A nebulosa de Tancos

05-05-2020
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António Costa diz que “ainda havemos de saber o que cada um sabia sobre esta história de Tancos”. Já Marcelo Rebelo de Sousa disse que estava a ser criada uma “nebulosa” para impedir que fossem apanhados os responsáveis pelo furto das armas

A instituição militar foi sempre um dos mais importantes esteios do Estado português desde a fundação da nacionalidade. Precisamente por isso, as forças armadas devem ser prestigiadas e defendidas, enquanto elemento fundamental da nossa democracia. O episódio de Tancos está, no entanto, a constituir um rude golpe nas nossas forças armadas, sendo mais do que evidente que a gestão política do assunto está a ser totalmente desastrada.

A gravidade do caso surge em primeiro lugar com o furto das armas, sendo inconcebível que, num país membro da NATO, possa material militar vir a ser furtado desta maneira, com enormes riscos para a segurança europeia, e que ninguém tenha assumido imediatamente a responsabilidade política pelo sucedido. Antes pelo contrário, os nossos governantes decidiram pura e simplesmente brincar com a instituição militar. O ministro da Defesa de então, Azeredo Lopes, proclamou que assumia a responsabilidade política, mas permaneceu alegremente no cargo, como se isso nada significasse, e o primeiro-ministro tudo fez para o defender, chegando a declarar que o mesmo não tinha obrigação de guardar o paiol.

Em seguida surge o episódio da recuperação das armas, de uma gravidade ainda maior a partir do momento em que se soube que se tratou de uma farsa montada para acalmar a enorme preocupação causada pelo furto. Felizmente, a anterior procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, decidiu actuar como lhe competia, desencadeando a denominada Operação Húbris em ordem a punir os responsáveis por esta encenação pelo crime de obstrução à justiça. O nome da operação foi bem atribuído, já que a expressão húbris significa em grego tudo o que passa das medidas, correspondendo à actuação daquele que julga que pode fazer tudo o que quiser. Só que, na mitologia grega, à húbris costuma seguir-se a némesis, encarada como a reacção dos deuses contra aqueles que ultrapassam os seus limites, seja para o bem, seja para o mal. Só que quem foi objecto de némesis não foram os responsáveis por este encobrimento, mas antes a própria Joana Marques Vidal, que não foi reconduzida como procuradora-geral da República, obviamente devido ao incómodo que a sua actuação estava a causar ao poder político.

Mas a cessação do mandato de Joana Marques Vidal não impediu que se começasse a perceber que a farsa do encobrimento de Tancos poderia ser conhecida ao mais alto nível. Em consequência, o ministro Azeredo Lopes, em quem ainda há pouco tempo António Costa manifestava a sua plena confiança, foi rapidamente substituído pelo embaixador da União Europeia em Brasília, João Gomes Cravinho, o qual, por estar a nada menos que 7280 quilómetros de distância, seguramente estaria ao abrigo de qualquer onda de choque relativa a Tancos. O mesmo, mal tomou posse, obteve a demissão do chefe do Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte, prontamente aceite pelo Presidente da República. As razões desta demissão nunca foram esclarecidas, referindo a carta de demissão que se tratava de “razões pessoais”, mas tendo o próprio explicado em mensagem dirigida ao pessoal civil e militar do exército que “circunstâncias políticas assim o exigiram”.

Entretanto, os nossos governantes entretêm-se a mandar recados uns aos outros sobre Tancos na comunicação social. António Costa, depois de perguntado sobre o seu conhecimento dos documentos que o ex-chefe de gabinete do ministro afirmou ter recebido, respondeu que “ainda havemos de saber o que cada um sabia sobre esta história de Tancos”. Já Marcelo Rebelo de Sousa, questionado sobre o conhecimento que a sua casa militar teria sobre o assunto, disse que estava a ser criada uma “nebulosa” para impedir que fossem apanhados os responsáveis pelo furto das armas, acrescentando: “Se pensam que me calam, não me calam.”

As nebulosas são nuvens de poeira cósmica que podem ter até centenas de anos-luz de diâmetro, mas são muito pouco densas, tendo por isso um peso muito reduzido. Este caso de Tancos parece algo muito mais concreto do que uma nebulosa, assemelhando-se a um cometa em queda vertiginosa que pode atingir tanto as nossas forças armadas como até o centro do regime político. Era bom, por isso, que os deputados, na comissão de inquérito já aprovada, não se limitassem a proclamar verdades oficiais, como noutras comissões de triste memória, ou a discutir questões de lana--caprina (como se o primeiro-ministro responde na comissão ou no plenário), mas antes esclarecessem de forma cabal e absoluta este lamentável caso. É a dignidade das nossas forças armadas que está em causa.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

António Costa diz que “ainda havemos de saber o que cada um sabia sobre esta história de Tancos”. Já Marcelo Rebelo de Sousa disse que estava a ser criada uma “nebulosa” para impedir que fossem apanhados os responsáveis pelo furto das armas

A instituição militar foi sempre um dos mais importantes esteios do Estado português desde a fundação da nacionalidade. Precisamente por isso, as forças armadas devem ser prestigiadas e defendidas, enquanto elemento fundamental da nossa democracia. O episódio de Tancos está, no entanto, a constituir um rude golpe nas nossas forças armadas, sendo mais do que evidente que a gestão política do assunto está a ser totalmente desastrada.

A gravidade do caso surge em primeiro lugar com o furto das armas, sendo inconcebível que, num país membro da NATO, possa material militar vir a ser furtado desta maneira, com enormes riscos para a segurança europeia, e que ninguém tenha assumido imediatamente a responsabilidade política pelo sucedido. Antes pelo contrário, os nossos governantes decidiram pura e simplesmente brincar com a instituição militar. O ministro da Defesa de então, Azeredo Lopes, proclamou que assumia a responsabilidade política, mas permaneceu alegremente no cargo, como se isso nada significasse, e o primeiro-ministro tudo fez para o defender, chegando a declarar que o mesmo não tinha obrigação de guardar o paiol.

Em seguida surge o episódio da recuperação das armas, de uma gravidade ainda maior a partir do momento em que se soube que se tratou de uma farsa montada para acalmar a enorme preocupação causada pelo furto. Felizmente, a anterior procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, decidiu actuar como lhe competia, desencadeando a denominada Operação Húbris em ordem a punir os responsáveis por esta encenação pelo crime de obstrução à justiça. O nome da operação foi bem atribuído, já que a expressão húbris significa em grego tudo o que passa das medidas, correspondendo à actuação daquele que julga que pode fazer tudo o que quiser. Só que, na mitologia grega, à húbris costuma seguir-se a némesis, encarada como a reacção dos deuses contra aqueles que ultrapassam os seus limites, seja para o bem, seja para o mal. Só que quem foi objecto de némesis não foram os responsáveis por este encobrimento, mas antes a própria Joana Marques Vidal, que não foi reconduzida como procuradora-geral da República, obviamente devido ao incómodo que a sua actuação estava a causar ao poder político.

Mas a cessação do mandato de Joana Marques Vidal não impediu que se começasse a perceber que a farsa do encobrimento de Tancos poderia ser conhecida ao mais alto nível. Em consequência, o ministro Azeredo Lopes, em quem ainda há pouco tempo António Costa manifestava a sua plena confiança, foi rapidamente substituído pelo embaixador da União Europeia em Brasília, João Gomes Cravinho, o qual, por estar a nada menos que 7280 quilómetros de distância, seguramente estaria ao abrigo de qualquer onda de choque relativa a Tancos. O mesmo, mal tomou posse, obteve a demissão do chefe do Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte, prontamente aceite pelo Presidente da República. As razões desta demissão nunca foram esclarecidas, referindo a carta de demissão que se tratava de “razões pessoais”, mas tendo o próprio explicado em mensagem dirigida ao pessoal civil e militar do exército que “circunstâncias políticas assim o exigiram”.

Entretanto, os nossos governantes entretêm-se a mandar recados uns aos outros sobre Tancos na comunicação social. António Costa, depois de perguntado sobre o seu conhecimento dos documentos que o ex-chefe de gabinete do ministro afirmou ter recebido, respondeu que “ainda havemos de saber o que cada um sabia sobre esta história de Tancos”. Já Marcelo Rebelo de Sousa, questionado sobre o conhecimento que a sua casa militar teria sobre o assunto, disse que estava a ser criada uma “nebulosa” para impedir que fossem apanhados os responsáveis pelo furto das armas, acrescentando: “Se pensam que me calam, não me calam.”

As nebulosas são nuvens de poeira cósmica que podem ter até centenas de anos-luz de diâmetro, mas são muito pouco densas, tendo por isso um peso muito reduzido. Este caso de Tancos parece algo muito mais concreto do que uma nebulosa, assemelhando-se a um cometa em queda vertiginosa que pode atingir tanto as nossas forças armadas como até o centro do regime político. Era bom, por isso, que os deputados, na comissão de inquérito já aprovada, não se limitassem a proclamar verdades oficiais, como noutras comissões de triste memória, ou a discutir questões de lana--caprina (como se o primeiro-ministro responde na comissão ou no plenário), mas antes esclarecessem de forma cabal e absoluta este lamentável caso. É a dignidade das nossas forças armadas que está em causa.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

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