A ministra estava do lado certo e não hesitou em contar

23-09-2020
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Não era uma palestra, anunciou desde logo a oradora no seu tom descontraído, eram reflexões sobre um tema essencial do humanismo e da democracia: a abolição da pena de morte. Francisca van Dunem recordou como essa pena capital foi tema muito vivo logo após a independência de Angola, na sua juventude, e como participou em discussões que não eram apenas filosóficas sobre o tema: "Estava do lado certo e isso conforta-me", concluiu.

A palestra acabou por ser mais magistral do que se tivesse sido o cumprimento de uma tarefa institucional. Era a sessão de comemoração dos 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal e Van Dunem falava diante de uma sala com mais de 150 pessoas. O convite do presidente do Centro Cultural

de Belém, Elísio Summavielle, tinha sido ambíguo: estava ali enquanto ministra mas também em nome pessoal. Na fila da frente tinha o presidente da Assembleia da República, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o embaixador de França, o Provedor de Justiça e alguns deputados. Também, naturalmente, o anfitrião e o diretor da Orquestra Metropolitana de Lisboa, António Mega Ferreira

A sala estava ainda sob o efeito do Souvenir de Florence, a dificílima obra de Tchaikovsky interpretada por um sexteto de cordas da Orquestra Metropolitana de Lisboa - a escolha era intencional: o Grão-Ducado da Toscana foi o primeiro Estado eliminar a pena de morte, ainda em 1786, iluminado pelas ideias de Cesare Bonesana, o marquês de Beccacia.

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Antes das palavras de Van Dunem, foi mostrada a mensagem em vídeo de Robert Badinter, o ex-ministro francês da Justiça que conseguiu a abolição da pena de morte no seu país a 30 de setembro de 1981, era François Mitterrand presidente. Impossibilitado por razões de saúde de estar presente em Lisboa, Badinter elogiou o "privilégio e a alta marca de civilização" de Portugal por ter sido o primeiro país europeu a tomar a decisão de abolir a pena capital sem nunca a ter revogado, nem mesmo no regime fascista. "É um progresso evidente e considerável da civilização." Otimista, disse ter confiança em que a pena de morte - essa "marca permanente de barbárie" - seja abolida em todo o mundo. Mas reconheceu: "Não tenho ilusões de que enquanto Trump estiver à frente dos Estados Unidos da América não haverá uma lei federal que acabe com a pena capital."

Foi a convocar um poeta francês que Francisca van Dunem começou, ao recordar L"Assassin Assassiné de Jean-Loup Dabadie, cantado por Julien Clerc nos anos 1980. Citou o caso dos últimos condenados à morte em França, tão relevante na reflexão de Robert Badinter que foi advogado de um deles.

E também ela trazia uma reflexão ancorada na realidade de tempos recentes. "Muito nova, com pouco mais de 20 anos, tive de participar em discussões sobre essa decisão sobre quem pode viver e quem deve morrer", disse, referindo-se aos tempos iniciais da independência de Angola, quando estava em causa o punição a aplicar a um grupo de militares do MPLA que matara uma família de portugueses. Alguns deles eram figuras históricas, tinham participado no assalto à Cadeia de São Paulo - a 7 de fevereiro de 1961, data em que se assinala o início da guerra pela independência.

"Éramos um grupo de jovens e não percebíamos as consequências do que estávamos a decidir. Naquele momento, abrimos um caminho que não se fechou e que teve desenvolvimentos que não esperávamos. Havia muita pressão para aplicar a pena capital. Nos tínhamos entre 20 e 30 anos e estávamos a discutir este problema. Hoje tenho 60 e tenho a consciência de que na altura tinha a posição certa. E isso conforta-me."

Podia ter terminado aqui o que a ministra tinha para dizer, a sala estava totalmente presa às suas palavras. Mas faltava falar sobre o que se estava a comemorar e ela trazia a história, o ambiente que se vivia em Portugal naquela época. Lembrou a propósito o professor Cavaleiro de Ferreira, que em 1967, no centenário da abolição, declarou: "Não é apenas um facto histórico, é uma instituição, um valor moral, e como tal conquista-se e carece de renovada defesa a cada geração." Van Dunem citou o marquês de Beccaria - cujo grande mérito "resulta de uma grande intuição humanista", e sublinhou que ele argumentou com "a demonstração da completa desnecessidade da pena de morte e a possibilidade de substituí-la por outra pena.

Afirmou-se menos otimista do que Badinter - "podemos não estar ainda perto de alcançar a abolição universal, é preciso multiplicar os esforços de todos os homens generosos que defenderam o abolicionismo", num tempo em que o terrorismo voltou a colocar o assunto em cima da mesa: "O medo gera a intolerância. Mas quer queiramos quer não, seja qual for a opinião de cada um, nenhum Estado tem o direito de matar e nenhum método de execução ultrapassa o facto de que a pena de morte é uma pena cruel." E sublinhou com satisfação que nenhuma das ex-colónias portuguesas tem pena de morte.

Terminou a palestra com o mesmo poema que tinha citado no início, desta vez traduzido: "Permitam-me que em vez de uma canção de amor eu cante o silêncio. É esta recordação que me assombra. Quando o cutelo caiu, o crime mudou de lado. Jaz esta noite na minha memória um assassino assassinado, assassinado."

Ferro Rodrigues chegou ao púlpito ainda com o som do prolongado aplauso. E foi precisamente por aí que começou: depois da reflexão de Francisca van Dunem, o que podia dizer? "Foi uma exposição pessoal extremamente forte e dura à volta desta questão e a grandeza da verdade foi extraordinária." Fez depois uma breve viagem sobre os factos históricos que antecederam a Carta de Lei de 1867, evocando a Constituição liberal de 1822, num tempo em que além da abolição da pena de morte estavam em causa igualmente o fim da escravatura e o alargamento da liberdade religiosa e do direito de voto.

Lembrou a execução de Gomes Freire de Andrade, em 1817, e a ação do Sinédrio, nos anos 1820. E anunciou que a Assembleia da República vai assinalar os 100 anos sobre a última execução - a de um soldado na frente de batalha, na Primeira Guerra Mundial, acusado de espionagem em 1917. As comemorações serão coordenadas por Guilherme d' Oliveira Martins, que estava também presente na sala.

Não era uma palestra, anunciou desde logo a oradora no seu tom descontraído, eram reflexões sobre um tema essencial do humanismo e da democracia: a abolição da pena de morte. Francisca van Dunem recordou como essa pena capital foi tema muito vivo logo após a independência de Angola, na sua juventude, e como participou em discussões que não eram apenas filosóficas sobre o tema: "Estava do lado certo e isso conforta-me", concluiu.

A palestra acabou por ser mais magistral do que se tivesse sido o cumprimento de uma tarefa institucional. Era a sessão de comemoração dos 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal e Van Dunem falava diante de uma sala com mais de 150 pessoas. O convite do presidente do Centro Cultural

de Belém, Elísio Summavielle, tinha sido ambíguo: estava ali enquanto ministra mas também em nome pessoal. Na fila da frente tinha o presidente da Assembleia da República, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o embaixador de França, o Provedor de Justiça e alguns deputados. Também, naturalmente, o anfitrião e o diretor da Orquestra Metropolitana de Lisboa, António Mega Ferreira

A sala estava ainda sob o efeito do Souvenir de Florence, a dificílima obra de Tchaikovsky interpretada por um sexteto de cordas da Orquestra Metropolitana de Lisboa - a escolha era intencional: o Grão-Ducado da Toscana foi o primeiro Estado eliminar a pena de morte, ainda em 1786, iluminado pelas ideias de Cesare Bonesana, o marquês de Beccacia.

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Antes das palavras de Van Dunem, foi mostrada a mensagem em vídeo de Robert Badinter, o ex-ministro francês da Justiça que conseguiu a abolição da pena de morte no seu país a 30 de setembro de 1981, era François Mitterrand presidente. Impossibilitado por razões de saúde de estar presente em Lisboa, Badinter elogiou o "privilégio e a alta marca de civilização" de Portugal por ter sido o primeiro país europeu a tomar a decisão de abolir a pena capital sem nunca a ter revogado, nem mesmo no regime fascista. "É um progresso evidente e considerável da civilização." Otimista, disse ter confiança em que a pena de morte - essa "marca permanente de barbárie" - seja abolida em todo o mundo. Mas reconheceu: "Não tenho ilusões de que enquanto Trump estiver à frente dos Estados Unidos da América não haverá uma lei federal que acabe com a pena capital."

Foi a convocar um poeta francês que Francisca van Dunem começou, ao recordar L"Assassin Assassiné de Jean-Loup Dabadie, cantado por Julien Clerc nos anos 1980. Citou o caso dos últimos condenados à morte em França, tão relevante na reflexão de Robert Badinter que foi advogado de um deles.

E também ela trazia uma reflexão ancorada na realidade de tempos recentes. "Muito nova, com pouco mais de 20 anos, tive de participar em discussões sobre essa decisão sobre quem pode viver e quem deve morrer", disse, referindo-se aos tempos iniciais da independência de Angola, quando estava em causa o punição a aplicar a um grupo de militares do MPLA que matara uma família de portugueses. Alguns deles eram figuras históricas, tinham participado no assalto à Cadeia de São Paulo - a 7 de fevereiro de 1961, data em que se assinala o início da guerra pela independência.

"Éramos um grupo de jovens e não percebíamos as consequências do que estávamos a decidir. Naquele momento, abrimos um caminho que não se fechou e que teve desenvolvimentos que não esperávamos. Havia muita pressão para aplicar a pena capital. Nos tínhamos entre 20 e 30 anos e estávamos a discutir este problema. Hoje tenho 60 e tenho a consciência de que na altura tinha a posição certa. E isso conforta-me."

Podia ter terminado aqui o que a ministra tinha para dizer, a sala estava totalmente presa às suas palavras. Mas faltava falar sobre o que se estava a comemorar e ela trazia a história, o ambiente que se vivia em Portugal naquela época. Lembrou a propósito o professor Cavaleiro de Ferreira, que em 1967, no centenário da abolição, declarou: "Não é apenas um facto histórico, é uma instituição, um valor moral, e como tal conquista-se e carece de renovada defesa a cada geração." Van Dunem citou o marquês de Beccaria - cujo grande mérito "resulta de uma grande intuição humanista", e sublinhou que ele argumentou com "a demonstração da completa desnecessidade da pena de morte e a possibilidade de substituí-la por outra pena.

Afirmou-se menos otimista do que Badinter - "podemos não estar ainda perto de alcançar a abolição universal, é preciso multiplicar os esforços de todos os homens generosos que defenderam o abolicionismo", num tempo em que o terrorismo voltou a colocar o assunto em cima da mesa: "O medo gera a intolerância. Mas quer queiramos quer não, seja qual for a opinião de cada um, nenhum Estado tem o direito de matar e nenhum método de execução ultrapassa o facto de que a pena de morte é uma pena cruel." E sublinhou com satisfação que nenhuma das ex-colónias portuguesas tem pena de morte.

Terminou a palestra com o mesmo poema que tinha citado no início, desta vez traduzido: "Permitam-me que em vez de uma canção de amor eu cante o silêncio. É esta recordação que me assombra. Quando o cutelo caiu, o crime mudou de lado. Jaz esta noite na minha memória um assassino assassinado, assassinado."

Ferro Rodrigues chegou ao púlpito ainda com o som do prolongado aplauso. E foi precisamente por aí que começou: depois da reflexão de Francisca van Dunem, o que podia dizer? "Foi uma exposição pessoal extremamente forte e dura à volta desta questão e a grandeza da verdade foi extraordinária." Fez depois uma breve viagem sobre os factos históricos que antecederam a Carta de Lei de 1867, evocando a Constituição liberal de 1822, num tempo em que além da abolição da pena de morte estavam em causa igualmente o fim da escravatura e o alargamento da liberdade religiosa e do direito de voto.

Lembrou a execução de Gomes Freire de Andrade, em 1817, e a ação do Sinédrio, nos anos 1820. E anunciou que a Assembleia da República vai assinalar os 100 anos sobre a última execução - a de um soldado na frente de batalha, na Primeira Guerra Mundial, acusado de espionagem em 1917. As comemorações serão coordenadas por Guilherme d' Oliveira Martins, que estava também presente na sala.

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