.Por Nuno Brederode Santos.O CHEFE DO ESTADO-MAIOR-GENERAL das Forças Armadas da Guiné-Bissau, máxima expressão operacional do poder militar local, foi assassinado. Horas depois, o seu adversário político (!) e Presidente da República foi-o também. Na própria casa e à vista da mulher. A golpes de catana e tiros à queima-roupa. Raiava o dia e a cidade fechou-se nos medos dos seus habitantes: nos medos em que ninguém é solidário..De manhã, porém, nada mais aconteceu. As autoridades que restam lamentam, com litúrgica e descoroçoante rapidez, o sucedido e logo anunciam a boa nova: não houve golpe de Estado. Em Portugal, pai conflituoso de pesados ontens que os realismos da vida - CPLP incluída - foram tentativamente reaproximando, responsáveis de todos os partidos proclamaram também, por entre alívios: não houve golpe de Estado..No dia 10, Nino Vieira vai a soterrar, com os adereços do calculismo da sua República. Por isso, ninguém dirá que desce à campa o guerrilheiro que se foi tornando no telúrico e iracundo destruidor das melhores promessas do futuro dos sonhos de Amílcar Cabral. Entre muitos dos seus, como entre nós, leva as saudades com ele. Parece que o que agora importa é que a situação regresse à normalidade, e não repensar a normalidade da situação que regressa. Também ninguém quererá pôr a nu a evidência: se não houve golpe de Estado, não foi por falta de golpe, mas só por falta de Estado. .Praticamente desde sempre - um sempre reportado à independência - que a Guiné-Bissau emigrou da lógica e da prática institucionais que nós por cá partilhamos. E este sangrento episódio só confirma que, por lá, o mandato político é uma autorização de desempenho de uma gestão orientada para a satisfação das reivindicações dos militares. Por isso mesmo, o mandato não é o cruzeiro entre dois sufrágios. O mandato tem por limite, entre cada dois sufrágios, a duração da paciência dos militares. O resto é menor. A catana e a pistola suprem a vitalícia gratidão do povo aos que se arrogam méritos antigos de uma libertação que já poucos podem recordar. A fatia dos lucros que as rotas atlânticas da droga deixam nos seus entrepostos é magra, não dá para todos. Custa tudo em soberania, em desenvolvimento, em saúde e em bem- estar. E só chega para dar condições de felicidade a uns quantos bravos mal fardados se entretanto eles se forem liquidando entre si. .Passaram mais de três décadas. Não há nostalgia ou remorso coloniais que razoavelmente nos envolvam nas actuais rotinas do sangue e da pobreza. Estivemos lá quando Portugal não vinculava os portugueses e saímos de lá logo que os portugueses passaram a vincular Portugal. Não somos grande potência, militar ou económica. Não somos vizinhos geográficos, como a Guiné ou o Senegal. Temos, é certo, pessoas e interesses a defender, mas isso temo-lo também no Brasil, na Venezuela ou em França. É, por isso, positiva a recolocação de um embaixador em Bissau. Mas há que pisar com cuidado o terreno bilateral, para que não nos sejam pedidas responsabilidades a que não poderemos corresponder. A boa consciência da comunidade internacional gosta de se servir do primeiro voluntário néscio, como alguns accionistas gostam de ter um otário por gestor. É certo que não nos está na natureza ver morrer na Guiné pessoas e liberdades, com a displicência snobe com que se inauguram as corridas de Ascott. É verdade que ainda nos atrapalham os ecos de um Benfica-Sporting em Bissau. Há muito de solidariedade e cooperação por fazer - e isso deve ser feito. No político, no económico, no cultural, no social. Mas deve sê-lo usando os instrumentos multilaterais, num delicado exercício de juízo sábio e mãos treinadas na microcirurgia. Sem protagonismos que permitam à comunidade internacional isentar-se ou aos candidatos a um mau protagonismo instalarem-se. Sem as paixões que cegam (e que sobreviveram aos tempos do "amor de mãe") e sem o cinismo de esquecer que temos cá muitos filhos de quantos por lá ficaram..Até ver, parece ser esta a postura política do MNE e ser este o sentido da missão de João Gomes Cravinho, por via da actual presidência da CLP. Oxalá seja. Porque, se o não for, só encontraremos riscos e problemas. E porque, para além dessa fronteira, só há pasto para as saudades do império. Um investimento caro e sem retorno. Que deve ser pago por quem as tiver..«DN» de 8 de Março de 2009.NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.
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.Por Nuno Brederode Santos.O CHEFE DO ESTADO-MAIOR-GENERAL das Forças Armadas da Guiné-Bissau, máxima expressão operacional do poder militar local, foi assassinado. Horas depois, o seu adversário político (!) e Presidente da República foi-o também. Na própria casa e à vista da mulher. A golpes de catana e tiros à queima-roupa. Raiava o dia e a cidade fechou-se nos medos dos seus habitantes: nos medos em que ninguém é solidário..De manhã, porém, nada mais aconteceu. As autoridades que restam lamentam, com litúrgica e descoroçoante rapidez, o sucedido e logo anunciam a boa nova: não houve golpe de Estado. Em Portugal, pai conflituoso de pesados ontens que os realismos da vida - CPLP incluída - foram tentativamente reaproximando, responsáveis de todos os partidos proclamaram também, por entre alívios: não houve golpe de Estado..No dia 10, Nino Vieira vai a soterrar, com os adereços do calculismo da sua República. Por isso, ninguém dirá que desce à campa o guerrilheiro que se foi tornando no telúrico e iracundo destruidor das melhores promessas do futuro dos sonhos de Amílcar Cabral. Entre muitos dos seus, como entre nós, leva as saudades com ele. Parece que o que agora importa é que a situação regresse à normalidade, e não repensar a normalidade da situação que regressa. Também ninguém quererá pôr a nu a evidência: se não houve golpe de Estado, não foi por falta de golpe, mas só por falta de Estado. .Praticamente desde sempre - um sempre reportado à independência - que a Guiné-Bissau emigrou da lógica e da prática institucionais que nós por cá partilhamos. E este sangrento episódio só confirma que, por lá, o mandato político é uma autorização de desempenho de uma gestão orientada para a satisfação das reivindicações dos militares. Por isso mesmo, o mandato não é o cruzeiro entre dois sufrágios. O mandato tem por limite, entre cada dois sufrágios, a duração da paciência dos militares. O resto é menor. A catana e a pistola suprem a vitalícia gratidão do povo aos que se arrogam méritos antigos de uma libertação que já poucos podem recordar. A fatia dos lucros que as rotas atlânticas da droga deixam nos seus entrepostos é magra, não dá para todos. Custa tudo em soberania, em desenvolvimento, em saúde e em bem- estar. E só chega para dar condições de felicidade a uns quantos bravos mal fardados se entretanto eles se forem liquidando entre si. .Passaram mais de três décadas. Não há nostalgia ou remorso coloniais que razoavelmente nos envolvam nas actuais rotinas do sangue e da pobreza. Estivemos lá quando Portugal não vinculava os portugueses e saímos de lá logo que os portugueses passaram a vincular Portugal. Não somos grande potência, militar ou económica. Não somos vizinhos geográficos, como a Guiné ou o Senegal. Temos, é certo, pessoas e interesses a defender, mas isso temo-lo também no Brasil, na Venezuela ou em França. É, por isso, positiva a recolocação de um embaixador em Bissau. Mas há que pisar com cuidado o terreno bilateral, para que não nos sejam pedidas responsabilidades a que não poderemos corresponder. A boa consciência da comunidade internacional gosta de se servir do primeiro voluntário néscio, como alguns accionistas gostam de ter um otário por gestor. É certo que não nos está na natureza ver morrer na Guiné pessoas e liberdades, com a displicência snobe com que se inauguram as corridas de Ascott. É verdade que ainda nos atrapalham os ecos de um Benfica-Sporting em Bissau. Há muito de solidariedade e cooperação por fazer - e isso deve ser feito. No político, no económico, no cultural, no social. Mas deve sê-lo usando os instrumentos multilaterais, num delicado exercício de juízo sábio e mãos treinadas na microcirurgia. Sem protagonismos que permitam à comunidade internacional isentar-se ou aos candidatos a um mau protagonismo instalarem-se. Sem as paixões que cegam (e que sobreviveram aos tempos do "amor de mãe") e sem o cinismo de esquecer que temos cá muitos filhos de quantos por lá ficaram..Até ver, parece ser esta a postura política do MNE e ser este o sentido da missão de João Gomes Cravinho, por via da actual presidência da CLP. Oxalá seja. Porque, se o não for, só encontraremos riscos e problemas. E porque, para além dessa fronteira, só há pasto para as saudades do império. Um investimento caro e sem retorno. Que deve ser pago por quem as tiver..«DN» de 8 de Março de 2009.NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.