"Disse ao meu primo que ia ter com as pessoas do Freeport"

03-12-2019
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Tratam-se por tu, chegaram a passar férias juntos quando Hugo Monteiro era criança, e Sócrates foi seu patrono na apresentação da tese na faculdade. Uma vez, num café, Hugo tentou contar ao primo Sócrates que ia utilizar o parentesco que os une para conseguir fechar um negócio: explicou-lhe que ia ter com as pessoas da Freeport, que estava a lançar uma empresa, mas não pediu autorização para usar o nome do actual primeiro-ministro. "Provavelmente não me autorizaria se eu lhe pedisse", diz candidamente. Hugo Monteiro está na China a treinar kung fu e só volta a Portugal no Natal. Não vê o primo há um ano e quer voltar a encontrar-se com ele: "As desculpas pedem-se pessoalmente". Há uma dúvida que se mantém: Sócrates já garantiu que não conhece Charles Smith ou Manuel Pedro. Hugo Monteiro tem outra impressão: "Eu acho que eles tiveram uma reunião juntos. Pelo menos foi o que o meu pai me transmitiu".

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Porque veio para a China? Porque decidi enveredar pelo ensino das artes marciais. Já tenho 33 anos e achei que tinha de ter um curso intensivo no sítio onde se praticam as melhores artes marciais do mundo: a China e Shaolin. Aqui vive-se e respira-se artes marciais.

O seu plano é abrir uma escola de kung fu em Portugal? Não sei se será em Portugal.

Foi oportuno, no mínimo, ter vindo para o outro extremo do mundo quando rebentou o caso Freeport. Foi, mas foi inocente. Eu vim antes e sobretudo comecei a planear a viagem muito antes da história rebentar. Cheguei a 4 de Janeiro e o visto levou dois meses a ser aprovado porque tinha de haver uma confirmação da escola para onde eu ia.

As buscas às empresas do seu pai foram feitas duas semanas depois de ter saído do país. Se não fugiu, parece. Admito que sim. Quem não estiver atento aos pormenores pode pensar isso.

Como é que soube das buscas? Há uma diferença horária muito grande e o meu pai ligou-me às cinco da manhã daqui a perguntar-me se tinha enviado algum mail ao Charles Smith. Eu estava sonolento e disse que não me lembrava. O meu pai estava nervoso, passou ao meu irmão que me explicou melhor o que se passava e lembrei-me.

E qual era o teor do mail que enviou a Charles Smith? Tenho pena de não o ter guardado e não me lembro das palavras exactas. Quando lancei a Neurónio Criativo, pensei numa série de hipóteses de negócio e em ganhar clientes para fazer campanhas de marketing e organizar eventos. E o meu pai disse: já que consegui fazer um grande favor a este senhor, que só conseguiu ter a reunião com o teu primo porque eu consegui, já agora esse senhor, o Charles Smith, que pague o favor conseguindo uma reunião para ti. Telefonei-lhe, reuni uma série de informação interessante e apresentei-a na reunião que o Charles Smith marcou com o director de marketing da Freeport.

Simon Jobling? Julgo que sim.

E a que propósito invocou o nome e o parentesco com José Sócrates? Estava a tentar ganhar um cliente e fiz o meu pressing. O meu primo não me autorizou e provavelmente não me autorizaria se eu lhe pedisse.

Tinha consciência disso e decidiu fazê-lo na mesma? Tinha consciência e decidi fazê-lo. Não fui ético.

E também inventou o endereço "jsocrates@neuroniocriativo.pt" e pô-lo no mail. Para quê? Para garantir uma resposta. Foi uma tentativa de ganhar um cliente a todo o custo.

José Sócrates classificou o seu comportamento como um "abuso de confiança ilegítimo e inadmissível". E tem razão. Tenho de lhe pedir desculpa.

Acha que o prejudicou? Nunca esperei que um mail que achava que ninguém ia ler - nem sequer o Charles Smith - fosse tão falado. É mais uma lição de vida: tudo o que fazemos tem sempre consequências. E neste caso foram más. Mas se não houver mais nada é só um mail de um primo do na altura líder da oposição a pedir uma reunião. Gostava de falar com ele e tentarei fazê-lo quando voltar a Portugal. As desculpas devem pedir-se pessoalmente.

Porque é que não apanha um avião e não o faz? Não acho que tenha essa gravidade. A carta rogatória de Inglaterra não tem o meu nome, não sou arguido e o meu pai também não.

Que tipo de relacionamento tinha com seu primo Sócrates? Até aos meus 25 anos via o meu primo regularmente e quando já era ministro do Ambiente conseguíamos fazer um jantar semestralmente. Numa fase anterior, tentávamos jantar todos os Natais. O meu primo foi meu patrono na faculdade, foi à minha defesa de tese e falou em meu favor com muito conhecimento de causa. Já era ministro e tive 19. Percebi a importância do patrono.

Trata-o por tu? Claro.

E por Zezito (o diminutivo familiar)? Não. É mesmo por tu.

Chegaram a passar férias juntos? Quando eu era miúdo passava temporadas na casa da minha tia Maria Adelaide na Covilhã. Via o meu primo de manhã e à noite, porque ele era mais velho e saía.

Quando foi a última vez que falaram? Pessoalmente? Há mais de um ano, já nem me lembro bem.

Sabe se o seu pai chegou a contribuir para o partido do sobrinho? Sei que sim, mas não sei exactamente quando nem quanto. E ele nem sequer é socialista. Votou sempre PSD.

Ouviu quando Sócrates se referiu a si como o "filho do meu tio"? Soou a desprezo. Talvez. Digam o que disserem continua a ser meu familiar.

Nunca falou com ele sobre a reunião com os responsáveis da Freeport? Disse-lhe que estava a fazer um projecto para a Freeport. Tomei um café com ele e explique-lhe que tinha saído de casa, que estava a lançar uma empresa com zero quilómetros e que estava a falar com aquelas pessoas que ele já conhecia.

Quem? As pessoas que representavam a Freeport: Charles Smith e Manuel Pedro.

Sócrates já disse várias vezes que não os conhece. Eu acho que eles tiveram uma reunião juntos. Pelo menos foi o que o meu pai me transmitiu.

Mas quando falou com o seu primo ficou com a ideia que ele os conhecia? Não falámos de nomes em concreto. O meu primo falou com tanta gente quando era ministro que admito que não se lembre dessas duas pessoas especificamente.

A que propósito surgiu o tema Freeport no café com o seu primo? Não fui ter com ele para falar sobre o Freeport. Para já queria revê-lo. Estava a viver sozinho, tinha vendido as quotas da discoteca e tinha novidades para lhe contar. Além disso, na primeira reunião que tive com o Charles ele pediu-me para mostrar ao meu primo uma planta com uns terrenos para saber se aquilo tinha alguma viabilidade para construção. Como é óbvio, quando cheguei ao meu primo, ele já estava desligado do Ministério e disse-me que estava a estudar e nem olhou para o papel.

Quando marcou a conversa já tinha intenção de falar sobre a hipótese do negócio com a Freeport? Se mostrasse o papel que o Charles Smith me deu podia haver uma facilitação da reunião com a Freeport. Ao fim e ao cabo juntei as duas coisas.

Era um favor para pagar outro favor. Acabou por não ser favor nenhum porque o meu primo nem olhou para o papel.

Essa conversa é posterior ao envio do mail? Não. Decorreu entre as duas reuniões com o Charles Smith

Usou o nome do seu primo em mais algum negócio? Absolutamente não. A maior parte dos meus amigos nem sabe que sou primo dele. E houve uma maturação da minha pessoa, cresci.

E nunca mais falou com o seu primo? Não. Desde que vim para a China nunca mais falei com ele.

E com o seu pai? Falamos uma vez por mês, mas apagámos o assunto. Decidimos não falar mais sobre isto. O mail foi triste, uma atitude menos feliz, mas não ganhei nada com isso. Consegui a reunião, apresentei o anteprojecto e nem um obrigado.

Foi contactado pelas autoridades? Nunca fui contactado pelas autoridades. Directa ou indirectamente. E nem houve nenhuma tentativa. Se quisessem falar comigo era fácil. Vocês conseguiram.

A Freeport não lhe pagou nada? Não e nem tinha de pagar.

A Smith e Pedro pagou-lhe? Não. Não houve qualquer compromisso de parte a parte e a única coisa que o Charles me disse foi que ia tentar conseguir a reunião. Disse-me logo que não tinha qualquer peso na decisão. E na verdade não tive qualquer resposta à minha proposta e penso que até fui prejudicado por ter lá chegado através do Charles Smith e do Manuel Pedro.

Porquê? As pessoas da Freeport já estavam de pé atrás com eles? Não posso dizer isso. Mas pareceu-me que não fiquei nada abonado por ter ido da parte deles. Suponho que as relações entre eles já não estavam muito boas.

A única pessoa da Freeport com quem falou foi Simon Jobling? Sim. Não falei com mais ninguém.

Qual é a natureza da sua relação com Charles Smith? Houve um telefonema ou dois e um mail. Estive duas vezes com ele.

E com Manuel Pedro? Eu dirigia-me ao Charles Smith e o Manuel, porque era sócio, estava presente quando reunimos.

O Manuel Pedro ou o Charles Smith participaram na reunião com o director da Freeport? Não. Ficaram cá fora. O Charles disse-me que não percebia nada do que íamos falar e não valia a pena estar lá.

Do que ficou a conhecer do negócio admira-se que Manuel Pedro e Charles Smith sejam suspeitos de corrupção? Desconheço qual foi exactamente o trabalho deles. Não tenho opinião.

Viu a gravação do DVD em que Charles Smith afirma aos responsáveis da Freeport que pagou a um primo de Sócrates? Vi um excerto.

O Smith estava a falar de si? Tenho a certeza absoluta que não. Ou estava a inventar ou estava a falar de outro primo.

O Hugo é o único primo que ele conhece. Sou? De certeza que ele conhece mais primos. Directos e indirectos devemos ser uns trinta primos do Sócrates.

Quando é que volta? Em Dezembro, antes do Natal. É uma boa altura para visitar a família e o meu primo.

Acredita que o seu primo está inocente? Tenho a certeza.

Na nova vida de Hugo Monteiro,o banho é um luxo e a maior ambição um lugar na equipa da escola de kung fu. "Deixei de ser um betinho materialista", explica o primo de Sócrates

Os turistas alemães olham espantados para o ocidental que dá socos no ar e patadas no chão sagrado do templo de Shaolin, o berço do kung fu e do Budismo. "What country are you from?", pergunta o velhote depois da simpática salva de palmas.

"Portugal!", orgulha-se o homem do quimono cinzento-pardo e blusa branca com caracteres chineses. A timidez não é um defeito de Hugo Monteiro, o primo de Sócrates, o primo do mail para a Freeport. Fala mandarim e anda à vontade nas ruas coloridas de Deng Feng, a mil quilómetros de Pequim, onde estuda e pratica kung fu, a arte marcial dos monges de Shaolin. E sorri quando os adolescentes se sentam a seu lado nos tascos da rua e pedem para tirar uma fotografia com o telemóvel. "Ainda se espantam com os ocidentais". E mais ainda quando, imperturbável, faz outra demonstração de kung fu no restaurante fast-food da cidade.

Chegou há quatro meses e aqui chama-se Wu Guo, "o guerreiro profundo", traduz sem pestanejar. Não bebe, não fuma e não come carne. Passa oito horas por dia treinar e a lutar com jovens chineses de 18 anos. É difícil acreditar que é este o homem que enviou um mail a Charles Smith invocando a condição de primo de José Sócrates e o pagamento de um favor antigo para conseguir um contrato com a Freeport. "As pessoas mudam e eu mudei muito. Deixei de ser aquele betinho materialista e passei a ser uma pessoa mais espiritual". A sua maior ambição é quase pueril: "Hoje o mestre mandou-me pesar e disse-me que ia entrar para a equipa de combate da escola". Treina artes marciais desde os seis anos e chegou a competir em muay thai, arte marcial tailandesa.

Mal chegou à China, teve a primeira lição de humildade. Visitou uma escola numa das montanhas que rodeiam a cidade, onde os quartos não têm porta e a casa de banho é um luxo impensável. O mestre local perguntou-lhe se praticava alguma arte marcial. "Disse-lhe que fazia muay thai e ele baixou-se, aplicou-me um golpe e voei uns dois metros. Disse-me que eu fazia desporto e ele treinava para a guerra". Não ficou lá.

Hugo treina kung fu e estuda mandarim na Song shang Shaolin si wu seng tuan pei xun ji di, uma das 80 escolas de artes marciais de Deng Feng, o maior negócio da cidade e o único atractivo para os ocidentais que vivem por aqui. Os muros têm arame farpado, as janelas são gradeadas e há guardas fardados à porta.

A maior parte dos oito mil alunos são miúdos muito pequenos ou adolescentes problemáticos, disciplinados pelos mestres com uma vara de madeira. "Quando roubam, fogem ou andam à pancada batem-lhes com o pau até partir". "Na praça principal e à frente de todos", descreve o aluno mais velho da escola e o único português de Deng Feng. "Os putos são rijos, guerreiros. Já vi miúdos pequenos, de oito ou nove anos, a levar pontapés na cabeça durante os treinos sem uma queixa". Só há dez alunos ocidentais e esta é a única escola da cidade onde treinam misturados com os chineses. "Por isso é que a escolhi".

A água só é ligada uma hora por dia. "Cheira a jardim zoológico, não é?" O curso custa cinco mil euros por ano, mas menos de metade para os chineses. "Vendi o meu carro e a moto e fui eu que paguei tudo", explica o filho de Júlio Monteiro, o tio milionário de José Sócrates que fez fortuna na bolsa e na compra e venda de casas e terrenos. Hugo dorme numa espécie de cela com uns três metros quadrados e duas camas com lençóis cor-de-rosa aos ursinhos. Como é ocidental, tem o privilégio de dividir o quarto só com um colega, um americano da Florida fluente em castelhano. Os chineses são oito por quarto.

E do que é que foge um homem que trabalhava num banco, morava num apartamento no Clube do Lago e conduzia um Porsche? "De nada. Estou aqui porque quero, se estivesse a fugir de alguma coisa não aguentava dois dias".

Para encontrar Hugo Monteiro é preciso fazer uma viagem de 14 horas e apanhar três aviões até à província de Henam, no Sul da China. Acidental ou convenientemente, o primo de Sócrates saiu de Portugal em Janeiro deste ano, a tempo de evitar as buscas à empresa do pai e as perguntas da Judiciária sobre o mail que enviou a Charles Smith.

À excepção de uma curta declaração ao correspondente da Lusa na China, nunca respondeu aos contactos que o Expresso e perto de 20 jornalistas fizeram na página que ainda hoje mantém no Facebook. Até há um mês. Aceitou dar uma entrevista sem quaisquer condições. Faltava o mais difícil: um visto que por vezes demora mais de um mês a conseguir.

Na Embaixada da China quiseram saber com quem íamos falar, onde e porquê. Por escrito. A escola de kung fu onde Hugo treina foi contactada, confirmou o pedido de entrevista e o visto ficou pronto em pouco mais de uma semana. Nunca souberam que o praticante português de kung fu é, na verdade, o primo de Sócrates. Ao longo de três dias que passámos com ele em Deng Feng, a cidade do templo sagrado Shaolin, Hugo Monteiro mostrou-se sincero, não fugiu de nenhuma pergunta nem mostrou qualquer tipo de incómodo ou irritação. Mesmo quando admitiu ter agido com "pouca ética". É um relações públicas nato e um guia incansável. Fez um único pedido: "Mandem-me umas fotos para eu actualizar o Facebook".

Texto publicado na edição do Expresso de 16 de Maio de 2009

Fotogaleria: Primo de Sócrates fala sobre conversa com o primeiro-ministro

Fotogaleria: Hugo Monteiro fala sobre José Sócrates e o caso Freeport

Exclusivo Expresso: Três dias na China com o primo de Sócrates

Freeport: Encontrámos o primo de Sócrates

Tratam-se por tu, chegaram a passar férias juntos quando Hugo Monteiro era criança, e Sócrates foi seu patrono na apresentação da tese na faculdade. Uma vez, num café, Hugo tentou contar ao primo Sócrates que ia utilizar o parentesco que os une para conseguir fechar um negócio: explicou-lhe que ia ter com as pessoas da Freeport, que estava a lançar uma empresa, mas não pediu autorização para usar o nome do actual primeiro-ministro. "Provavelmente não me autorizaria se eu lhe pedisse", diz candidamente. Hugo Monteiro está na China a treinar kung fu e só volta a Portugal no Natal. Não vê o primo há um ano e quer voltar a encontrar-se com ele: "As desculpas pedem-se pessoalmente". Há uma dúvida que se mantém: Sócrates já garantiu que não conhece Charles Smith ou Manuel Pedro. Hugo Monteiro tem outra impressão: "Eu acho que eles tiveram uma reunião juntos. Pelo menos foi o que o meu pai me transmitiu".

Clique para aceder ao índice do DOSSIÊ ESPECIAL FREEPORT

Porque veio para a China? Porque decidi enveredar pelo ensino das artes marciais. Já tenho 33 anos e achei que tinha de ter um curso intensivo no sítio onde se praticam as melhores artes marciais do mundo: a China e Shaolin. Aqui vive-se e respira-se artes marciais.

O seu plano é abrir uma escola de kung fu em Portugal? Não sei se será em Portugal.

Foi oportuno, no mínimo, ter vindo para o outro extremo do mundo quando rebentou o caso Freeport. Foi, mas foi inocente. Eu vim antes e sobretudo comecei a planear a viagem muito antes da história rebentar. Cheguei a 4 de Janeiro e o visto levou dois meses a ser aprovado porque tinha de haver uma confirmação da escola para onde eu ia.

As buscas às empresas do seu pai foram feitas duas semanas depois de ter saído do país. Se não fugiu, parece. Admito que sim. Quem não estiver atento aos pormenores pode pensar isso.

Como é que soube das buscas? Há uma diferença horária muito grande e o meu pai ligou-me às cinco da manhã daqui a perguntar-me se tinha enviado algum mail ao Charles Smith. Eu estava sonolento e disse que não me lembrava. O meu pai estava nervoso, passou ao meu irmão que me explicou melhor o que se passava e lembrei-me.

E qual era o teor do mail que enviou a Charles Smith? Tenho pena de não o ter guardado e não me lembro das palavras exactas. Quando lancei a Neurónio Criativo, pensei numa série de hipóteses de negócio e em ganhar clientes para fazer campanhas de marketing e organizar eventos. E o meu pai disse: já que consegui fazer um grande favor a este senhor, que só conseguiu ter a reunião com o teu primo porque eu consegui, já agora esse senhor, o Charles Smith, que pague o favor conseguindo uma reunião para ti. Telefonei-lhe, reuni uma série de informação interessante e apresentei-a na reunião que o Charles Smith marcou com o director de marketing da Freeport.

Simon Jobling? Julgo que sim.

E a que propósito invocou o nome e o parentesco com José Sócrates? Estava a tentar ganhar um cliente e fiz o meu pressing. O meu primo não me autorizou e provavelmente não me autorizaria se eu lhe pedisse.

Tinha consciência disso e decidiu fazê-lo na mesma? Tinha consciência e decidi fazê-lo. Não fui ético.

E também inventou o endereço "jsocrates@neuroniocriativo.pt" e pô-lo no mail. Para quê? Para garantir uma resposta. Foi uma tentativa de ganhar um cliente a todo o custo.

José Sócrates classificou o seu comportamento como um "abuso de confiança ilegítimo e inadmissível". E tem razão. Tenho de lhe pedir desculpa.

Acha que o prejudicou? Nunca esperei que um mail que achava que ninguém ia ler - nem sequer o Charles Smith - fosse tão falado. É mais uma lição de vida: tudo o que fazemos tem sempre consequências. E neste caso foram más. Mas se não houver mais nada é só um mail de um primo do na altura líder da oposição a pedir uma reunião. Gostava de falar com ele e tentarei fazê-lo quando voltar a Portugal. As desculpas devem pedir-se pessoalmente.

Porque é que não apanha um avião e não o faz? Não acho que tenha essa gravidade. A carta rogatória de Inglaterra não tem o meu nome, não sou arguido e o meu pai também não.

Que tipo de relacionamento tinha com seu primo Sócrates? Até aos meus 25 anos via o meu primo regularmente e quando já era ministro do Ambiente conseguíamos fazer um jantar semestralmente. Numa fase anterior, tentávamos jantar todos os Natais. O meu primo foi meu patrono na faculdade, foi à minha defesa de tese e falou em meu favor com muito conhecimento de causa. Já era ministro e tive 19. Percebi a importância do patrono.

Trata-o por tu? Claro.

E por Zezito (o diminutivo familiar)? Não. É mesmo por tu.

Chegaram a passar férias juntos? Quando eu era miúdo passava temporadas na casa da minha tia Maria Adelaide na Covilhã. Via o meu primo de manhã e à noite, porque ele era mais velho e saía.

Quando foi a última vez que falaram? Pessoalmente? Há mais de um ano, já nem me lembro bem.

Sabe se o seu pai chegou a contribuir para o partido do sobrinho? Sei que sim, mas não sei exactamente quando nem quanto. E ele nem sequer é socialista. Votou sempre PSD.

Ouviu quando Sócrates se referiu a si como o "filho do meu tio"? Soou a desprezo. Talvez. Digam o que disserem continua a ser meu familiar.

Nunca falou com ele sobre a reunião com os responsáveis da Freeport? Disse-lhe que estava a fazer um projecto para a Freeport. Tomei um café com ele e explique-lhe que tinha saído de casa, que estava a lançar uma empresa com zero quilómetros e que estava a falar com aquelas pessoas que ele já conhecia.

Quem? As pessoas que representavam a Freeport: Charles Smith e Manuel Pedro.

Sócrates já disse várias vezes que não os conhece. Eu acho que eles tiveram uma reunião juntos. Pelo menos foi o que o meu pai me transmitiu.

Mas quando falou com o seu primo ficou com a ideia que ele os conhecia? Não falámos de nomes em concreto. O meu primo falou com tanta gente quando era ministro que admito que não se lembre dessas duas pessoas especificamente.

A que propósito surgiu o tema Freeport no café com o seu primo? Não fui ter com ele para falar sobre o Freeport. Para já queria revê-lo. Estava a viver sozinho, tinha vendido as quotas da discoteca e tinha novidades para lhe contar. Além disso, na primeira reunião que tive com o Charles ele pediu-me para mostrar ao meu primo uma planta com uns terrenos para saber se aquilo tinha alguma viabilidade para construção. Como é óbvio, quando cheguei ao meu primo, ele já estava desligado do Ministério e disse-me que estava a estudar e nem olhou para o papel.

Quando marcou a conversa já tinha intenção de falar sobre a hipótese do negócio com a Freeport? Se mostrasse o papel que o Charles Smith me deu podia haver uma facilitação da reunião com a Freeport. Ao fim e ao cabo juntei as duas coisas.

Era um favor para pagar outro favor. Acabou por não ser favor nenhum porque o meu primo nem olhou para o papel.

Essa conversa é posterior ao envio do mail? Não. Decorreu entre as duas reuniões com o Charles Smith

Usou o nome do seu primo em mais algum negócio? Absolutamente não. A maior parte dos meus amigos nem sabe que sou primo dele. E houve uma maturação da minha pessoa, cresci.

E nunca mais falou com o seu primo? Não. Desde que vim para a China nunca mais falei com ele.

E com o seu pai? Falamos uma vez por mês, mas apagámos o assunto. Decidimos não falar mais sobre isto. O mail foi triste, uma atitude menos feliz, mas não ganhei nada com isso. Consegui a reunião, apresentei o anteprojecto e nem um obrigado.

Foi contactado pelas autoridades? Nunca fui contactado pelas autoridades. Directa ou indirectamente. E nem houve nenhuma tentativa. Se quisessem falar comigo era fácil. Vocês conseguiram.

A Freeport não lhe pagou nada? Não e nem tinha de pagar.

A Smith e Pedro pagou-lhe? Não. Não houve qualquer compromisso de parte a parte e a única coisa que o Charles me disse foi que ia tentar conseguir a reunião. Disse-me logo que não tinha qualquer peso na decisão. E na verdade não tive qualquer resposta à minha proposta e penso que até fui prejudicado por ter lá chegado através do Charles Smith e do Manuel Pedro.

Porquê? As pessoas da Freeport já estavam de pé atrás com eles? Não posso dizer isso. Mas pareceu-me que não fiquei nada abonado por ter ido da parte deles. Suponho que as relações entre eles já não estavam muito boas.

A única pessoa da Freeport com quem falou foi Simon Jobling? Sim. Não falei com mais ninguém.

Qual é a natureza da sua relação com Charles Smith? Houve um telefonema ou dois e um mail. Estive duas vezes com ele.

E com Manuel Pedro? Eu dirigia-me ao Charles Smith e o Manuel, porque era sócio, estava presente quando reunimos.

O Manuel Pedro ou o Charles Smith participaram na reunião com o director da Freeport? Não. Ficaram cá fora. O Charles disse-me que não percebia nada do que íamos falar e não valia a pena estar lá.

Do que ficou a conhecer do negócio admira-se que Manuel Pedro e Charles Smith sejam suspeitos de corrupção? Desconheço qual foi exactamente o trabalho deles. Não tenho opinião.

Viu a gravação do DVD em que Charles Smith afirma aos responsáveis da Freeport que pagou a um primo de Sócrates? Vi um excerto.

O Smith estava a falar de si? Tenho a certeza absoluta que não. Ou estava a inventar ou estava a falar de outro primo.

O Hugo é o único primo que ele conhece. Sou? De certeza que ele conhece mais primos. Directos e indirectos devemos ser uns trinta primos do Sócrates.

Quando é que volta? Em Dezembro, antes do Natal. É uma boa altura para visitar a família e o meu primo.

Acredita que o seu primo está inocente? Tenho a certeza.

Na nova vida de Hugo Monteiro,o banho é um luxo e a maior ambição um lugar na equipa da escola de kung fu. "Deixei de ser um betinho materialista", explica o primo de Sócrates

Os turistas alemães olham espantados para o ocidental que dá socos no ar e patadas no chão sagrado do templo de Shaolin, o berço do kung fu e do Budismo. "What country are you from?", pergunta o velhote depois da simpática salva de palmas.

"Portugal!", orgulha-se o homem do quimono cinzento-pardo e blusa branca com caracteres chineses. A timidez não é um defeito de Hugo Monteiro, o primo de Sócrates, o primo do mail para a Freeport. Fala mandarim e anda à vontade nas ruas coloridas de Deng Feng, a mil quilómetros de Pequim, onde estuda e pratica kung fu, a arte marcial dos monges de Shaolin. E sorri quando os adolescentes se sentam a seu lado nos tascos da rua e pedem para tirar uma fotografia com o telemóvel. "Ainda se espantam com os ocidentais". E mais ainda quando, imperturbável, faz outra demonstração de kung fu no restaurante fast-food da cidade.

Chegou há quatro meses e aqui chama-se Wu Guo, "o guerreiro profundo", traduz sem pestanejar. Não bebe, não fuma e não come carne. Passa oito horas por dia treinar e a lutar com jovens chineses de 18 anos. É difícil acreditar que é este o homem que enviou um mail a Charles Smith invocando a condição de primo de José Sócrates e o pagamento de um favor antigo para conseguir um contrato com a Freeport. "As pessoas mudam e eu mudei muito. Deixei de ser aquele betinho materialista e passei a ser uma pessoa mais espiritual". A sua maior ambição é quase pueril: "Hoje o mestre mandou-me pesar e disse-me que ia entrar para a equipa de combate da escola". Treina artes marciais desde os seis anos e chegou a competir em muay thai, arte marcial tailandesa.

Mal chegou à China, teve a primeira lição de humildade. Visitou uma escola numa das montanhas que rodeiam a cidade, onde os quartos não têm porta e a casa de banho é um luxo impensável. O mestre local perguntou-lhe se praticava alguma arte marcial. "Disse-lhe que fazia muay thai e ele baixou-se, aplicou-me um golpe e voei uns dois metros. Disse-me que eu fazia desporto e ele treinava para a guerra". Não ficou lá.

Hugo treina kung fu e estuda mandarim na Song shang Shaolin si wu seng tuan pei xun ji di, uma das 80 escolas de artes marciais de Deng Feng, o maior negócio da cidade e o único atractivo para os ocidentais que vivem por aqui. Os muros têm arame farpado, as janelas são gradeadas e há guardas fardados à porta.

A maior parte dos oito mil alunos são miúdos muito pequenos ou adolescentes problemáticos, disciplinados pelos mestres com uma vara de madeira. "Quando roubam, fogem ou andam à pancada batem-lhes com o pau até partir". "Na praça principal e à frente de todos", descreve o aluno mais velho da escola e o único português de Deng Feng. "Os putos são rijos, guerreiros. Já vi miúdos pequenos, de oito ou nove anos, a levar pontapés na cabeça durante os treinos sem uma queixa". Só há dez alunos ocidentais e esta é a única escola da cidade onde treinam misturados com os chineses. "Por isso é que a escolhi".

A água só é ligada uma hora por dia. "Cheira a jardim zoológico, não é?" O curso custa cinco mil euros por ano, mas menos de metade para os chineses. "Vendi o meu carro e a moto e fui eu que paguei tudo", explica o filho de Júlio Monteiro, o tio milionário de José Sócrates que fez fortuna na bolsa e na compra e venda de casas e terrenos. Hugo dorme numa espécie de cela com uns três metros quadrados e duas camas com lençóis cor-de-rosa aos ursinhos. Como é ocidental, tem o privilégio de dividir o quarto só com um colega, um americano da Florida fluente em castelhano. Os chineses são oito por quarto.

E do que é que foge um homem que trabalhava num banco, morava num apartamento no Clube do Lago e conduzia um Porsche? "De nada. Estou aqui porque quero, se estivesse a fugir de alguma coisa não aguentava dois dias".

Para encontrar Hugo Monteiro é preciso fazer uma viagem de 14 horas e apanhar três aviões até à província de Henam, no Sul da China. Acidental ou convenientemente, o primo de Sócrates saiu de Portugal em Janeiro deste ano, a tempo de evitar as buscas à empresa do pai e as perguntas da Judiciária sobre o mail que enviou a Charles Smith.

À excepção de uma curta declaração ao correspondente da Lusa na China, nunca respondeu aos contactos que o Expresso e perto de 20 jornalistas fizeram na página que ainda hoje mantém no Facebook. Até há um mês. Aceitou dar uma entrevista sem quaisquer condições. Faltava o mais difícil: um visto que por vezes demora mais de um mês a conseguir.

Na Embaixada da China quiseram saber com quem íamos falar, onde e porquê. Por escrito. A escola de kung fu onde Hugo treina foi contactada, confirmou o pedido de entrevista e o visto ficou pronto em pouco mais de uma semana. Nunca souberam que o praticante português de kung fu é, na verdade, o primo de Sócrates. Ao longo de três dias que passámos com ele em Deng Feng, a cidade do templo sagrado Shaolin, Hugo Monteiro mostrou-se sincero, não fugiu de nenhuma pergunta nem mostrou qualquer tipo de incómodo ou irritação. Mesmo quando admitiu ter agido com "pouca ética". É um relações públicas nato e um guia incansável. Fez um único pedido: "Mandem-me umas fotos para eu actualizar o Facebook".

Texto publicado na edição do Expresso de 16 de Maio de 2009

Fotogaleria: Primo de Sócrates fala sobre conversa com o primeiro-ministro

Fotogaleria: Hugo Monteiro fala sobre José Sócrates e o caso Freeport

Exclusivo Expresso: Três dias na China com o primo de Sócrates

Freeport: Encontrámos o primo de Sócrates

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