Tentações autocráticas em tempo de crise

31-07-2020
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A violenta crise que estamos e vamos viver, pelo menos por mais um ano, coincide com um preocupante tempo de tendência autocrática e um mais animador tempo de políticas económicas mais adaptadas ao tipo de doença que a economia vai ter.

Em Portugal estamos a integrar mais rapidamente a onda autocrática e da denominada “cancel culture” do que a mudar de política económica. As restrições financeiras que ainda enfrentamos impede que se vá mais longe nas medidas de estímulo da economia. Esses condicionalismos estão reflectidos no elevado montante de dívida pública e privada, e no resultado de cinco anos de uma gestão política da conjuntura e de distribuição do dinheiro que o fraco e frágil crescimento económico ia gerando, sem o mínimo de esforço para mudar estruturalmente fosse o que fosse.

Durante os últimos dias temos assistido a pequenos eventos que reforçam as preocupações com os crescentes sinais de se querer fugir ao escrutínio, confundir o Estado com aqueles que o lideram, perseguir os protagonistas das criticas ou que ameacem a ordem vigente, deixar cair os valores em nome do dinheiro ou mesmo reescrever a história. Com a promessa que desta vez será diferente em matéria de política económica, com muitos planos para aproveitar o dinheiro europeu, que nos próximos três anos está disponível no equivalente ao enorme envelope de mais de 3% do PIB de 2019.

Eis alguns eventos dos últimos tempos que nos deviam preocupar:

O primeiro-ministro com mais tempo para “trabalhar”. O primeiro-ministro só terá de ir obrigatoriamente à Assembleia da República uma vez de dois em dois meses, numa votação de Bloco Central mas que teve 28 socialistas e apenas 7 sociais-democratas a votarem contra. Vai ser assim a partir de Setembro, uma decisão que nos deixa com mais perguntas do que respostas.

O que leva um partido da oposição, como o PSD (todos os outros foram contra), a querer o primeiro-ministro menos vezes no Parlamento? E porque razão decidir agora, quando o Governo depende mais do que nunca do Parlamento – não há Gerigonça 2.0, apesar de António Costa dizer que a quer –, quando estamos perante a pior crise das nossas vidas e quando vão chegar a muito curto prazo de Bruxelas o equivalente a 3% do PIB de 2019 que teremos de aplicar até 2023? E porque razão ainda deixar que isso aconteça quando são preocupantes os sinais de controlo do Estado por parte do Governo, dificultando o seu escrutínio em diversas frentes, colocando pedras nos pesos e contrapesos que o regime tem? (Veja-se o Tribunal de Contas, com a pandemia a justificar que seja contornado; veja-se o que se quer fazer com a Unidade Técnica de Apoio Orçamental a pretexto de alterações à Lei de Enquadramento Orçamental ou ainda como o Governo acabou por fazer transitar o ex-ministro das Finanças para governador do Banco de Portugal em pouco mais de um mês, só para dar poucos exemplos).

O líder do PSD Rui Rio justifica essa convergência com a vontade de António Costa, considerando que os debates quinzenais não são eficazes no escrutínio do Governo e que o primeiro-ministro não pode passar a vida no Parlamento, tem de trabalhar. Enganámo-nos os que pensámos que prestar contas aos eleitos pelo povo era um dos mais importantes trabalhos do primeiro-ministro. E se o escrutínio não se faz é, frequentemente, porque o Governo se recusa a responder. Um exemplo no último debate do Estado da Nação. O deputado do PSD Ricardo Batista Leite quer saber a razão de entregar à ANA as multas aplicadas a quem entra em Portugal sem teste de Covid feito, em vez de usar esses recursos também para o SNS. O que respondeu a ministra da Saúde? Que o SNS não precisa de dinheiro e que não foi o PS a privatizar a ANA. E por aqui se ficou, como se as respostas de Marta Temido fizessem algum sentido. Ninguém ficou esclarecido e não foi por responsabilidade de uma pergunta que não fosse justificada.

Com o que se decidiu, o regime fica politicamente mais pobre, os deputados do PS e do PSD que não tiveram a coragem de votar contra desvalorizaram o papel que têm, mais jovem verão ainda mais o Parlamento como uma instituição que não percebem para que serve. E se o objectivo foi calar o Chega e o Iniciativa Liberal, é um preocupante sinal de que não se está a perceber como e porque é que esses partidos, especialmente o Chega, estão a conquistar eleitores. A política também tem horror ao vazio e um debate que não se faz no Parlamento far-se-á noutros lugares, pior enquadrado e gerando mais riscos para a democracia. A censura nunca foi boa.

Tudo se compra, tudo se vende, depende do preço? Será esta uma realidade por muito que desejemos que não seja assim? Pois é uma das mais horríveis constatações destes últimos tempos. Todos festejamos os biliões que foram aprovados numa das mais longas Cimeiras europeias da sua história. Mas por trás desses biliões houve uma cedência europeia e todos passámos a ser cúmplices do que se passar na Hungria e na Polónia, dois países que começam a ser generalizadamente apontados como não sendo democracias.

António Costa foi ao ponto de se reunir com Viktor Orbán num pragmatismo que lhe gerou justas criticas, das quais até se defendeu num artigo de opinião no Públici, em resposta a Rui Tavares. Disse o primeiro-ministro que “o Estado de Direito deve ser tratado na sede própria e os valores não se compram nem se negoceiam”, a clarificar a sua posição em critica a uma notícia da Lusa, como se pode ler aqui. Pois parece que sim, que não se compram mas podem estar à venda como se afirma na newsletter do Politico.

Atém onde pode ir o pragmatismo? E quanto nos pode custar? Quantos se recordam do nazismo? Fechar os olhos ao que se passa na Hungria vale o dinheiro que vamos receber de Bruxelas?

Fiscalizar o discurso de ódio o que é? Enquanto na frente europeia se desvaloriza as ameaças ao Estado de Direito, internamente o Governo preocupa-se com o “discurso de ódio” na internet, que quer “monitorizar”. Esperemos que a ministra de Estado e da Presidência Mariana Vieira da Silva, que se tem revelado uma promessa no espaço político, tenha consciência dos riscos que este seu projecto comporta.

As ferramentas que um Estado de Direito tem para combater os “discursos de ódio” é a lei, são os tribunais. É assustador ter no Governo um fiscalizador de discursos. Temos o legítimo receio de ver caladas opiniões criticas para quem nos governa. E sabemos como são grandes as tentações dos governantes de calar criticas, de retirar espaço a quem não está com eles alinhados.

No Estado Novo, como em qualquer ditadura, um dos modelos é impedir que as pessoas que criticam o Governo ganhem o seu pão de cada dia. Por aqui, embora ainda sejam mais pela voz do que pela acção, vamos assistindo a manifestações de vontade que o mesmo aconteça quando, por exemplo, se considera ilegítimo criticar o funcionamento do Estado caso se trabalhe ou se tenham negócios com o Estado.

O melhor desejo que podemos ter para que as democracias passem incólumes, por estes tempos extraordinariamente difíceis que estamos e ainda vamos enfrentar, é que todos conseguirem conversar com todos, dos simpatizantes do Chega aos simpatizantes do BE, dos LGBTI aos grupos religiosos mais conservadores, dos imigrantes aos nacionais, de pessoas de todas as cores. O pior que aconteceu nos Estados Unidos foi exactamente os silos que se criaram entre Democratas e Republicanos. É difícil enfrentar quem se dirige a nós com ódio? Sem dúvida (e digo-o com experiência de quem também o enfrenta nas redes sociais). Mas é preferível saber que existe e saber que o outro, como cada um de nós, é livre, cumprindo a lei.

Neste enquadramento, a abordagem que se está a ter com o Chega é um erro. Não é calando ou perseguindo o Chega que se vai conseguir evitar que continue a subir nas intenções de voto como aliás está a acontecer. André Ventura está a perceber, como poucos, as preocupações de populações sub-urbanas ou rurais, trabalhadores de salários baixos que vivem em bairros onde diversas culturas se chocam, onde uns trabalham e outros recebem subsídios. (A revista Visão da semana passada tem uma reportagem de Miguel Carvalho sobre o financiamento do Chega onde um empresário confessa que ouviu falar de André Ventura através dos trabalhadores na herdade no Alentejo).

Se há mudança que se nota nestes últimos cinco anos é a incapacidade de conviver com quem tem uma opinião diferente da nossa. Há alturas em que parecemos estar em pleno PREC, nas paixões do pós-25 de Abril. Um dos mais graves casos, recentes, foi o manifesto de um grupo de académicos contra o professor e investigador Riccardo Marchi e que António Barreto tão bem criticou no Público.

Estamos a importar o que de pior vem da América e a chegar ao ponto de impedir o livre pensamento, a investigação sem fronteiras, a liberdade de opinião. Esperemos que seja transitório, uma moda, e que continuemos a falar uns com os outros, mesmo transmitindo ódio enquanto discutimos. Mas estas tendências não recomendam que se desvalorize o Parlamento, como aconteceu com o fim dos debates quinzenais.

Não vai haver austeridade? Dois terços dos portugueses não acreditam. De acordo com o inquérito do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP) da Universidade Católica feito para a RTP e o Público, daqui a dois anos os portugueses esperam ver um país mais pobre, mais desigual, com menos emprego e com mais austeridade. É um retrato assustador mais com uma elevada probabilidade de ser realista.

Se austeridade significa apenas que estaremos mais pobres, não tenhamos qualquer dúvida que assim será. Se austeridade significa que voltaremos a precisar de cortar salários à função pública e aos pensionistas, a resposta é mais incerta e mais no sentido de “não sabemos, mas a probabilidade não é zero”.

De nada resolve dizê-lo, mas os últimos cinco anos foram um desperdício em matéria de preparar o país para uma crise. Sim, é verdade que nunca se pensou que seria tão grave, mas o que fizemos desde 2015 foi negar os problemas que temos: uma Administração Pública que precisa de se modernizar e ser mais eficiente, uma Segurança Social que não é sustentável, um enquadramento empresarial pouco amigo do investimento e do desinvestimento, das falências. Vivemos cinco anos a distribuir o pouco que economia ia crescendo, graças fundamentalmente ao turismo. Cometemos exactamente os mesmos erros do passado: assim que chegou a bonança, entrámos em processo de negação e rejeitámos resolver alguns problemas que se enfrentariam com menos dor na fase de crescimento.

Exactamente como no passado, queremos agora em plena crise fazer tudo. O plano Costa Silva tem a grande vantagem de sistematizar tudo aquilo que durante anos especialistas de diversas áreas têm apontado como o caminho para o desenvolvimento de Portugal. Mas nada conseguiremos fazer se não resolvermos estrangulamentos importantes que vão da administração pública à Justiça. Vale, por isso, a pena, no plano, ler o último capítulo: “Condicionantes, limitações e oportunidades”.

Sendo uma realidade que a abordagem de combate a esta crise está a ser completamente diferente daquela que se teve na crise financeira e na das dívidas soberanas, sendo as actuais políticas muito mais vantajosas para Portugal, também é verdade que rapidamente tudo voltará ao normal, em matéria de políticas, quando o crescimento da economia alemã deixar de estar condicionado pelo que se passa em Itália. As regras do Pacto de Estabilidade vão regressar e os países do Norte da Europa, que venderam caro o seu apoio ao plano de recuperação, continuarão atentos à aplicação do dinheiro. É grande a probabilidade de voltarmos a ter aquilo a que chamámos austeridade na era da troika.

Temos pouco tempo e muito dinheiro, o que é um enorme desafio para um Governo que está mais habituado a ir gerindo o que tem do que a concretizar medidas e projectos. O dinheiro que vem de Bruxelas, e que o primeiro-ministro no debate do Estado da Nação disse que atinge os 6,7 mil milhões de euros por ano de 2021 a 2023, não garante o desenvolvimento. Já tivemos dinheiro que gastamos mal gasto. Aquilo que precisamos de fazer exige coragem política que não se vê existir.

Estamos a vamos viver tempo muito difíceis num enquadramento em que a sociedade portuguesa parece estar cada vez mais dividida, influenciada por algumas modas norte-americanas que separam as comunidades urbanas das rurais e sub-urbanas. As tentações do Governo e do PSD, com ferramentas diferentes, de controlarem esta onda, calando os discursos e as opiniões só pode dar mau resultado.

A violenta crise que estamos e vamos viver, pelo menos por mais um ano, coincide com um preocupante tempo de tendência autocrática e um mais animador tempo de políticas económicas mais adaptadas ao tipo de doença que a economia vai ter.

Em Portugal estamos a integrar mais rapidamente a onda autocrática e da denominada “cancel culture” do que a mudar de política económica. As restrições financeiras que ainda enfrentamos impede que se vá mais longe nas medidas de estímulo da economia. Esses condicionalismos estão reflectidos no elevado montante de dívida pública e privada, e no resultado de cinco anos de uma gestão política da conjuntura e de distribuição do dinheiro que o fraco e frágil crescimento económico ia gerando, sem o mínimo de esforço para mudar estruturalmente fosse o que fosse.

Durante os últimos dias temos assistido a pequenos eventos que reforçam as preocupações com os crescentes sinais de se querer fugir ao escrutínio, confundir o Estado com aqueles que o lideram, perseguir os protagonistas das criticas ou que ameacem a ordem vigente, deixar cair os valores em nome do dinheiro ou mesmo reescrever a história. Com a promessa que desta vez será diferente em matéria de política económica, com muitos planos para aproveitar o dinheiro europeu, que nos próximos três anos está disponível no equivalente ao enorme envelope de mais de 3% do PIB de 2019.

Eis alguns eventos dos últimos tempos que nos deviam preocupar:

O primeiro-ministro com mais tempo para “trabalhar”. O primeiro-ministro só terá de ir obrigatoriamente à Assembleia da República uma vez de dois em dois meses, numa votação de Bloco Central mas que teve 28 socialistas e apenas 7 sociais-democratas a votarem contra. Vai ser assim a partir de Setembro, uma decisão que nos deixa com mais perguntas do que respostas.

O que leva um partido da oposição, como o PSD (todos os outros foram contra), a querer o primeiro-ministro menos vezes no Parlamento? E porque razão decidir agora, quando o Governo depende mais do que nunca do Parlamento – não há Gerigonça 2.0, apesar de António Costa dizer que a quer –, quando estamos perante a pior crise das nossas vidas e quando vão chegar a muito curto prazo de Bruxelas o equivalente a 3% do PIB de 2019 que teremos de aplicar até 2023? E porque razão ainda deixar que isso aconteça quando são preocupantes os sinais de controlo do Estado por parte do Governo, dificultando o seu escrutínio em diversas frentes, colocando pedras nos pesos e contrapesos que o regime tem? (Veja-se o Tribunal de Contas, com a pandemia a justificar que seja contornado; veja-se o que se quer fazer com a Unidade Técnica de Apoio Orçamental a pretexto de alterações à Lei de Enquadramento Orçamental ou ainda como o Governo acabou por fazer transitar o ex-ministro das Finanças para governador do Banco de Portugal em pouco mais de um mês, só para dar poucos exemplos).

O líder do PSD Rui Rio justifica essa convergência com a vontade de António Costa, considerando que os debates quinzenais não são eficazes no escrutínio do Governo e que o primeiro-ministro não pode passar a vida no Parlamento, tem de trabalhar. Enganámo-nos os que pensámos que prestar contas aos eleitos pelo povo era um dos mais importantes trabalhos do primeiro-ministro. E se o escrutínio não se faz é, frequentemente, porque o Governo se recusa a responder. Um exemplo no último debate do Estado da Nação. O deputado do PSD Ricardo Batista Leite quer saber a razão de entregar à ANA as multas aplicadas a quem entra em Portugal sem teste de Covid feito, em vez de usar esses recursos também para o SNS. O que respondeu a ministra da Saúde? Que o SNS não precisa de dinheiro e que não foi o PS a privatizar a ANA. E por aqui se ficou, como se as respostas de Marta Temido fizessem algum sentido. Ninguém ficou esclarecido e não foi por responsabilidade de uma pergunta que não fosse justificada.

Com o que se decidiu, o regime fica politicamente mais pobre, os deputados do PS e do PSD que não tiveram a coragem de votar contra desvalorizaram o papel que têm, mais jovem verão ainda mais o Parlamento como uma instituição que não percebem para que serve. E se o objectivo foi calar o Chega e o Iniciativa Liberal, é um preocupante sinal de que não se está a perceber como e porque é que esses partidos, especialmente o Chega, estão a conquistar eleitores. A política também tem horror ao vazio e um debate que não se faz no Parlamento far-se-á noutros lugares, pior enquadrado e gerando mais riscos para a democracia. A censura nunca foi boa.

Tudo se compra, tudo se vende, depende do preço? Será esta uma realidade por muito que desejemos que não seja assim? Pois é uma das mais horríveis constatações destes últimos tempos. Todos festejamos os biliões que foram aprovados numa das mais longas Cimeiras europeias da sua história. Mas por trás desses biliões houve uma cedência europeia e todos passámos a ser cúmplices do que se passar na Hungria e na Polónia, dois países que começam a ser generalizadamente apontados como não sendo democracias.

António Costa foi ao ponto de se reunir com Viktor Orbán num pragmatismo que lhe gerou justas criticas, das quais até se defendeu num artigo de opinião no Públici, em resposta a Rui Tavares. Disse o primeiro-ministro que “o Estado de Direito deve ser tratado na sede própria e os valores não se compram nem se negoceiam”, a clarificar a sua posição em critica a uma notícia da Lusa, como se pode ler aqui. Pois parece que sim, que não se compram mas podem estar à venda como se afirma na newsletter do Politico.

Atém onde pode ir o pragmatismo? E quanto nos pode custar? Quantos se recordam do nazismo? Fechar os olhos ao que se passa na Hungria vale o dinheiro que vamos receber de Bruxelas?

Fiscalizar o discurso de ódio o que é? Enquanto na frente europeia se desvaloriza as ameaças ao Estado de Direito, internamente o Governo preocupa-se com o “discurso de ódio” na internet, que quer “monitorizar”. Esperemos que a ministra de Estado e da Presidência Mariana Vieira da Silva, que se tem revelado uma promessa no espaço político, tenha consciência dos riscos que este seu projecto comporta.

As ferramentas que um Estado de Direito tem para combater os “discursos de ódio” é a lei, são os tribunais. É assustador ter no Governo um fiscalizador de discursos. Temos o legítimo receio de ver caladas opiniões criticas para quem nos governa. E sabemos como são grandes as tentações dos governantes de calar criticas, de retirar espaço a quem não está com eles alinhados.

No Estado Novo, como em qualquer ditadura, um dos modelos é impedir que as pessoas que criticam o Governo ganhem o seu pão de cada dia. Por aqui, embora ainda sejam mais pela voz do que pela acção, vamos assistindo a manifestações de vontade que o mesmo aconteça quando, por exemplo, se considera ilegítimo criticar o funcionamento do Estado caso se trabalhe ou se tenham negócios com o Estado.

O melhor desejo que podemos ter para que as democracias passem incólumes, por estes tempos extraordinariamente difíceis que estamos e ainda vamos enfrentar, é que todos conseguirem conversar com todos, dos simpatizantes do Chega aos simpatizantes do BE, dos LGBTI aos grupos religiosos mais conservadores, dos imigrantes aos nacionais, de pessoas de todas as cores. O pior que aconteceu nos Estados Unidos foi exactamente os silos que se criaram entre Democratas e Republicanos. É difícil enfrentar quem se dirige a nós com ódio? Sem dúvida (e digo-o com experiência de quem também o enfrenta nas redes sociais). Mas é preferível saber que existe e saber que o outro, como cada um de nós, é livre, cumprindo a lei.

Neste enquadramento, a abordagem que se está a ter com o Chega é um erro. Não é calando ou perseguindo o Chega que se vai conseguir evitar que continue a subir nas intenções de voto como aliás está a acontecer. André Ventura está a perceber, como poucos, as preocupações de populações sub-urbanas ou rurais, trabalhadores de salários baixos que vivem em bairros onde diversas culturas se chocam, onde uns trabalham e outros recebem subsídios. (A revista Visão da semana passada tem uma reportagem de Miguel Carvalho sobre o financiamento do Chega onde um empresário confessa que ouviu falar de André Ventura através dos trabalhadores na herdade no Alentejo).

Se há mudança que se nota nestes últimos cinco anos é a incapacidade de conviver com quem tem uma opinião diferente da nossa. Há alturas em que parecemos estar em pleno PREC, nas paixões do pós-25 de Abril. Um dos mais graves casos, recentes, foi o manifesto de um grupo de académicos contra o professor e investigador Riccardo Marchi e que António Barreto tão bem criticou no Público.

Estamos a importar o que de pior vem da América e a chegar ao ponto de impedir o livre pensamento, a investigação sem fronteiras, a liberdade de opinião. Esperemos que seja transitório, uma moda, e que continuemos a falar uns com os outros, mesmo transmitindo ódio enquanto discutimos. Mas estas tendências não recomendam que se desvalorize o Parlamento, como aconteceu com o fim dos debates quinzenais.

Não vai haver austeridade? Dois terços dos portugueses não acreditam. De acordo com o inquérito do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP) da Universidade Católica feito para a RTP e o Público, daqui a dois anos os portugueses esperam ver um país mais pobre, mais desigual, com menos emprego e com mais austeridade. É um retrato assustador mais com uma elevada probabilidade de ser realista.

Se austeridade significa apenas que estaremos mais pobres, não tenhamos qualquer dúvida que assim será. Se austeridade significa que voltaremos a precisar de cortar salários à função pública e aos pensionistas, a resposta é mais incerta e mais no sentido de “não sabemos, mas a probabilidade não é zero”.

De nada resolve dizê-lo, mas os últimos cinco anos foram um desperdício em matéria de preparar o país para uma crise. Sim, é verdade que nunca se pensou que seria tão grave, mas o que fizemos desde 2015 foi negar os problemas que temos: uma Administração Pública que precisa de se modernizar e ser mais eficiente, uma Segurança Social que não é sustentável, um enquadramento empresarial pouco amigo do investimento e do desinvestimento, das falências. Vivemos cinco anos a distribuir o pouco que economia ia crescendo, graças fundamentalmente ao turismo. Cometemos exactamente os mesmos erros do passado: assim que chegou a bonança, entrámos em processo de negação e rejeitámos resolver alguns problemas que se enfrentariam com menos dor na fase de crescimento.

Exactamente como no passado, queremos agora em plena crise fazer tudo. O plano Costa Silva tem a grande vantagem de sistematizar tudo aquilo que durante anos especialistas de diversas áreas têm apontado como o caminho para o desenvolvimento de Portugal. Mas nada conseguiremos fazer se não resolvermos estrangulamentos importantes que vão da administração pública à Justiça. Vale, por isso, a pena, no plano, ler o último capítulo: “Condicionantes, limitações e oportunidades”.

Sendo uma realidade que a abordagem de combate a esta crise está a ser completamente diferente daquela que se teve na crise financeira e na das dívidas soberanas, sendo as actuais políticas muito mais vantajosas para Portugal, também é verdade que rapidamente tudo voltará ao normal, em matéria de políticas, quando o crescimento da economia alemã deixar de estar condicionado pelo que se passa em Itália. As regras do Pacto de Estabilidade vão regressar e os países do Norte da Europa, que venderam caro o seu apoio ao plano de recuperação, continuarão atentos à aplicação do dinheiro. É grande a probabilidade de voltarmos a ter aquilo a que chamámos austeridade na era da troika.

Temos pouco tempo e muito dinheiro, o que é um enorme desafio para um Governo que está mais habituado a ir gerindo o que tem do que a concretizar medidas e projectos. O dinheiro que vem de Bruxelas, e que o primeiro-ministro no debate do Estado da Nação disse que atinge os 6,7 mil milhões de euros por ano de 2021 a 2023, não garante o desenvolvimento. Já tivemos dinheiro que gastamos mal gasto. Aquilo que precisamos de fazer exige coragem política que não se vê existir.

Estamos a vamos viver tempo muito difíceis num enquadramento em que a sociedade portuguesa parece estar cada vez mais dividida, influenciada por algumas modas norte-americanas que separam as comunidades urbanas das rurais e sub-urbanas. As tentações do Governo e do PSD, com ferramentas diferentes, de controlarem esta onda, calando os discursos e as opiniões só pode dar mau resultado.

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