior alentejano para imitar a grande diva. Pareceu-me o mais acertado. Vi aquele documentário sobre ela, bem feito, ela já de cabelo aloirado, com rugas, as mãos dançando com unhas pintadas de vermelho... é impossível de pintar, a dança. Seja ela qual for, é secreta e íntima, não se reproduz. Vi, ao longo da vida, muitas fotografias de bailarinos. Não mostram a essência do que se faz. Ficamos presos na ideia dos músculos, daquele corpo igual ao nosso, mas que é que é diferente. Da delicadeza de movimentos. Ir mais longe. Fazer o impossível. Nunca pintei a dança. Pinto mulheres e homens, pinto a terra e a desolação. Os críticos fazem-me elogios. Não me comovem. Não consigo encher-me de mim. Amália, agitando as mãos, diz, no tal documentário, que nunca foi feliz, apesar de tudo o que Deus lhe deu. A mim, Deus deu-me a minha mãe, ela que trabalhou e trabalha para nos obrigar a fazer o nosso caminho.

Trabalha, Maria, trabalha, que vais lá chegar. Cada um tem o seu caminho, terás de construir o teu.

Quando lhe disse que queria seguir Artes, a minha mãe nem pestanejou, arrastou todas as suas posses até Lisboa. Eu tinha quinze anos. Fiquei num quarto alugado para os lados de Campo de Ourique, casa de uma senhora viúva, americana, uma designer de jóias chamada Nora. Aprendi a amar o fado com Nora e descobri Lisboa pelas mãos de uma estrangeira. Talvez por isso ela me levasse aos sítios aonde os lisboetas não vão e eu a seguisse todos os fins-de-semana. Conheço todos os miradouros da cidade. Sei histórias de santos e de mártires que ninguém ensina na escola. Uma tarde, rumámos até junto à Pascoal de Melo para espreitar a fachada mais estreita da Europa na rua Aquiles Monteverde, número 16. Ficámos ali apenas a ver por uns momentos. Sentámo-nos depois no jardim e Nora reparou nos miúdos e nas brincadeiras. Foi um bom dia.

Durante a semana estava na escola. Desenhava, moldava, experimentava. Não estava numa fase de rebelião, como tantos colegas meus. Não pintei o cabelo de roxo, não me interessava a moda dos punks ou dos outros. As minhas mãos eram o reflexo exacto do que fazia. Todas as noites as limpava – e continuo com esse ritual diário – com cuidado; todos os vestígios de tinta que se imprimem no meu corpo desaparecem por umas horas e depois voltam a instalar-se. A tinta sempre foi a minha moda.

A minha mãe telefonava pelas sete da tarde. Fazíamos o relato completo das actividades. Ouvia-lhe o riso miudinho, a dizer que sim, que era engraçado, que tinha razão sobre qualquer questão banal, e a contar a última asneira do Zé da Chica e outras familiaridades. Todos os meses, eu mandava para casa uma carta com desenhos de Lisboa, de Nora, do Jardim da Parada, da vista do Tejo perto da escola. Ainda hoje, a minha mãe os guarda.

Depois entrei em Belas Artes. Ganhei uma bolsa de estudo. Mantive-me, mesmo assim, com Nora que, por essa altura, já começava a dar sinais de instabilidade. Os papéis inverteram-se. Comecei a colocar “post-it” amarelos pela casa a identificar as coisas:

fogão, desligar limpar a ferida apanhar a roupa do estendal fazer a cama abrir o correio

Coisas assim. Nora seguia-me. Baralhava as coisas, datas e acontecimentos. Guardava, contudo, memórias extraordinárias da América e eu fui tomando notas à minha maneira: desenhava para ela.

Era assim?

Não, não, a rua tinha mais pessoas e ali havia uma loja de antiguidades. Preciosa. Era quase um segredo. Era necessário tocar à companhia para entrarmos. Nunca comprei nada, claro, não havia dinheiro para isso, mas adorava ir ver.

Que idade tinha, Nora?

Uns dezassete? Sim, talvez.

E desenhava jóias com essa idade?

Sim, mas isso foi tudo antes do Bill e do casamento.

Era muito nova.

Nunca somos demasiado novos, Maria. Não estamos é atentos como deveríamos estar. Demoramos a cá chegar.

Depois encostava-se ao cadeirão de orelhas e ficava a ouvir Carlos do Carmo e outros, o Fernando Farinha, o Marceneiro. Por vezes, na cozinha, cantarolava o “Fado do Estudante”, imitando o Vasco Santana, e dizia que era em minha honra. Ríamos do sotaque dela, da pose, da almofada que enfiava debaixo da camisola para se fazer barriguda como o Vasquinho amaldiçoado pela “da franja”.

Quando é cantado e a rigor Bem afinado e com fulgor É belo o Fado, ninguém há quem lhe resista É a canção mais popular, toda a emoção faz-nos vibrar Eis a razão de ser Doutor e ser Fadista

Ríamos com tanta facilidade que não chegámos a perceber que estávamos a viver os melhores momentos de todos. Aprendi tanto com ela, mas isso já disse, não é? Repetir as coisas é uma forma de viver, também isso me ficou de Nora e, decerto, com a minha mãe, sempre a dizer as mesmas coisas.

Tem cuidado contigo. Não te canses. Faz o teu melhor, não precisas de ser a melhor e nunca faças aos outros o que não queres que te façam a ti.

A minha mãe. Nora. A minha orientadora de tese, Inês, uma mulher que dobrava a pedra e o ferro com astúcia e violência, contra o mundo conformado, contra os preconceitos. Só existem mulheres fortes na minha vida, mulheres que tanto admiro, e que agora, quem sabe?, vou desiludir. Mas ainda é cedo. O quarto tem a luz de fim de dia de Lisboa. Ando descalça e os pés pisam a alcatifa mole quase amorosamente. Cheguei ontem. Fui à minha mãe, como se diz, fiquei por lá uns dias e regressei. A casa de Nora já não existe, claro; ela está nos Estados Unidos há uns anos.

Deve ter sido uma coisa assim: a filha telefonou uma vez e achou que Nora estava confusa; telefonou mais vezes e meteu-se num avião. Num americano nasalado, repetidamente invocando o Senhor num “Oh my God”, a filha rica levou a mãe para casa. Nora estava com um princípio de Alzheimer. Eu sabia e não sabia. Fiquei órfã de Nora e das suas histórias. Nesse ano, desenhei tudo o que consegui lembrar-me da vida daquele mulher pequena que me acolheu. Aluguei outro quarto e enfiei tudo o que tinha debaixo da cama alta de ferro preto. Não era uma cama como esta, nada disso; rangia com vida própria. Acabei a escola e uns coleccionadores estimados no meio competitivo das artes compraram as peças que exibi no fim do curso. Fiquei, pareceu-me então, rica. Mandei dinheiro à minha mãe que, diligente, voltou a colocar a mesma quantia na minha conta bancária.

Ó mãe, mas isso era preciso?

É dinheiro do teu trabalho, Maria. Nem penses. Eu estou bem.

Aluguei uma casa e deixei a cama que rangia. Para não correr riscos, coloquei o colchão no chão e, com um certo desprezo, decidi que não precisava de móveis. Ainda que me lembro da cara da minha mãe quando me visitou a primeira vez.

Então, mas tu vives assim? Sem cama, sem cortinas, sem tapetes...

Não preciso de nada disso, basta-me o estirador e boa luz, mãe.

Se tu o dizes.

Não me lembro de uma zanga entre nós. A minha mãe deixa as coisas fluírem, tem essa sabedoria, mesmo agora que já não é nova. Demonstra um certo orgulho no meu percurso, faz recortes de jornais desde que comecei a expor e, quando fui a Madrid pela primeira vez, decidi levá-la comigo: ela com tanto medo de multidões, ela sem perceber o que os espanhóis diziam; parecia um papel de parede, uma mulher na meia-idade a sorrir por causa da filha. Nunca senti tanta ternura por ela como nesse momento. Portugal era um dos países convidados de um certame importante. O escritor alentejano, José Luís Peixoto, um homem bonito ornamentado de tatuagens e piercings, numa noite de jantar e alguma formalidade, disse, maravilhosamente, o poema “Cinco à Mesa”. A minha mãe abandonou a sala a chorar.

Foi a única vez que a vi chorar.

Agora, a imagem dela na soleira da porta — eu a entrar no carro com sacos de bolo podre feito com aguardente e mel, com pão fresco e queijo — está presa a tudo. Não sei o que faço aqui, mãe. Podia ter ido para minha casa. Mas não, está lá o Miguel e, por isso, não posso, seria como ir à guerra. O Ritz era um sonho antigo.

Quando for rica vou dormir para o Ritz.

Disse-o muitas vezes, em tom de brincadeira, sem pensar no que dizia. Imaginava o Ritz como ele é, cheio de histórias e solene, com alcatifa mole no chão dos quartos e camas feitas de forma impecável. Imaginava o Ritz com música de fundo. Amália dizia que tudo lhe aconteceu por acaso, que foi Deus, mas que também foi a Sorte, já que possuía a coragem para reinventar o fado, de cantar rancheras e outras coisas, de aceder aos poetas e músicos, de representar nos filmes por mera intuição. Ela, a quem nunca ensinaram nada. Eu não posso dizer o mesmo. Talvez tenha uma espécie de talento que me leva ao carvão ou ao óleo; sim, posso ter isso, todavia sou um elo de esforços, pessoas que fizeram caminho uma vida inteira para eu cá chegar. Não tenho um tumor na cabeça nem noutro sítio, tenho-o no coração. Amália fugiu para Nova Iorque para se matar. Era o medo da traição do corpo, desse diagnóstico infeliz. Enfiou-se num hotel, não sei qual, e deduzo que tenha bebido e visto televisão, até que foi salva por Fred Astaire. É ela quem o afirma. Começou a percorrer as lojas todas atrás dos filmes de Fred Astaire. Ficava o dia inteiro sentada a vê-lo dançar. Dançar com Judy Garland, com Audrey Hepburn, com Cid Charisse, com Gene Kelly, com Ginger Rogers, com Bing Crosby. Consigo imaginá-la com facilidade e essa imaginação leva-me ao desenho. Tenho Lisboa aos meus pés, literalmente, e o carvão mostra-me os passos elegantes de Fred Astaire a cantar “Puttin’ On the Ritz”. Parece-me justo. Já disse que não é possível desenhar a dança? A dança tem uma teimosia, digamos, que não se captura. Trouxe comigo um dos meus filmes preferidos, “Blues Skies” ou “Romance Inacabado” em boa tradução portuguesa. Tenciono vê-lo no computador daqui a pouco. Enquanto isso, penso. Penso e desenho e oiço a Amália na minha cabeça, a “Gaivota”, o “Grito”, a “Estranha Forma de Vida”. Sei os poemas de cor. Sei-os por causa de Nora, ela que os dizia num português emprestado, sibilante e arrastado. Por esta altura, deve estar num lar e não sei se me reconheceria. Por vezes, ligo à Helen, a filha. Ela começa logo a falar de forma estridente e pouco ou nada diz da mãe.

She’s fine, dear. It’s so nice of you to care, but there’s nothing we can do.

Irrita-me a falta de tristeza de Helen. Talvez eu a tenho pelas duas. Não sei. Consigo ser injusta quando não estou bem. Quando sou assolada por estes pensamentos. Amália foi para Nova Iorque para se matar. Queria que o tumor desaparecesse sem dramatismo. Estava decidida a isso. Não contava, porém, com o poder hipnotizante de Fred Astaire. Um homem magro, com pouca voz, para quem todos os grandes compositores americanos escreveram.

Now, if you're blue And you don't know where to go to Why don't you go where fashion sits Puttin' on the Ritz Different types who wear a daycoat Pants with stripes and cutaway coat Perfect fits Puttin' on the Ritz

Deixo o bloco em cima da secretária, junto à jarra com flores, corro os reposteiros pesados e deixo-me ficar na cama a fazer de estrela do mar. O corpo tenso, os braços e as pernas abertos. Tenho quase quarenta anos agora. O Miguel está à espera de explicações. É um homem que aprecia a troca de palavras, pode até ser violento, mas sobre isso não falarei. Não sei se consigo voltar para casa. A minha mãe, sempre na soleira da porta, a gritar para dentro do carro em andamento:

A tua cama está sempre feita de lavado, querida.

Não tenho forças, mãe. Já não sei o caminho das coisas certas. Não consigo falar do Miguel, é apenas um homem na minha vida. Não me dá paz, nem luz, não se confunde nas minhas tintas. Julga-me e condena-me. Diz coisas absurdas. Odeia o cheiro da aguarrás, dos pincéis, das telas. Se me soubesse aqui, bem quente no Ritz, escondida do mundo, rir-se-ia com desdém. Tem um absoluto desprezo pelo luxo. Vou ficar aqui dentro deste quarto, como num aquário, e tentar dormir. Invocarei a senhora dona Amália, pedir-lhe-ei que me assalte os sonhos e apareça a dançar com Fred Astaire aqui mesmo. Terei um vestido negro e colocarei umas pérolas para os acompanhar na dança majestosa, alcançarei uma graça que nunca possuí. Serei uma personagem do Ritz. Vou entrar num filme dentro do meu sonho. Depois disso, talvez, possa voltar para casa. Mandarei para o escritório do Miguel um desenho a servir de fim de conversa e peço aos anjos para se colocarem na direcção do campo, do Alentejo mais calado e profundo. Pode ser que aí seja, por fim, feliz. Ou, como na canção de Amália, sem secar as minhas lágrimas, vá adormecer cantando baixinho

Cheia de penas me deito E com mais penas me levanto Já me ficou no meu peito O jeito de te querer tanto. Nota: Amália Rodrigues morreu há dez anos, a 6 de Outubro de 1999. A expressão "puttin’ on the Ritz," significa “vestir de forma sofisticada” e teve como inspiração o Ritz Hotel em Nova Iorque. Fred Astaire cantou e dançou esta música de Irving Berlin, escrita em 1929, no filme “Romance Inacabado” de 1946.

Roga-se a quem... No areal o sol criava as ilusões próprias da reverberação, ondas de calor provocavam pequenos enganos, atiçando a imaginação de uns, confundindo outros. Adultos e crianças saíam da agua e subiam o declive de areia molhada, pedras e restos de conchas, franzindo o sobrolho, em estado de vigia, em busca do guarda sol, da toalha, da família. No mar, exibindo efeitos de uma vaidade aquática, uma mota de água. Um pouco mais à frente uma gaivota de pedais com um escorrega incorporado. À beira mar dois homens observavam um grupo de crianças. Uma mãe construía uma pista para uma perigosa e concorrida competição de caricas, com cuidado, a mão alisando a areia, as crianças à espera com as caricas na mão. Um bebé de fralda molhava os pés e fugia, rápido, rindo alto. O cenário do verão concentrava-se naqueles metros quadrados de famílias, de sombrinhas às riscas, coloridas e em apetrechos de época, bóias, baldes, raquetes e bolas para desafiar os adultos ao fim do dia. Não havia, porém, uma algaraviada descontrolada, a praia, generosa, abrigava cada história com extensão, cada um no seu sítio. Não havia uma concentração de meter medo ou a sensação de aperto. As pessoas deitavam-se ao sol e conseguiam sentir-se sozinhas, sozinhas à espera de ficar secas e brilhantes, bronzeadas e bem dispostas. Umas liam em cadeiras coloridas, outras dormiam simplesmente. Era o fim do verão e esse fim, temido por uns, ansiado por outros, podia ser o pretexto para mais uma ida ao mar, uma bola de berlim com creme, uma salada de tomate ao fim do dia temperada com cerveja ou vinho branco. E, claro, havia sempre espaço para gelados. Gelados de chocolate, de morango, com bolacha, em cone, em misturas de sabores. O Verão permitia tudo isso e o passar das horas era quase indiferente. De repente, inesperado, um altifalante gritou para o areal Perdeu-se um menino de cinco anos. Chama-se Carlos, tem um fato de banho castanho com flores. Roga-se a quem o encontrar que se dirija de imediato ao banhista Por momentos, a praia agitou-se, as pessoas levantaram as cabeças, verificaram a informação, repetiram-na. Uma mãe disse a quatro jovens Sigam para aquele lado, procurem o menino. Uma mulher, mergulhada no seu livro de capa amarela, tentou manter-se serena sem qualquer sucesso. Levantou-se e encarou o resto da praia. De certeza que os pais estavam desesperados, de certeza que procuravam o Carlos de cinco anos com afinco. Pensou nisto por segundos e depois começou a andar. Não tinha um destino exacto, seguiu pela parte de cima da praia. Percebeu que o marido a seguia. Não trocaram uma palavra. A mulher pensava na criança perdida, imaginava-lhe o rosto, o cabelo escuro, o sorriso traquina. Cinco anos. Um princípio de vida. O marido disse que o menino podia ter saído da praia, ter atravessado a rua. Nesse instante, a voz repetiu Perdeu-se um menino de cinco anos. Chama-se Carlos, tem um fato de banho castanho com flores. Roga-se a quem o encontrar que se dirija de imediato ao banhista. A mulher estranhou serem as mesmas palavras, a mesma entoação, como se fosse um modelo qualquer escrito há muito tempo, como se não tivesse um nível de importância que levasse à emoção. Suspirou. Viu os seus filhos, seguros, a regressar de mais um banho. Mirou-os com olhos que não eram seus. Tremeu com o crescimento que a ultrapassava, com a autonomia. Ainda se recordava de os ter aos cinco anos, aos seis... por aí. Bebés pequenos de sorrisos mágicos e pés comestíveis. As saudades tomaram conta de si, sentiu as lágrimas nos olhos. Uma criança é um milagre que não sabemos apreciar quando devemos. Estamos demasiado ocupados com as coisas do dia-a-dia para nos enternecermos com a fragilidade da vida que está preste a entrar no mundo para nos dizer, para nos ensinar algo mais. Os filhos da mulher correram para as toalhas, os cabelos molhados, a pele morena. Queria tanto que voltassem para trás. Queria ser ela a rir-se do bebé de fralda que molhava os pés desafiando as ondas. Ela a carregar uma mochila extra com comida passada, chupetas e fraldas, mudas de roupa e aconchegos, brinquedos em plástico, formas para desenhar estrelas na areia, baldes para construir os mais belos castelos. O marido estacou e concluiu que na praia havia muita gente, não fazia sentido procurar o Carlos que não conheciam. A mulher olhou para o mar e ele disse Não está no mar, está aí algures a ver alguma coisa, distraído com uma coisa maravilhosa. Ela assentiu e começou o caminho de volta para debaixo da sombrinha laranja. Passou por duas senhoras de idade que conversaram em espanhol a uma velocidade tal que não permitia qualquer compreensão. Sentiu-se estrangeira. O marido instalou-se na sua cadeira de praia, livro na mão. Ela hesitou ainda, abriu a geleira, bebeu água e o filho mais novo pediu uma sandes de fiambre. Pediu como deve ser, acrescentando “se faz favor” e, no fim, agradecendo. A mulher sorriu. O mais novo é sempre o protegido. A mulher sabia disso desde sempre, era a irmã mais velha de um rapaz que, ainda hoje, todos protegiam. Sentira na pele essa diferença e não sofria com isso. Tudo o que é pequeno tem mais graça, dizia-lhe a mãe. E ela concordava e ainda hoje concorda. O Carlos, com cinco anos, será decerto mais engraçado que os seu filhos, apenas por estar ali, nos cinco anos. A pequenez e a respectiva graça não são sobre o amor. O amor dos filhos é incontornável às coisas do crescimento. Ter filhos é ter o coração fora do corpo. Ela também sabia disso. Sentou-se afastando outros sonhos e necessidades. Queria regressar ao livro e esquecer-se de tudo por momentos. Começou a ler. E, como no princípio da tarde, a voz anunciou Avisam-se os senhores banhistas que o menino já foi encontrado e está com os seus pais. A praia inteira desatou a bater palmas. A mulher sentiu as lágrimas a escorreu, escondidas nos óculos escuros. O marido não deu conta, embrulhado na leitura. A praia voltou à sua rotina. O tempo do amor não permite partilhar tudo, sobretudo a dor. A mulher também sabia isso há muito tempo.

publicado por Patrícia Reis às 17:26 link | comentar

A mulher disse que com um esforço tudo era possível. O rapaz não acreditou. A mulher insistiu e depois calou-se. O rapaz perguntou Não dizes mais nada? Não. Porquê? Há coisas que são impossíveis de explicar, portanto faz o que precisas de fazer, se te magoares, cá estou.

Estás sempre. Sempre.

As duas mulheres fumam sem pressa e bebem o vinho que talvez nenhuma devesse beber. Falam de coisas delas, só delas. Ninguém sabe, ninguém suspeita, é como se fossem uma da outra sem previsão de que tal fosse possível, possível apesar do tempo, das famílias, da vida. A vida que corre tão depressa e tão lenta. As duas mulheres não existem. E essa percepção é real. Elas sabem. Por isso, falam e bebem e ninguém as vê.

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