Orçamento: a maior novidade é o número zero

07-10-2020
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O Orçamento que aí vem pode, pela primeira vez, alcançar um equilíbrio entre gastos e despesas. Isso coloca um desafio, à esquerda e à direita.

| foto João Relvas/Lusa | foto António Pedro Santos/Lusa | foto António Cotrim/Lusa | foto Pedro Granadeiro/Global Imagens

Há dois milhões de portugueses que nasceram desde que Portugal aderiu ao euro, em 1999. Desde então, o principal tema da política portuguesa é o défice, o "desequilíbrio orçamental", a "disciplina das contas públicas", a "derrapagem dos gastos do Estado". Em quase 20 anos, Portugal falhou 15 vezes a meta, obrigatória nas regras europeias, de não ter mais gastos do que receitas, até 3% do produto interno bruto (PIB).

Os partidos sempre se dividiram sobre o "como" e o "porquê" - mesmo nos últimos anos, desde 2015, em que se registam excedentes orçamentais (o problema são os juros, que contam para o cálculo do défice). Veja-se como Passos Coelho e António Costa, ambos primeiros-ministros com "saldos primários positivos", divergiram e cada um criticou a forma como o outro alcançou essa marca.

Agora, pela primeira vez, o Orçamento prevê um défice de 0,2% - o que já seria o mais baixo da democracia. Na realidade, o número pode vir a ser ainda mais redondo. Nos últimos anos, Mário Centeno, o ministro das Finanças, cortou algumas décimas às suas próprias previsões. Em 2018, a meta de 1,1% já foi revista para 0,7%, uma diferença que, se for idêntica no próximo ano, pode significar uma palavra diferente. Com zero já não há défice, haverá equilíbrio - e tudo o que for para lá disso é excedente.

Diferenças à direita

Rui Rio disse, na sua primeira entrevista como líder do PSD, que com ele os portugueses poderiam contar com um "défice zero". Se António Costa o conseguir, como vai o PSD convencer os eleitores de que faria melhor? "É extemporâneo fazer qualquer comentário sem ter conhecimento do Orçamento", começa por nos explicar o vice-presidente do partido, Álvaro Almeida. "Nos últimos anos temos tido um governo que diz uma coisa e faz outra, que apresenta valores que depois não são cumpridos. No último Orçamento, o défice previsto era de 1,1%, e já houve uma revisão." Essa é a razão pela qual o PSD não parece muito preocupado com o efeito do défice no debate político. Aconteça o que acontecer, prevê Álvaro Almeida, "não podemos ignorar o défice".

© Pedro Granadeiro/Global Imagens

O CDS tem uma estratégia diferente. Adolfo Mesquita Nunes, vice-presidente do partido, escreveu em abril uma crónica a antecipar a "encantatória tese" segundo a qual o problema das contas públicas estaria resolvido em 2019. Hoje, o dirigente do CDS mantém a mesma argumentação. Se o governo alcançar o défice zero, terá ganho uma vantagem, mas seguiu um caminho errado: "É um resultado simbólico, mas não representa nada de estrutural."

"Estão a dar-nos razão. Agora fazem parte deste grande consenso."

A deputada Cecília Meireles explica porquê: "É feito às escondidas e de forma errada. Carregam na carga fiscal, através dos impostos indiretos e da degradação dos serviços públicos. É uma maneira errada de gerir a administração pública, que prejudica os cidadãos." Por isso, apesar de garantir que o défice zero não será uma surpresa para o CDS - "era o esperado" -, a deputada tem outro argumento. "Estão a dar-nos razão. Agora fazem parte deste grande consenso. Deviam pedir desculpas pelo que disseram no tempo do governo anterior. Agora perceberam que era importante o que fizemos."

Críticas à esquerda

Os partidos à direita do PS olham para o problema de forma diferente, como vemos. Mas à esquerda o "défice zero" também é um obstáculo. O PCP e o BE vão querer mostrar que a política orçamental do PS é de "centro", porque aceita o constrangimento imposto por Bruxelas e não se diferencia dos objetivos políticos de PSD e CDS. Mas os orçamentos têm sido aprovados à esquerda.

"É normal, quando a economia cresce, querer reduzir o défice. Não se pode é fazê-lo pondo em causa o investimento público."

Mariana Mortágua, deputada do BE, vê "uma armadilha" neste tema. "Ao sacralizar a ideia do défice zero, o PS está a usar a mesma retórica da austeridade da direita" - mesmo que permita a António Costa "fazer disto campanha". Ainda assim, esclarece Mortágua, "o BE não é contra o défice zero só por si". "É normal, quando a economia cresce, querer reduzir o défice. Não se pode é fazê-lo pondo em causa o investimento público, a proteção social, os serviços públicos. Não tem de ser assim. É uma questão de ritmo e de velocidade."

"A redução do défice assumida pelo governo português tem constituído um constrangimento."

Se o Bloco questiona a "imposição externa, pela União Europeia" das regras do défice, o PCP é ainda mais duro nas críticas ao governo e a Bruxelas. "A redução do défice assumida pelo governo português tem constituído um constrangimento a uma resposta plena aos problemas do país e às necessidades do seu desenvolvimento." Numa resposta enviada pelo partido às questões do DN, não é só a estratégia do governo que é questionada. É a política europeia que, para os comunistas, tenta "condicionar a soberania" de Portugal: "Para o PCP, o necessário rigor das contas públicas, aliás indispensável à própria soberania, não pode ser confundido com metas e objetivos arbitrários que visam exatamente o oposto, ou seja, condicionar a soberania."

O grande trunfo de António Costa no seu último Orçamento pode não passar, para o PCP, de "um fator de pressão e de ingerência sobre a decisão soberana de cada Estado de moldar a sua política orçamental".

Negociações do Orçamento do Estado serão retomadas em setembro. Mário Centeno tem até 15 de outubro para finalizar o documento. © António Pedro Santos/Lusa

É claro que este possível "défice zero" não passa, neste momento, de uma previsão. E continuará a ser apenas isso em setembro, quando os portugueses votarem nas eleições legislativas. Muito vai mudar até lá e muitas são as interrogações: se o crescimento económico dos parceiros europeus esfriar, ou houver um agravamento das tensões comerciais com os EUA, por exemplo, ou uma crise em Itália, nesses cenários o défice zero pode estar em causa.

Mas quase todos os partidos começam a preparar os seus argumentos, com base nessa probabilidade. O PCP e o BE mostrando que graças a si o controlo do défice não impediu a devolução de rendimentos; o CDS criticando a "forma errada" de gerir as contas públicas. Para já, só o PSD parece duvidar do "défice zero" que o Orçamento prevê.

O Orçamento que aí vem pode, pela primeira vez, alcançar um equilíbrio entre gastos e despesas. Isso coloca um desafio, à esquerda e à direita.

| foto João Relvas/Lusa | foto António Pedro Santos/Lusa | foto António Cotrim/Lusa | foto Pedro Granadeiro/Global Imagens

Há dois milhões de portugueses que nasceram desde que Portugal aderiu ao euro, em 1999. Desde então, o principal tema da política portuguesa é o défice, o "desequilíbrio orçamental", a "disciplina das contas públicas", a "derrapagem dos gastos do Estado". Em quase 20 anos, Portugal falhou 15 vezes a meta, obrigatória nas regras europeias, de não ter mais gastos do que receitas, até 3% do produto interno bruto (PIB).

Os partidos sempre se dividiram sobre o "como" e o "porquê" - mesmo nos últimos anos, desde 2015, em que se registam excedentes orçamentais (o problema são os juros, que contam para o cálculo do défice). Veja-se como Passos Coelho e António Costa, ambos primeiros-ministros com "saldos primários positivos", divergiram e cada um criticou a forma como o outro alcançou essa marca.

Agora, pela primeira vez, o Orçamento prevê um défice de 0,2% - o que já seria o mais baixo da democracia. Na realidade, o número pode vir a ser ainda mais redondo. Nos últimos anos, Mário Centeno, o ministro das Finanças, cortou algumas décimas às suas próprias previsões. Em 2018, a meta de 1,1% já foi revista para 0,7%, uma diferença que, se for idêntica no próximo ano, pode significar uma palavra diferente. Com zero já não há défice, haverá equilíbrio - e tudo o que for para lá disso é excedente.

Diferenças à direita

Rui Rio disse, na sua primeira entrevista como líder do PSD, que com ele os portugueses poderiam contar com um "défice zero". Se António Costa o conseguir, como vai o PSD convencer os eleitores de que faria melhor? "É extemporâneo fazer qualquer comentário sem ter conhecimento do Orçamento", começa por nos explicar o vice-presidente do partido, Álvaro Almeida. "Nos últimos anos temos tido um governo que diz uma coisa e faz outra, que apresenta valores que depois não são cumpridos. No último Orçamento, o défice previsto era de 1,1%, e já houve uma revisão." Essa é a razão pela qual o PSD não parece muito preocupado com o efeito do défice no debate político. Aconteça o que acontecer, prevê Álvaro Almeida, "não podemos ignorar o défice".

© Pedro Granadeiro/Global Imagens

O CDS tem uma estratégia diferente. Adolfo Mesquita Nunes, vice-presidente do partido, escreveu em abril uma crónica a antecipar a "encantatória tese" segundo a qual o problema das contas públicas estaria resolvido em 2019. Hoje, o dirigente do CDS mantém a mesma argumentação. Se o governo alcançar o défice zero, terá ganho uma vantagem, mas seguiu um caminho errado: "É um resultado simbólico, mas não representa nada de estrutural."

"Estão a dar-nos razão. Agora fazem parte deste grande consenso."

A deputada Cecília Meireles explica porquê: "É feito às escondidas e de forma errada. Carregam na carga fiscal, através dos impostos indiretos e da degradação dos serviços públicos. É uma maneira errada de gerir a administração pública, que prejudica os cidadãos." Por isso, apesar de garantir que o défice zero não será uma surpresa para o CDS - "era o esperado" -, a deputada tem outro argumento. "Estão a dar-nos razão. Agora fazem parte deste grande consenso. Deviam pedir desculpas pelo que disseram no tempo do governo anterior. Agora perceberam que era importante o que fizemos."

Críticas à esquerda

Os partidos à direita do PS olham para o problema de forma diferente, como vemos. Mas à esquerda o "défice zero" também é um obstáculo. O PCP e o BE vão querer mostrar que a política orçamental do PS é de "centro", porque aceita o constrangimento imposto por Bruxelas e não se diferencia dos objetivos políticos de PSD e CDS. Mas os orçamentos têm sido aprovados à esquerda.

"É normal, quando a economia cresce, querer reduzir o défice. Não se pode é fazê-lo pondo em causa o investimento público."

Mariana Mortágua, deputada do BE, vê "uma armadilha" neste tema. "Ao sacralizar a ideia do défice zero, o PS está a usar a mesma retórica da austeridade da direita" - mesmo que permita a António Costa "fazer disto campanha". Ainda assim, esclarece Mortágua, "o BE não é contra o défice zero só por si". "É normal, quando a economia cresce, querer reduzir o défice. Não se pode é fazê-lo pondo em causa o investimento público, a proteção social, os serviços públicos. Não tem de ser assim. É uma questão de ritmo e de velocidade."

"A redução do défice assumida pelo governo português tem constituído um constrangimento."

Se o Bloco questiona a "imposição externa, pela União Europeia" das regras do défice, o PCP é ainda mais duro nas críticas ao governo e a Bruxelas. "A redução do défice assumida pelo governo português tem constituído um constrangimento a uma resposta plena aos problemas do país e às necessidades do seu desenvolvimento." Numa resposta enviada pelo partido às questões do DN, não é só a estratégia do governo que é questionada. É a política europeia que, para os comunistas, tenta "condicionar a soberania" de Portugal: "Para o PCP, o necessário rigor das contas públicas, aliás indispensável à própria soberania, não pode ser confundido com metas e objetivos arbitrários que visam exatamente o oposto, ou seja, condicionar a soberania."

O grande trunfo de António Costa no seu último Orçamento pode não passar, para o PCP, de "um fator de pressão e de ingerência sobre a decisão soberana de cada Estado de moldar a sua política orçamental".

Negociações do Orçamento do Estado serão retomadas em setembro. Mário Centeno tem até 15 de outubro para finalizar o documento. © António Pedro Santos/Lusa

É claro que este possível "défice zero" não passa, neste momento, de uma previsão. E continuará a ser apenas isso em setembro, quando os portugueses votarem nas eleições legislativas. Muito vai mudar até lá e muitas são as interrogações: se o crescimento económico dos parceiros europeus esfriar, ou houver um agravamento das tensões comerciais com os EUA, por exemplo, ou uma crise em Itália, nesses cenários o défice zero pode estar em causa.

Mas quase todos os partidos começam a preparar os seus argumentos, com base nessa probabilidade. O PCP e o BE mostrando que graças a si o controlo do défice não impediu a devolução de rendimentos; o CDS criticando a "forma errada" de gerir as contas públicas. Para já, só o PSD parece duvidar do "défice zero" que o Orçamento prevê.

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