A Destreza das Dúvidas: Viver com terrorismo à porta de casa

21-06-2020
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A segurança na Europa depois do atentado em Paris fez-me reviver
uma experiência de há mais de quarenta anos. É que terror na Europa, já houve –
e em diversas ocasiões.

Em Julho de 1973 participei, com mais seis colegas
portugueses, professores dos ensinos preparatório (designação do tempo, 5º e 6º
anos) e secundário, numa conferência organizada pela OCDE com o tema
“School-based curriculum development”, a qual decorreu na Universidade de
Coleraine, na Irlanda do Norte. Nessa altura, a Irlanda do Norte era um lugar
complicado para viajar: a instabilidade provocada pelo IRA (Irish Republicain
Army) estava ao rubro, com atentados constantes. Como é sabido, era no fundo
uma guerra religiosa, católicos contra protestantes.

Na viagem para Belfast, via Londres, na British Airways,
comecei a sentir os efeitos da instabilidade. Não havia o rigor que há hoje em
relação a passageiros, mas a revista da minha pasta em Heathrow foi à minúcia
de abrir a bolsa do cachimbo (podia lá ter um revólver…). Mas mais sério foi quando
aterrámos. Como estava à janela numa das filas do lado esquerdo do avião, vi aproximarem-se,
em passo acelerado, duas filas de soldados, de arma em riste, que formaram uma
ala junto à escada, por onde passámos na saída, em relativo desconforto, em
direcção à sala de entrega de bagagens.

Nós íamos ser alojados em Portrush, uma estância balnear a uns
dez quilómetros de Coleraine. Estavam à nossa espera dois carros que nos iriam
levar de Belfast a Portrush. Era no fim do dia, mas em Julho as noites começam
tarde naquela zona, por isso tivemos oportunidade de perceber que ao longo da
estrada havia muitos sinais de que levavam a sério a possibilidade de qualquer
ataque. De vez em vez, havia um bloqueio, com soldados a querer revistar o
carro. Não nessa vez, mas noutra ocasião pedirem mesmo as identificações dos
passageiros. Na rua principal de Portrush não se podia estacionar; de 3 em 3
metros havia bidons que o impediam, a fim de evitar os carros armadilhados.

Na abertura da Conferência, as primeiras palavras (encorajadoras…)
foram para avisar que se soasse um sinal de alarme deveríamos em primeiro lugar
deitar-nos do chão. E, nas viagens de autocarro que fazíamos diariamente
percebíamos sempre que se procurava antecipar qualquer surpresa. Um exemplo: no
fim-de-semana sem actividades, foi-nos oferecido um passeio, para o qual foi
distribuído um itinerário. Mas na altura, já no autocarro, foi-nos comunicado
que iríamos seguir um itinerário diferente, evidente manobra de despiste.

Vou referir apenas mais duas notas dessa viagem. Na altura,
a localidade mais afectada pelos terroristas era Londonderry, que distava uns
quarenta quilómetros de Portrush. Tínhamos travado relações amigáveis com o
director da escola secundária de Londonderry, e ele, a dada altura,
convidou-me, e ao Helder Pacheco (exactamente, o notável portuense, ao tempo
professor numa escola da sua cidade e que, com sua Mulher, apresentou uma
interessante exposição de trabalhos realizados pelos seus alunos e que foi
muito bem recebida por todos), a ir até à sua cidade para ver in loco o que se
passava. Além de nós dois foi também outro participante cuja nacionalidade e
nome me escapam.

A escola ficava fora
do perímetro da cidade, num local aprazível. A simpatia do director foi ao
ponto de nos oferecer de jantar e, depois, descemos para o centro. Ainda hoje
tenho presentes as imagens e as emoções desse fim de tarde. Os carros não
podiam circular, por isso o carro teve de estacionar num local relativamente
afastado e fizemos o percurso a pé. Bom: a rua principal tinha todos os prédios
numa semi-ruína; a única coisa que possuíam era fachada. Lembrava as imagens
que tínhamos dos edifícios de Londres depois dos bombardeamentos alemães.

A dada altura, começámos a ouvir passos de corrida e do nada
apareceu uma brigada de soldados, armados, a fazer-nos sinal para nos
afastarmos. O anfitrião sugeriu que deveriam estar à procura de alguns membros
do IRA refugidos perto. E desandámos, claro… Confesso que nesse momento tive
medo.

A nota final: numa segunda-feira, um participante que vinha
de Belfast contava aos amigos que no domingo a sua secretária tinha morrido
vítima de um ataque bombista. E dizia isso demonstrando um mínimo de emoção,
como se se tratasse de um “fait divers”.

Percebi então, juntando tudo o que já vira – e o que haveria
de ver – que mesmo numa situação de insegurança a continuidade necessária da vida
gera habituação. Apesar de estarem em constante alerta, as pessoas criam uma
espécie de carapaça e são capazes de reagir portando-se como sempre. Não ouvi
muitos queixumes. Genericamente, as pessoas comportavam-se como se tudo fosse
normal. Numa festa do hotel, os irlandeses riram, dançaram, fizeram
inclusivamente humor com a situação.

Eu próprio, à medida que o tempo passava, me fui habituando
e quase esquecendo o insólito de estar a viver numa zona de guerra. O que não
quer dizer que, quando ao fim das duas semanas regressei a Londres (e fiquei lá
mais uma semana), não me sentisse bem mais seguro.

À margem da mensagem principal deste post, uma referência
para a importância que a conferência de Coleraine teve na minha vida
profissional: ela marcou, decididamente, a minha orientação para o estudo do
currículo como factor dominante na educação.


A segurança na Europa depois do atentado em Paris fez-me reviver
uma experiência de há mais de quarenta anos. É que terror na Europa, já houve –
e em diversas ocasiões.

Em Julho de 1973 participei, com mais seis colegas
portugueses, professores dos ensinos preparatório (designação do tempo, 5º e 6º
anos) e secundário, numa conferência organizada pela OCDE com o tema
“School-based curriculum development”, a qual decorreu na Universidade de
Coleraine, na Irlanda do Norte. Nessa altura, a Irlanda do Norte era um lugar
complicado para viajar: a instabilidade provocada pelo IRA (Irish Republicain
Army) estava ao rubro, com atentados constantes. Como é sabido, era no fundo
uma guerra religiosa, católicos contra protestantes.

Na viagem para Belfast, via Londres, na British Airways,
comecei a sentir os efeitos da instabilidade. Não havia o rigor que há hoje em
relação a passageiros, mas a revista da minha pasta em Heathrow foi à minúcia
de abrir a bolsa do cachimbo (podia lá ter um revólver…). Mas mais sério foi quando
aterrámos. Como estava à janela numa das filas do lado esquerdo do avião, vi aproximarem-se,
em passo acelerado, duas filas de soldados, de arma em riste, que formaram uma
ala junto à escada, por onde passámos na saída, em relativo desconforto, em
direcção à sala de entrega de bagagens.

Nós íamos ser alojados em Portrush, uma estância balnear a uns
dez quilómetros de Coleraine. Estavam à nossa espera dois carros que nos iriam
levar de Belfast a Portrush. Era no fim do dia, mas em Julho as noites começam
tarde naquela zona, por isso tivemos oportunidade de perceber que ao longo da
estrada havia muitos sinais de que levavam a sério a possibilidade de qualquer
ataque. De vez em vez, havia um bloqueio, com soldados a querer revistar o
carro. Não nessa vez, mas noutra ocasião pedirem mesmo as identificações dos
passageiros. Na rua principal de Portrush não se podia estacionar; de 3 em 3
metros havia bidons que o impediam, a fim de evitar os carros armadilhados.

Na abertura da Conferência, as primeiras palavras (encorajadoras…)
foram para avisar que se soasse um sinal de alarme deveríamos em primeiro lugar
deitar-nos do chão. E, nas viagens de autocarro que fazíamos diariamente
percebíamos sempre que se procurava antecipar qualquer surpresa. Um exemplo: no
fim-de-semana sem actividades, foi-nos oferecido um passeio, para o qual foi
distribuído um itinerário. Mas na altura, já no autocarro, foi-nos comunicado
que iríamos seguir um itinerário diferente, evidente manobra de despiste.

Vou referir apenas mais duas notas dessa viagem. Na altura,
a localidade mais afectada pelos terroristas era Londonderry, que distava uns
quarenta quilómetros de Portrush. Tínhamos travado relações amigáveis com o
director da escola secundária de Londonderry, e ele, a dada altura,
convidou-me, e ao Helder Pacheco (exactamente, o notável portuense, ao tempo
professor numa escola da sua cidade e que, com sua Mulher, apresentou uma
interessante exposição de trabalhos realizados pelos seus alunos e que foi
muito bem recebida por todos), a ir até à sua cidade para ver in loco o que se
passava. Além de nós dois foi também outro participante cuja nacionalidade e
nome me escapam.

A escola ficava fora
do perímetro da cidade, num local aprazível. A simpatia do director foi ao
ponto de nos oferecer de jantar e, depois, descemos para o centro. Ainda hoje
tenho presentes as imagens e as emoções desse fim de tarde. Os carros não
podiam circular, por isso o carro teve de estacionar num local relativamente
afastado e fizemos o percurso a pé. Bom: a rua principal tinha todos os prédios
numa semi-ruína; a única coisa que possuíam era fachada. Lembrava as imagens
que tínhamos dos edifícios de Londres depois dos bombardeamentos alemães.

A dada altura, começámos a ouvir passos de corrida e do nada
apareceu uma brigada de soldados, armados, a fazer-nos sinal para nos
afastarmos. O anfitrião sugeriu que deveriam estar à procura de alguns membros
do IRA refugidos perto. E desandámos, claro… Confesso que nesse momento tive
medo.

A nota final: numa segunda-feira, um participante que vinha
de Belfast contava aos amigos que no domingo a sua secretária tinha morrido
vítima de um ataque bombista. E dizia isso demonstrando um mínimo de emoção,
como se se tratasse de um “fait divers”.

Percebi então, juntando tudo o que já vira – e o que haveria
de ver – que mesmo numa situação de insegurança a continuidade necessária da vida
gera habituação. Apesar de estarem em constante alerta, as pessoas criam uma
espécie de carapaça e são capazes de reagir portando-se como sempre. Não ouvi
muitos queixumes. Genericamente, as pessoas comportavam-se como se tudo fosse
normal. Numa festa do hotel, os irlandeses riram, dançaram, fizeram
inclusivamente humor com a situação.

Eu próprio, à medida que o tempo passava, me fui habituando
e quase esquecendo o insólito de estar a viver numa zona de guerra. O que não
quer dizer que, quando ao fim das duas semanas regressei a Londres (e fiquei lá
mais uma semana), não me sentisse bem mais seguro.

À margem da mensagem principal deste post, uma referência
para a importância que a conferência de Coleraine teve na minha vida
profissional: ela marcou, decididamente, a minha orientação para o estudo do
currículo como factor dominante na educação.

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