O ALFAIATE LISBOETA

15-11-2019
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Acho que, inicialmente, aquilo
que me serviu de motivação para escrever o que quer que fosse que não houvesse
sido já referido, teve que ver com o seguinte: saio à noite há cerca de 20 anos
e quase sempre sem tocar em álcool. Mas mais que partilhar qualquer
"maratona de sobriedade pela noite lisboeta", acho que falta dizer
meia dúzia de coisas.

Sobre as acusações de racismo

Quase todos os artigos que li
sobre o tema parecem ter sido escritos por pessoas que nunca saíram à noite. A
gestão de clientes levada a cabo à entrada de bares e discotecas (em Portugal e
um pouco por esse mundo fora) é feita segundo critérios de "selecção" que,
chamemos-lhe aquilo que lhes preferirmos chamar, não passa de um termo
socialmente aceite para aquilo que outros apelidariam de "discriminação". Mas
sejamos francos: quando nos deslocamos a um dado espaço esperamos encontrar um
dado ambiente que é definido, mais que por qualquer outra coisa, pela aparência
daqueles que lá estão. Fica complicado levar demasiado a sério acusações de
discriminação quando quase todos aceitámos e promovemos, na medida do nosso próprio
sucesso à porta de uma discoteca, que cada lugar estabelecesse um
ideal-tipo de clientela baseado estritamente na sua aparência. Não posso afirmar categoricamente que a gerência do Urban Beach é muito ou pouco racista e arrisco a dizer que,
em 2017, e até ao seu encerramento, era possível encontrar mais “não brancos”
no Urban do que aqueles que poderia encontrar em 2007 no Kubo ou em 1997 na
Kapital. Por um motivo relativamente óbvio: o Portugal de 2017 é, ainda assim, um lugar
menos racista do que era em 2007, e ainda menos que em 1997. O Observador (que,
justiça lhe seja feita, teve um papel importante em todo este processo)
publicou um artigo cujo título brilhava com a citação de um antigo porteiro do
Urban Beach: “Pretos, é difícil. Ciganos não entram”. Infelizmente, isso não é
motivo suficiente para me sentir no direito de acusar a gerência do Grupo K de
ser, com maior ou menor incidência, aquilo que a maioria da população nacional é:
um tanto ou quanto racista. Porque qualquer coisa parecida com “pretos não sei, ciganos nem pensar” é bastante representativo do que tantos portugueses sentem relativamente àqueles a quem permitem entrar em sua casa ou conviver com os seus filhos. Em caso de dúvida sugiro a consulta do termo "cigano" no nosso dicionário para
moderarmos todos a autoridade moral com que chamamos racista a alguém. Dito isto... A selecção levada a cabo à porta do Urban agrada a quem lá vai. E
ao que parece, vai lá muita gente. Menos de 48 horas depois do vídeo que exibia
aquelas agressões brutais ter sido gravado e pouco mais de 24h depois de ter
sido partilhado um pouco por todo o lado... quantas pessoas estavam no Urban
Beach no momento em que foi encerrado pelas autoridades?

Sobre a conduta dos
seguranças

Uma vez, no Lux, um segurança
disse-me: “Na minha vida pessoal não repito as coisas quatro vezes. Aqui pagam-me para dizer as coisas quatro vezes à mesma pessoa”. Esta
observação diz muito sobre a forma como somos tratados num dado estabelecimento e sobre os motivos pelos quais esse tratamento é mais frio, respeitoso, inflexível ou tolerante. Ela vai ao encontro de
algo muito fácil de se entender: a forma como os seguranças de uma discoteca
(ou se fizerem muita questão... a forma como os funcionários de uma empresa de segurança contratada
por uma dada discoteca) se dirigem aos clientes dessa mesma discoteca é
definida, como é óbvio, pela própria discoteca. Todos sabemos que o álcool, rivalidades parvas, disputas amorosas e outras tantas coisas podem fazer duma pista de dança um lugar tenso. Sabemos também que a maior parte de nós é menos civilizado e paciente depois de beber quatro vodkas ou sete cervejas. E que os seguranças das discotecas (ou se continuarem a fazer questão... das empresas de segurança que trabalham nas discotecas) lidam diariamente com situações complicadas. Por essas e por outras é que existe uma certificação para o exercício das suas funções. Mas sejamos muito claros: o argumento de que a agressividade dos seguranças que estão ao serviço no Urban Beach é responsabilidade da PSG é absolutamente delirante. A administração do Grupo K tem, como qualquer outra agremiação, uma dada cultura organizacional. Dizer que as opções que dela resultam não se traduzem na escolha dos seguranças que lá exercem funções, na mensagem que lhes é transmitida e no tipo de interacção que estes homens promovem com a sua clientela, é a mais profunda manifestação de desonestidade intelectual.

Sobre a Kapital

Não há outra forma de pôr as
coisas. A Kapital foi, durante quase 10 anos, o sítio mais aspiracional da
noite lisboeta. Ainda me lembro da primeira vez que lá entrei. Mas também não
me esqueci da primeira vez que, por culpa de um episódio aparentemente irrelevante, me pareceu que algo de errado se
passava ali. O porteiro, que teria ido até ao interior da discoteca, descia uma escadaria quase vazia quando empurrou um amigo meu porque, tão simples quanto isto, ele se
encontrava na trajectória mais curta da sua descida. Acabei por testemunhar, repetidamente, seguranças a dirigirem-se de forma agressiva aos clientes sem qualquer motivo aparente. Mas sejamos sinceros: não vi nada na Kapital que não tivesse visto também em outros estabelecimentos.

Sobre o Kubo

O Kubo era um espaço junto ao
Rio, a uma caminhada curta do local onde se encontra hoje o Urban Beach.
Basicamente era um conjunto de caixotes justapostos e sobrepostos que, verdade
seja dita, pela sua disposição, decoração e iluminação, faziam um dos espaços
mais bonitos de Lisboa. Mas foi lá que fiquei com a sensação que as noites
passadas em sítios geridos pelo Grupo K podiam ser perigosas. Lembro-me de uma noite ter visto um segurança a empurrar clientes de forma agressiva sem razão aparente. Uma
rapariga, provavelmente pouco habituada a ser atropelada no seu dia-a-dia, reclamou com o funcionário da discoteca. Ele recuou até junto dela e intimidou-a com um
movimento brusco e uma frase que já não sou capaz de recordar. Claro que quando
se vê um segurança dirigir-se a uma mulher desta forma fica-se com a sensação de que ali, algo de grave pode acontecer a um homem. Num outro dia, quando
estava de saída, vi um segurança esmurrar um cliente. Não foi a
primeira vez que assisti a um murro à porta de uma discoteca e cabe-me reconhecer que - entre esses episódios infelizes - a culpa não foi sempre da exclusiva
responsabilidade das equipas de segurança. Mas acho que, numa dada consciência
colectiva, nos habituámos a aceitar estes "azares alheios" com excessiva condescendência.

Sobre o Urban Beach

O Urban Beach acabou por atrair
uma clientela mais jovem que os seus antecessores Kapital e Kubo (o Kremlin
tinha um posicionamento diferente: a música era mais pesada e o ambiente menos
convencional). Isto também se deveu, em boa parte, à afirmação do Lux como
discoteca de referência. Curiosamente, uma das coisas que sempre diferenciou o
Lux de todas as outras discotecas foi a urbanidade com que, de forma geral, o
seu staff trata os clientes. Em rigor, foi talvez a discoteca
onde terei sentido pela primeira vez que os seguranças estavam ali, verdadeiramente e como o nome sugere,
para assegurar a minha segurança (e onde, em 20 anos de visitas assíduas, nunca
vi um murro ou um pontapé). Mas voltando ao Urban: tive a percepção que naquele espaço do Grupo K os seguranças pareciam ser ainda mais agressivos que na
generalidade das discotecas. Uma noite, a propósito duma abordagem completamente desajustada de um segurança, disse ao Gonçalo Rocha que achava que ali se maltratavam os clientes indiscriminadamente. Respondeu-me, meio
sorridente, que talvez eu tivesse preconceitos em relação ao Urban. Torna-se
difícil, alguns anos depois, recordar com precisão os episódios ou comportamentos mais duvidosos. Não tinha chegado a ver ninguém do staff desferir murros ou
pontapés mas, por culpa de algumas reacções, e de uma ou outra
narrativa, sentia que seria apenas uma questão
de tempo. Até que uma noite, o tempo chegou. A narração que se segue é um
excerto exacto (inclusive, com alguns erros de sintaxe) de um e-mail que
enviei, na madrugada do dia 6 de Abril de 2015, à então Vereadora da Educação,
Economia, Inovação e Descentralização, Graça Fonseca (actual Secretária de
Estado Adjunta e da Modernização Administrativa), a propósito de uma deslocação
até ao Urban Beach, no fim-de-semana anterior. Muito mais que qualquer
recriminação da ex-autarca por qualquer hipotética inação
(que não teria como provar e, como tal, não me permito sequer sugerir) este é
um esforço por me reportar aos factos na forma mais exacta que me é possível.
Sem a leitura deste e-mail, guardaria daquela noite pouco mais que recordações vagas. Posso assegurar-vos apenas que, à data que
escrevi este relato, os factos estavam absolutamente claros na minha memória. Desde aí, nunca mais voltei a um espaço do Grupo K.

(...) Quando chegava à entrada
(ainda numa zona exterior ao recinto mas pertencente já, por assim dizer à área
do edifício) estavam duas ou três pessoas (acho que eram dois homens e uma
mulher) a ser expulsos/convidados a sair. Percebi que um dos tipos que estava a
ser posto fora estava bebido e parecia provocar os seguranças (aquela coisa
adolescente do "bate lá então"). 

Aparentemente os seguranças não
ficaram contentes com o desempenho das suas funções (convidando a sair alguém
que supostamente não mereceria ter entrado ou permanecer lá dentro) e foram ao
encontro do tipo (uns 4 ou 5 diria eu). Vi um dos seguranças pontapear o
turista na cabeça - acho que houve dois deles que lhe bateram - e poucos
momentos depois estava um segurança deitado sobre o turista a asfixiá-lo
(sim... isso mesmo.. a asfixiá-lo). Eu eu outro amigo - vendo aquela barbárie -
aproximámos-nos e dissemos aquilo que qualquer duas pessoas com o mais
elementar bom senso deveriam sentar-se tentadas a dizer. Perante os "parem
com isso por favor", "não é necessário", "deixem-no
ir" ou "a vossa função é precisamente evitar situações como
esta" o meu amigo foi insultado e foi ainda ameaçado porque, aparentemente,
algum(ns) segurança(s) pensavam que havia filmado a cena. Frases do género
"vê a minha cara que eu não me esqueço da tua porque se o vídeo é
publicado vais-me ver outra vez", houve ainda outro segurança que lhe
pediu o telemóvel para se certificar que nada tinha sido filmado. Tudo isto num
ambiente de raiva perante esta nossa atitude de censura daquele comportamento
(...)

A preocupação dos seguranças com um vídeo não era fruto da sua capacidade de antecipar o que veio a acontecer dois anos e meio depois. Era apenas uma reacção ao que havia sido publicado duas semanas antes pelo Público: as imagens mostravam um segurança em funções a espancar repetidamente (a dada altura com a colaboração de um outro indivíduo) um homem, aparentemente bêbado e indefeso, na "Rua Cor-de-Rosa", no Cais Sodré. Naquela noite houve
duas coisas que se tornaram claras. A primeira: que os seguranças do Urban
Beach não tinham qualquer problema em aplicar a força extrema quando qualquer dose de força não era já necessária (assumindo que em algum momento, algum tipo de
força tivesse sido justificada). E isto não é uma consideração subjectiva.
Estamos a falar dum turista, claramente alcoolizado, de passada titubeante, que o
casal amigo estava a conseguir afastar da porta do Urban. A segunda: ainda mais
assustadora. O total sentimento de impunidade dos agressores. Aqueles homens
agiram sem contenção, hesitação ou reflexão. Aqueles homens, claramente
treinados, actuaram em grupo contra um indivíduo que parte da população
masculina teria facilidade em derrubar sem a ajuda de outra pessoa. A
impunidade foi tal que, à semelhança das imagens que tivemos o desprazer de ver
esta semana, aqueles homens bateram e insultaram diante de uma plateia, no
(suposto) exercício das suas funções. Havia dezenas de pessoas a assistir. Apenas
um amigo e eu nos insurgimos. Ninguém na fila, em pleno ano de 2015 e nesta tão
cosmopolita Lisboa, perdeu vontade de entrar na discoteca cujos seguranças
acabavam de agredir de forma devastadora, um homem, bêbado e trémulo,
pontapeado e atirado ao chão, prostrado física e psicologicamente, desrespeitado
na sua mais elementar dignidade, vítima duma asfixia desnecessária
e absolutamente bárbara. Naquele noite fui para casa com a sensação que, ao contrário do que disse ontem o advogado de um dos seguranças a
propósito daquele vídeo  "(...) Foi um dia mau... foi um dia mau p'ro meu
cliente. Um dia mau na vida dele. Apenas isso (...)", havia testemunhado apenas "mais uma noite na vida daqueles homens". É por isso que, quando leio todos
os depoimentos disponíveis na internet não só os acho coerentes, como bastante verosímeis. É também por isso que acho que o Eduardo
Cabrita, o recém-nomeado Ministro da Administração Interna (que, sou obrigado a
reconhecer, não poderia ter actuado de forma mais imediata; o mesmo não se
podendo dizer da autarquia e forças policiais), deveria ter algum pudor em dizer que “não faz sentido sequer colocar essa questão” quando lhe
perguntam porque nada havia sido feito depois das (38) queixas existentes.
Talvez se fosse um filho, sobrinho ou neto seu a apanhar pontapés na cabeça o
ministro tivesse expressado uma opinião diferente. Talvez se os agentes da PSP
não parecessem desincentivar (como sugerem alguns depoimentos à imprensa) os
jovens agredidos a apresentar queixa, elas não fossem “apenas” 38. Talvez se a
queixa referente ao episódio retratado no vídeo, tivesse levado menos tempo a ser registada que aquelas imagens a circular pelos telemóveis e computadores de meio Portugal, nos sentíssemos todos em melhores mãos.
Talvez... talvez a gerência do Urban Beach e a administração do Grupo K tenham mesmo alguma responsabilidade nestes sucessivos espancamentos. E talvez o Gonçalo Rocha
tenha razão, talvez eu tenha alguns preconceitos acerca do Urban. Mas não consigo deixar de pensar que... O
único motivo que permite ao Urban Beach continuar a fazer dinheiro com as
mesmas pessoas que parece disposto a maltratar, é a falta de solidariedade e
consciência cívica de todos aqueles que, não tendo levado nunca pontapés na
cara, continuam a ir ali sabendo que, naquela mesma noite e naquele mesmo
lugar, é possível que uma cara com a qual se cruzem apanhe os ditos pontapés. A violência extrema que descobrimos naquelas imagens, não é explicada por um acesso de raiva único e irreproduzível. É a expressão de quem parece habituado a resolver os problemas à sua maneira. A falta de pudor com que se bate em público, é um esboço daquilo que se é capaz de fazer em privado. O sentimento de impunidade que aqueles homens exibem, sugere um historial pelo qual ninguém lhes terá exigido contas. Serve apenas de consolo a lição de que apresentar queixa não é afinal uma tarefa inútil. Ou acham mesmo que a divulgação isolada daquele vídeo, por mais selvagens que fossem os actos nele reproduzidos, teria conduzido ao encerramento do Urban Beach?

Obrigado
a todos aqueles que, revelando coragem e responsabilidade cívica, apresentaram queixa. Há quem não tenha sequer a dignidade de, perante um espancamento completamente bárbaro e desnecessário, abandonar a fila e escolher
outro sítio para dançar

(artigo actualizado às 10:52 do dia 16 de Novembro)

Acho que, inicialmente, aquilo
que me serviu de motivação para escrever o que quer que fosse que não houvesse
sido já referido, teve que ver com o seguinte: saio à noite há cerca de 20 anos
e quase sempre sem tocar em álcool. Mas mais que partilhar qualquer
"maratona de sobriedade pela noite lisboeta", acho que falta dizer
meia dúzia de coisas.

Sobre as acusações de racismo

Quase todos os artigos que li
sobre o tema parecem ter sido escritos por pessoas que nunca saíram à noite. A
gestão de clientes levada a cabo à entrada de bares e discotecas (em Portugal e
um pouco por esse mundo fora) é feita segundo critérios de "selecção" que,
chamemos-lhe aquilo que lhes preferirmos chamar, não passa de um termo
socialmente aceite para aquilo que outros apelidariam de "discriminação". Mas
sejamos francos: quando nos deslocamos a um dado espaço esperamos encontrar um
dado ambiente que é definido, mais que por qualquer outra coisa, pela aparência
daqueles que lá estão. Fica complicado levar demasiado a sério acusações de
discriminação quando quase todos aceitámos e promovemos, na medida do nosso próprio
sucesso à porta de uma discoteca, que cada lugar estabelecesse um
ideal-tipo de clientela baseado estritamente na sua aparência. Não posso afirmar categoricamente que a gerência do Urban Beach é muito ou pouco racista e arrisco a dizer que,
em 2017, e até ao seu encerramento, era possível encontrar mais “não brancos”
no Urban do que aqueles que poderia encontrar em 2007 no Kubo ou em 1997 na
Kapital. Por um motivo relativamente óbvio: o Portugal de 2017 é, ainda assim, um lugar
menos racista do que era em 2007, e ainda menos que em 1997. O Observador (que,
justiça lhe seja feita, teve um papel importante em todo este processo)
publicou um artigo cujo título brilhava com a citação de um antigo porteiro do
Urban Beach: “Pretos, é difícil. Ciganos não entram”. Infelizmente, isso não é
motivo suficiente para me sentir no direito de acusar a gerência do Grupo K de
ser, com maior ou menor incidência, aquilo que a maioria da população nacional é:
um tanto ou quanto racista. Porque qualquer coisa parecida com “pretos não sei, ciganos nem pensar” é bastante representativo do que tantos portugueses sentem relativamente àqueles a quem permitem entrar em sua casa ou conviver com os seus filhos. Em caso de dúvida sugiro a consulta do termo "cigano" no nosso dicionário para
moderarmos todos a autoridade moral com que chamamos racista a alguém. Dito isto... A selecção levada a cabo à porta do Urban agrada a quem lá vai. E
ao que parece, vai lá muita gente. Menos de 48 horas depois do vídeo que exibia
aquelas agressões brutais ter sido gravado e pouco mais de 24h depois de ter
sido partilhado um pouco por todo o lado... quantas pessoas estavam no Urban
Beach no momento em que foi encerrado pelas autoridades?

Sobre a conduta dos
seguranças

Uma vez, no Lux, um segurança
disse-me: “Na minha vida pessoal não repito as coisas quatro vezes. Aqui pagam-me para dizer as coisas quatro vezes à mesma pessoa”. Esta
observação diz muito sobre a forma como somos tratados num dado estabelecimento e sobre os motivos pelos quais esse tratamento é mais frio, respeitoso, inflexível ou tolerante. Ela vai ao encontro de
algo muito fácil de se entender: a forma como os seguranças de uma discoteca
(ou se fizerem muita questão... a forma como os funcionários de uma empresa de segurança contratada
por uma dada discoteca) se dirigem aos clientes dessa mesma discoteca é
definida, como é óbvio, pela própria discoteca. Todos sabemos que o álcool, rivalidades parvas, disputas amorosas e outras tantas coisas podem fazer duma pista de dança um lugar tenso. Sabemos também que a maior parte de nós é menos civilizado e paciente depois de beber quatro vodkas ou sete cervejas. E que os seguranças das discotecas (ou se continuarem a fazer questão... das empresas de segurança que trabalham nas discotecas) lidam diariamente com situações complicadas. Por essas e por outras é que existe uma certificação para o exercício das suas funções. Mas sejamos muito claros: o argumento de que a agressividade dos seguranças que estão ao serviço no Urban Beach é responsabilidade da PSG é absolutamente delirante. A administração do Grupo K tem, como qualquer outra agremiação, uma dada cultura organizacional. Dizer que as opções que dela resultam não se traduzem na escolha dos seguranças que lá exercem funções, na mensagem que lhes é transmitida e no tipo de interacção que estes homens promovem com a sua clientela, é a mais profunda manifestação de desonestidade intelectual.

Sobre a Kapital

Não há outra forma de pôr as
coisas. A Kapital foi, durante quase 10 anos, o sítio mais aspiracional da
noite lisboeta. Ainda me lembro da primeira vez que lá entrei. Mas também não
me esqueci da primeira vez que, por culpa de um episódio aparentemente irrelevante, me pareceu que algo de errado se
passava ali. O porteiro, que teria ido até ao interior da discoteca, descia uma escadaria quase vazia quando empurrou um amigo meu porque, tão simples quanto isto, ele se
encontrava na trajectória mais curta da sua descida. Acabei por testemunhar, repetidamente, seguranças a dirigirem-se de forma agressiva aos clientes sem qualquer motivo aparente. Mas sejamos sinceros: não vi nada na Kapital que não tivesse visto também em outros estabelecimentos.

Sobre o Kubo

O Kubo era um espaço junto ao
Rio, a uma caminhada curta do local onde se encontra hoje o Urban Beach.
Basicamente era um conjunto de caixotes justapostos e sobrepostos que, verdade
seja dita, pela sua disposição, decoração e iluminação, faziam um dos espaços
mais bonitos de Lisboa. Mas foi lá que fiquei com a sensação que as noites
passadas em sítios geridos pelo Grupo K podiam ser perigosas. Lembro-me de uma noite ter visto um segurança a empurrar clientes de forma agressiva sem razão aparente. Uma
rapariga, provavelmente pouco habituada a ser atropelada no seu dia-a-dia, reclamou com o funcionário da discoteca. Ele recuou até junto dela e intimidou-a com um
movimento brusco e uma frase que já não sou capaz de recordar. Claro que quando
se vê um segurança dirigir-se a uma mulher desta forma fica-se com a sensação de que ali, algo de grave pode acontecer a um homem. Num outro dia, quando
estava de saída, vi um segurança esmurrar um cliente. Não foi a
primeira vez que assisti a um murro à porta de uma discoteca e cabe-me reconhecer que - entre esses episódios infelizes - a culpa não foi sempre da exclusiva
responsabilidade das equipas de segurança. Mas acho que, numa dada consciência
colectiva, nos habituámos a aceitar estes "azares alheios" com excessiva condescendência.

Sobre o Urban Beach

O Urban Beach acabou por atrair
uma clientela mais jovem que os seus antecessores Kapital e Kubo (o Kremlin
tinha um posicionamento diferente: a música era mais pesada e o ambiente menos
convencional). Isto também se deveu, em boa parte, à afirmação do Lux como
discoteca de referência. Curiosamente, uma das coisas que sempre diferenciou o
Lux de todas as outras discotecas foi a urbanidade com que, de forma geral, o
seu staff trata os clientes. Em rigor, foi talvez a discoteca
onde terei sentido pela primeira vez que os seguranças estavam ali, verdadeiramente e como o nome sugere,
para assegurar a minha segurança (e onde, em 20 anos de visitas assíduas, nunca
vi um murro ou um pontapé). Mas voltando ao Urban: tive a percepção que naquele espaço do Grupo K os seguranças pareciam ser ainda mais agressivos que na
generalidade das discotecas. Uma noite, a propósito duma abordagem completamente desajustada de um segurança, disse ao Gonçalo Rocha que achava que ali se maltratavam os clientes indiscriminadamente. Respondeu-me, meio
sorridente, que talvez eu tivesse preconceitos em relação ao Urban. Torna-se
difícil, alguns anos depois, recordar com precisão os episódios ou comportamentos mais duvidosos. Não tinha chegado a ver ninguém do staff desferir murros ou
pontapés mas, por culpa de algumas reacções, e de uma ou outra
narrativa, sentia que seria apenas uma questão
de tempo. Até que uma noite, o tempo chegou. A narração que se segue é um
excerto exacto (inclusive, com alguns erros de sintaxe) de um e-mail que
enviei, na madrugada do dia 6 de Abril de 2015, à então Vereadora da Educação,
Economia, Inovação e Descentralização, Graça Fonseca (actual Secretária de
Estado Adjunta e da Modernização Administrativa), a propósito de uma deslocação
até ao Urban Beach, no fim-de-semana anterior. Muito mais que qualquer
recriminação da ex-autarca por qualquer hipotética inação
(que não teria como provar e, como tal, não me permito sequer sugerir) este é
um esforço por me reportar aos factos na forma mais exacta que me é possível.
Sem a leitura deste e-mail, guardaria daquela noite pouco mais que recordações vagas. Posso assegurar-vos apenas que, à data que
escrevi este relato, os factos estavam absolutamente claros na minha memória. Desde aí, nunca mais voltei a um espaço do Grupo K.

(...) Quando chegava à entrada
(ainda numa zona exterior ao recinto mas pertencente já, por assim dizer à área
do edifício) estavam duas ou três pessoas (acho que eram dois homens e uma
mulher) a ser expulsos/convidados a sair. Percebi que um dos tipos que estava a
ser posto fora estava bebido e parecia provocar os seguranças (aquela coisa
adolescente do "bate lá então"). 

Aparentemente os seguranças não
ficaram contentes com o desempenho das suas funções (convidando a sair alguém
que supostamente não mereceria ter entrado ou permanecer lá dentro) e foram ao
encontro do tipo (uns 4 ou 5 diria eu). Vi um dos seguranças pontapear o
turista na cabeça - acho que houve dois deles que lhe bateram - e poucos
momentos depois estava um segurança deitado sobre o turista a asfixiá-lo
(sim... isso mesmo.. a asfixiá-lo). Eu eu outro amigo - vendo aquela barbárie -
aproximámos-nos e dissemos aquilo que qualquer duas pessoas com o mais
elementar bom senso deveriam sentar-se tentadas a dizer. Perante os "parem
com isso por favor", "não é necessário", "deixem-no
ir" ou "a vossa função é precisamente evitar situações como
esta" o meu amigo foi insultado e foi ainda ameaçado porque, aparentemente,
algum(ns) segurança(s) pensavam que havia filmado a cena. Frases do género
"vê a minha cara que eu não me esqueço da tua porque se o vídeo é
publicado vais-me ver outra vez", houve ainda outro segurança que lhe
pediu o telemóvel para se certificar que nada tinha sido filmado. Tudo isto num
ambiente de raiva perante esta nossa atitude de censura daquele comportamento
(...)

A preocupação dos seguranças com um vídeo não era fruto da sua capacidade de antecipar o que veio a acontecer dois anos e meio depois. Era apenas uma reacção ao que havia sido publicado duas semanas antes pelo Público: as imagens mostravam um segurança em funções a espancar repetidamente (a dada altura com a colaboração de um outro indivíduo) um homem, aparentemente bêbado e indefeso, na "Rua Cor-de-Rosa", no Cais Sodré. Naquela noite houve
duas coisas que se tornaram claras. A primeira: que os seguranças do Urban
Beach não tinham qualquer problema em aplicar a força extrema quando qualquer dose de força não era já necessária (assumindo que em algum momento, algum tipo de
força tivesse sido justificada). E isto não é uma consideração subjectiva.
Estamos a falar dum turista, claramente alcoolizado, de passada titubeante, que o
casal amigo estava a conseguir afastar da porta do Urban. A segunda: ainda mais
assustadora. O total sentimento de impunidade dos agressores. Aqueles homens
agiram sem contenção, hesitação ou reflexão. Aqueles homens, claramente
treinados, actuaram em grupo contra um indivíduo que parte da população
masculina teria facilidade em derrubar sem a ajuda de outra pessoa. A
impunidade foi tal que, à semelhança das imagens que tivemos o desprazer de ver
esta semana, aqueles homens bateram e insultaram diante de uma plateia, no
(suposto) exercício das suas funções. Havia dezenas de pessoas a assistir. Apenas
um amigo e eu nos insurgimos. Ninguém na fila, em pleno ano de 2015 e nesta tão
cosmopolita Lisboa, perdeu vontade de entrar na discoteca cujos seguranças
acabavam de agredir de forma devastadora, um homem, bêbado e trémulo,
pontapeado e atirado ao chão, prostrado física e psicologicamente, desrespeitado
na sua mais elementar dignidade, vítima duma asfixia desnecessária
e absolutamente bárbara. Naquele noite fui para casa com a sensação que, ao contrário do que disse ontem o advogado de um dos seguranças a
propósito daquele vídeo  "(...) Foi um dia mau... foi um dia mau p'ro meu
cliente. Um dia mau na vida dele. Apenas isso (...)", havia testemunhado apenas "mais uma noite na vida daqueles homens". É por isso que, quando leio todos
os depoimentos disponíveis na internet não só os acho coerentes, como bastante verosímeis. É também por isso que acho que o Eduardo
Cabrita, o recém-nomeado Ministro da Administração Interna (que, sou obrigado a
reconhecer, não poderia ter actuado de forma mais imediata; o mesmo não se
podendo dizer da autarquia e forças policiais), deveria ter algum pudor em dizer que “não faz sentido sequer colocar essa questão” quando lhe
perguntam porque nada havia sido feito depois das (38) queixas existentes.
Talvez se fosse um filho, sobrinho ou neto seu a apanhar pontapés na cabeça o
ministro tivesse expressado uma opinião diferente. Talvez se os agentes da PSP
não parecessem desincentivar (como sugerem alguns depoimentos à imprensa) os
jovens agredidos a apresentar queixa, elas não fossem “apenas” 38. Talvez se a
queixa referente ao episódio retratado no vídeo, tivesse levado menos tempo a ser registada que aquelas imagens a circular pelos telemóveis e computadores de meio Portugal, nos sentíssemos todos em melhores mãos.
Talvez... talvez a gerência do Urban Beach e a administração do Grupo K tenham mesmo alguma responsabilidade nestes sucessivos espancamentos. E talvez o Gonçalo Rocha
tenha razão, talvez eu tenha alguns preconceitos acerca do Urban. Mas não consigo deixar de pensar que... O
único motivo que permite ao Urban Beach continuar a fazer dinheiro com as
mesmas pessoas que parece disposto a maltratar, é a falta de solidariedade e
consciência cívica de todos aqueles que, não tendo levado nunca pontapés na
cara, continuam a ir ali sabendo que, naquela mesma noite e naquele mesmo
lugar, é possível que uma cara com a qual se cruzem apanhe os ditos pontapés. A violência extrema que descobrimos naquelas imagens, não é explicada por um acesso de raiva único e irreproduzível. É a expressão de quem parece habituado a resolver os problemas à sua maneira. A falta de pudor com que se bate em público, é um esboço daquilo que se é capaz de fazer em privado. O sentimento de impunidade que aqueles homens exibem, sugere um historial pelo qual ninguém lhes terá exigido contas. Serve apenas de consolo a lição de que apresentar queixa não é afinal uma tarefa inútil. Ou acham mesmo que a divulgação isolada daquele vídeo, por mais selvagens que fossem os actos nele reproduzidos, teria conduzido ao encerramento do Urban Beach?

Obrigado
a todos aqueles que, revelando coragem e responsabilidade cívica, apresentaram queixa. Há quem não tenha sequer a dignidade de, perante um espancamento completamente bárbaro e desnecessário, abandonar a fila e escolher
outro sítio para dançar

(artigo actualizado às 10:52 do dia 16 de Novembro)

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