Não podemos aceitar que morram pessoas (e como o Kurt Cobain inverteu a Ponte da Arrábida)

27-07-2020
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Ao senhor Fernando os pais deram o apelido Ribeiro, tem portanto nome de vocalista dos Moonspell mas vida de português anónimo e desenrascado, o senhor Fernando Ribeiro precisa de eletricidade se quiser fazer canções mas também se quiser apagar um fogo, ele é daqueles portugueses que os portugueses como eu que escrevem newsletters às vezes não sabem que existem porque a água não chega à casa de todos de maneira igual: “A água da rede escasseia. Sabe, é que para termos aqui água é preciso uma bomba elétrica para a puxar e quando falha a luz ficamos sem água”, explica o senhor Fernando, que tem sete bidões de água na carrinha para “o que for preciso”, está contado neste texto que pode ler no site do Expresso e que começa assim: “Todos os anos, com a chegada do verão chegam também os incêndios florestais ao distrito de Castelo Branco e, no meio disto tudo, ‘a gente nunca chega a saber quando há uma vingança’, afirma Fernando, de 59 anos”.

Mora no Souto, em Castelo Branco, é um “lugar com cerca de uma dezena de habitantes” em que quase todas as casas estão desabitadas e a floresta abandonada, por isso o senhor Fernando lembra-se de quando a floresta “era aproveitada para a resina - as pessoas conheciam os pinheiros quase pelos nomes, agora não, as pessoas atingiram uma certa idade e já não podem tratar da floresta”, e enquanto conta o passado mostra com o dedo o presente, “aponta para o cimo da serra onde se vê uma enorme coluna de fogo” - os incêndios voltaram às notícias e as mortes derivadas deles também. “Antes de terminada a conversa, Fernando recordou o ano de 2003, em que no Souto ardeu tudo. E voltou a olhar com desconfiança para a coluna de fumo, que parecia estar mais carregada: ‘Isto é o jogo da vingança’.”

“How we became fire / Slaves to the smaller desire / Of ignoring wrong and right”, está numa canção dos Moonspell e aqui no Expresso está o Presidente da República a conceder que há coisas que foram mesmo ignoradas, é numa notícia intitulada “Marcelo admite que a pandemia afetou a prevenção dos incêndios. Ministro diz que a tarefa ‘demorará anos’” e na qual o chefe do Estado diz assim: “Quanto à prevenção, ela sofreu, há que dizer, de facto, sofreu com a pandemia. Os meses que eram meses cruciais da transição da primavera para o verão foram meses acabados por não existir”. O ministro da Administração Interna, cujo Governo declarou “situação de alerta entre esta segunda e terça” devido aos incêndios, discorda de Marcelo, lê-se no Expresso: “Também este domingo, o ministro da Administração Interna não ligou a pandemia às dificuldades do combate. ‘O ordenamento florestal é uma responsabilidade de todos os portugueses e tem que ver com uma dimensão de transformação da floresta que tem de ser prosseguida todos os dias e levará a anos de intervenção. Essa é a prioridade’, declarou Eduardo Cabrita”.

Sugiro um regresso ao passado, a esta entrevista do Expresso publicada a 15 de outubro de 2019 para assinalar dois anos dos incêndios mortais de outro 15 de outubro, o de 2017 - Domingos Xavier Viegas, que investigou para o Governo o que falhou no combate aos fogos desse doloroso 2017, já tinha dado nessa entrevista a resposta às inquietações manifestadas este domingo por Marcelo e Eduardo Cabrita e explicava também como tratamos mal os Fernandos Ribeiros de Portugal: “Por um lado queremos que as pessoas se fixem no interior, nas zonas rurais, mas verificamos que muitas vezes não há condições para uma vida normal, digna e segura. Se não lhes oferecemos essas condições não podemos exigir que haja gente que habite no interior do país e sem isso não é possível sustentar a floresta e os espaços rurais. Essa é a nossa primeira recomendação: inverter esta situação, que é fruto de uma má coordenação do país durante décadas. Não é culpa de Governo A ou B, é algo que se arrasta. A segunda recomendação está também relacionada com a manutenção da segurança das pessoas. Não temos capacidade para evitar acontecimentos destes, aliás, podemos ter incêndios como os de Pedrógão Grande ou os de 15 de Outubro cada vez com mais frequência, o que não podemos é aceitar que morram pessoas”.

PONTO DA SITUAÇÃO COVID

1. Comece por aqui - Portugal ultrapassa os 50 mil infetados por covid-19 - mas depois é preciso complementar com Número real de infetados em Portugal faz descer letalidade de 3,5% para 0,6%;

2. Portugal com mais um morto, 207 recuperados e 209 infetados: Covid-19. O surto em Portugal, em gráficos e mapas (e ainda mais três sugestões: esta - Plano do Governo não prepara SNS para o frio com pandemia; esta - Covid-19. Mortalidade provoca recuo na esperança de vida; e esta - Covid-19. Rastreio na Universidade do Porto revela que homens têm mais anticorpos);

3. “Tivemos pessoas a andar pela manhã e a falecer à noite. Não era compreensível. Tínhamos medo até de subir as escadas do hospital.” Leia, leia, leia esta entrevista: Enfermeira do Centro Hospitalar de Coimbra: “Nunca mais voltaremos a ser o que éramos”;

4. Alerta em Espanha (e cuidado com África): Covid-19. Espanha poderá estar a entrar numa segunda onda. Mas não é o único país (junte esta: Reino Unido impõe quarentena obrigatória a quem viajar de Espanha. MNE britânico justifica com “grande salto” de infeções no país);

5. Demasiados super: Depois do supervírus, a próxima ameaça é uma superbactéria;

6. Fenprof “acusou o Ministério da Educação de ser o ‘responsável moral e material’ pela falta de condições de segurança nas escolas no caso de professores ficarem doentes ou infetados com covid-19”, o Governo reage: Ministro da Educação acusa Mário Nogueira de gerar ruído e angústia nas famílias (e depois complemente com Máscaras, distâncias e ‘bolhas’. Como serão as aulas noutros países da Europa).

OUTRAS NOTÍCIAS

1. A polícia está a investigar, que seja rápida e a Justiça também: Homicídio em Moscavide. Bruno Candé ameaçado de morte com insultos racistas (e ainda Catarina Martins repudia “assassinato violento, racista” do ator Bruno Candé);

2. “Fica o recado, muito discreto: ele, Marcelo, acha que se deve debater”: Marcelo deixa farpa a Costa e Rio sobre o fim dos debates quinzenais (passe ainda por aqui: Debates quinzenais. A história dos dias em que os que governam perderam o brilho e Alexandre Poço votou contra o fim dos quinzenais. É agora o novo líder da JSD);

3. Dificilmente haverá texto melhor que este sobre o treinador do Sporting (mas também sobre algumas circunstâncias do Benfica porque tem frases como “a taxa de concretização do Benfica equivale à de um míope na carreira de tiro”): Estado de graça, bluff, caído em desgraça: Rúben Amorim já sabe como é, mas saberá ele como vai ser? (e quanto ao resto cá dentro é Portimonense desce à II Liga. Salvam-se Tondela e Vitória de Setúbal e ao resto lá fora é Um Sarrismo assim-assim, com uma ajuda do Ronaldismo do costume, fez da Juventus campeã);

4. O sinistro aqui referido trata-se das “aparições sinistras do bloco central” - quanto ao resto, leia que vale a pena: Francisco Rodrigues dos Santos. Seis meses de liderança entre o “sinistro” e o “epifenómeno”;

5. A bondade, esse bem fundamental: Zé Pedro no cinema. A história de um rocker que era um homem bom;

6. O segundo parágrafo é particularmente intrigante e depois vai querer devorar tudo: A ilha de Miguel é um Jardim (ou como o presidente da Madeira se fez um Alberto João);

7. “Em causa está a emissão de vouchers em vez de reembolsos no caso de férias e viagens canceladas devido à pandemia”: Viagens canceladas: Bruxelas ameaça Portugal com ação na justiça devido à lei dos vouchers (e a reação da TAP - garante que “cumpre toda a legislação” sobre direitos dos passageiros);

8. Este é o resultado de centenas de entrevistas que o Expresso fez nos últimos 20 anos a líderes empresariais e gestores de pessoas: 5 conselhos de carreira que ninguém dá (mas deveria);

9. “Socorri-me dos livros para manter a sanidade mental”: eu também - e você? Os livros da pandemia;

10. Péssimos fenómenos de imitação: Estátua de Cristóvão Colombo no Funchal foi derrubada e vandalizada;

11. O Governo diz que é uma “oportunidade para Portugal se industrializar” porque o país “não pode continuar a viver apenas de coisas que os outros produzem”: Hidrogénio: a nova bandeira?;

12. Grande título: B Fachada quebrou o silêncio e fundou um país à porrada.

FRASES

“Eu, quando fui candidato à Presidência, discuti com todos os candidatos. E se vier a ser candidato, assunto sobre o qual não pensarei antes de novembro, obviamente discutirei com todos os candidatos presidenciais” Marcelo Rebelo de Sousa em declarações este domingo ao jornalistas

“Ora, as barbaridades que atulham o granuloso esgoto das redes sociais são infinitamente preferíveis à espetacular ideia de policiar, ‘monitorando e identificando’, o ‘discurso de ódio’ nas redes sociais e fora delas. Se o salazarismo tivesse sobrevivido até aos dias de hoje, era exatamente isso o que faria. Não invocaria evidentemente, em 2020, a urgência de monitorizar ‘comunistas e subversivos’, através de um Observatório aos cuidados do dr. Cazal-Ribeiro. Políticos, e não só, são alvo de torpezas e ordinarices irreproduzíveis, que mais tarde ou mais cedo os seus filhos descobrirão, quando se tornar inviável cortar-lhes o acesso ao caneiro digital. É penoso, mas não tem solução. Antes o esgoto que a censura, mesmo se confiada, por notória inclinação, a um dos 67 indignados do livro sobre o Chega” Sérgio Sousa Pinto no Expresso

“O crescimento do Chega é uma preocupação para o PSD. Cresce com os descontentes do PSD e do CDS. E abre um problema novo: o PSD ganha eleições, mas se não tiver maioria como é que faz?” Marques Mendes durante o seu habitual espaço de comentário na SIC

“Biden não tem [hipótese]! A maioria silenciosa falará a 3 de novembro” Donald Trump

O QUE EU ANDO A LER

“às vezes eu tenho uma torrada grande na mão, com muita manteiga, ainda quente, e apetece-me pressioná-la contra a cara e ficar assim durante alguns minutos enquanto a outra pessoa vai tomando o café com leite. pra mim ficção científica é isto. recuperar, aproveitar, experimentar pela primeira vez os actos possíveis negligenciados (negligenciados porque a torrada é para comer, e comemos porque a seguir vamos sair pra trabalhar, etc.) (...) os actos possíveis esquecidos (esquecidos desde o início do mundo, as pessoas nunca esfregaram a torrada com manteiga na cara; não o fazer, nunca o fazer, é que é estranho). ou seja, este mundo é que é estranho, não o que tenha camarões e chuveiros em posições diferentes. a minha ficção científica não se apoquenta com naves e lasers porque no pequeno-almoço já há que chegue.”

Sei muito de ficção científica, não tanto ao pequeno-almoço mas noutra variação existencial, o meu primeiro grande amigo foi-me levado pela emigração, os pais tinham gosto pelo Luxemburgo e eu fiquei com o desgosto da solidão, lidei tão mal que o meu segundo grande amigo nasceu da minha imaginação angustiada, fiz amizade com um morto, na verdade o poster dele colado com fita cola no armário e depois na parede do meu quarto, procedi à trasladação porque pareceu-me entretanto que as paredes são panteão mais digno que um armário: era um poster do Kurt Cobain, ele encostado a uma porta ou assim numa imagem de corpo inteiro, pé firme no chão e o outro cruzado por trás da perna só com as pontas a tocar no solo, um ballet grunge portanto, era o meu cisne louro de coração negro Cobain, ele tinhas as calças rasgadas nos joelhos e mais acima nas coxas e junto aos bolsos por todo o lado, a roupa diz bastante sobre nós e a dele dizia feridas, era o meu Cobain cheio de rasgo nas canções todo rasgado pelas emoções, os olhos dele no meu poster tinham a cor azul-ternura-como-o-céu-limpo-de-verão-mas-transparente-como-o-mar-da-Ilha-dos-Coelhos-de-Lampesuda, inventei agora esta cor e sinto o dever de explicá-la, é azul tristeza ao fundo com o ilusionismo da beleza à superfície, a beleza esconde e adia tantos desastres, lembro-me ainda do Cobain a fumar naquele poster e isso nunca lhe quis imitar só o cabelo comprido, toda a gente queria o cabelo luminoso-sujo dele, até o couro cabeludo do Cobain era uma metáfora sentimental, mas o mais cintilante do poster, a verdadeira ficção científica, o que me fez sentir o George Lucas da minha solidão era o sorriso do Cobain - contei àquele poster as minhas atribulações juvenis porque smells like teen spirit e o Cobain sorriu, contei euforias contei depressões e ele sorriu, contei falhanços conquistas dúvidas e ele sorriu, “I need an easy friend I do, with an ear to lend”, contei vida morte sofrimento injustiça erros felicidade descoberta paixão e ele sorriu, contei-me inteiro a um poster e ele sorriu nas histórias todas, um sorriso que a minha solidão-imaginação transformou em sorrisos compreensivos repreensivos e ternurentos rabujentos e desolados arrebatados consoante o amparo que me faltava, chorei mesmo diante do poster, “My heart is broke But I have some glue”, e vi lágrimas também no azul-ternura-como-o-céu-limpo-de-verão-mas-transparente-como-o-mar-da-Ilha-dos-Coelhos-de-Lampesuda, chorámos juntos, uma três dez vezes, a imaginação de um adolescente é fértil e a psicologia deve ter explicação para isto mas estranho neste mundo é as pessoas não acabarem todas a desabafar com um poster, “I’m so happy ‘Cause today I’ve found my friends In my head”, às vezes o invisível é o mais íntimo que há:

Com o homem começa o invisível.

O que se diz é o que se esconde, os olhos

giram para bem longe da sua fome.

O homem enche a sua fome de poemas,

os seus poemas de sonhos de amor,

os seus sonhos de amor de coisas impossíveis,

como a eternidade ou o lugar perfeito

onde nos deitaremos a ouvir o pensamento

dos pássaros, a água que corre aflita

com medo de ser pouca no chão tanto,

com a loucura do mundo a crescer no

nosso sexo, no nosso pensamento,

com o mundo a crescer vibrante a cada instante,

por dentro de nós, em nós, por fora de nós,

sem parar, sem memória, sempre,

sem fim, sem infinito, para lá das coisas que nos vencem,

para lá do sonho, nesse lugar além de tudo quanto

pode ser dito, de tudo quanto foi dito, além da história

do que somos, da vida que vivemos, todos, incluindo os

mortos,

os que ainda não nasceram, os que se vendem, por dinheiro

ou excesso de tristeza, os que acreditam na vida, na

beleza,

na utilidade prática da arte, na invencibilidade do amor,

na irmandade dos homens que constroem um mundo

melhor,

homens e mulheres que estão aqui, ou que porventura

chegarão amanhã, quando nós e eles formos outros,

maiores que o dia que passou, que a noite que nos guarda,

quando o invisível for mais perto do braço que nos toca,

dos olhos onde revemos a história do mundo,

deste momento onde parimos a luz

está no “Mike Tyson para principiantes - antologia poética”, é do Rui Costa, a torrada na mão para esfregar na cara também é dele, um email transcrito no prefácio do livro, o Rui, trato-o pelo nome próprio com a admiração do leitor-eu que se rende ao escritor-ele, o Rui tinha “obsessões rítmicas e formais”, recolheu um “acervo de palavras e metáforas”, “procurava modos drásticos de desligar as palavras das raízes e voltar a ligá-las, jogando-as umas contras as outras para recriar o vocabulário com que devemos falar daquilo que é importante”, o resultado era assim

Na agência de viagens, à noite, sentado,

esperando o homem que mesmo de noite vende

países a pessoas como eu, que os

conhecem, eu via russos a dançarem-lhe nos olhos

e mulheres envergonhadas do pão nos ombros feito.

Pensei nos nomes que ele tinha nos

olhos por países e

percebi como de tantos os vender os

desconhece.

Como o homem que vende viagens

para o mundo continuar a ser tão cheio

de países pedindo gente,

assim os nomes que te dou são países onde

não te paro.

Os teus cabelos, os olhos, o teu corpo inteiro

e tu abrindo à noite a sua boca:

no que me falta soletrar de ti viajo

letra a letra

o mundo todo

ou assim

O atletismo de competição só é praticável por não haver atletas com pernas de cinco metros de altura. A possibilidade de um participante vencer a corrida com meia dúzia de passos não agrada ao público, que gosta de sofrer até ao fim. Se tiveres um coração grande demais a outra pessoa (aquela em quem começas a pensar muitas vezes) pensa que não vai conseguir recolher o sangue todo que esse coração enorme bombeia, e, mesmo que pense em ti muitas vezes, recua. Um coração enorme é uma bomba de felicidade com pernas de cinco metros de altura a correr por cima do teu coraçãozinho assustado

o Rui morreu no rio Douro, há dias eu estive lá e pensei tanto nele, do quarto da casa onde durmo sempre que regresso ao Porto vejo a Ponte da Arrábida, ela tão perto tão alta tão perigosa, é o meu poster de adulto colado nas duas margens por engenheiros e construtores, o arco da ponte tem a forma de um emoji triste e senti o impulso da ficção científica: fotografei a Arrábida e virei-a ao contrário no meu telefone, o arco da ponte tornou-se um emoji sorridente, fiz o meu poster de agora sorrir-me como o de outrora - e o rio ficou no lugar do céu, o céu no do rio, por isso atirei da minha ponte os poemas do Rui para eles caírem na eternidade do céu:

se não fizermos nada já

um dia o céu vai estar irrespirável

e depois não temos sítio nenhum

para irmos quando morrermos.

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Ao senhor Fernando os pais deram o apelido Ribeiro, tem portanto nome de vocalista dos Moonspell mas vida de português anónimo e desenrascado, o senhor Fernando Ribeiro precisa de eletricidade se quiser fazer canções mas também se quiser apagar um fogo, ele é daqueles portugueses que os portugueses como eu que escrevem newsletters às vezes não sabem que existem porque a água não chega à casa de todos de maneira igual: “A água da rede escasseia. Sabe, é que para termos aqui água é preciso uma bomba elétrica para a puxar e quando falha a luz ficamos sem água”, explica o senhor Fernando, que tem sete bidões de água na carrinha para “o que for preciso”, está contado neste texto que pode ler no site do Expresso e que começa assim: “Todos os anos, com a chegada do verão chegam também os incêndios florestais ao distrito de Castelo Branco e, no meio disto tudo, ‘a gente nunca chega a saber quando há uma vingança’, afirma Fernando, de 59 anos”.

Mora no Souto, em Castelo Branco, é um “lugar com cerca de uma dezena de habitantes” em que quase todas as casas estão desabitadas e a floresta abandonada, por isso o senhor Fernando lembra-se de quando a floresta “era aproveitada para a resina - as pessoas conheciam os pinheiros quase pelos nomes, agora não, as pessoas atingiram uma certa idade e já não podem tratar da floresta”, e enquanto conta o passado mostra com o dedo o presente, “aponta para o cimo da serra onde se vê uma enorme coluna de fogo” - os incêndios voltaram às notícias e as mortes derivadas deles também. “Antes de terminada a conversa, Fernando recordou o ano de 2003, em que no Souto ardeu tudo. E voltou a olhar com desconfiança para a coluna de fumo, que parecia estar mais carregada: ‘Isto é o jogo da vingança’.”

“How we became fire / Slaves to the smaller desire / Of ignoring wrong and right”, está numa canção dos Moonspell e aqui no Expresso está o Presidente da República a conceder que há coisas que foram mesmo ignoradas, é numa notícia intitulada “Marcelo admite que a pandemia afetou a prevenção dos incêndios. Ministro diz que a tarefa ‘demorará anos’” e na qual o chefe do Estado diz assim: “Quanto à prevenção, ela sofreu, há que dizer, de facto, sofreu com a pandemia. Os meses que eram meses cruciais da transição da primavera para o verão foram meses acabados por não existir”. O ministro da Administração Interna, cujo Governo declarou “situação de alerta entre esta segunda e terça” devido aos incêndios, discorda de Marcelo, lê-se no Expresso: “Também este domingo, o ministro da Administração Interna não ligou a pandemia às dificuldades do combate. ‘O ordenamento florestal é uma responsabilidade de todos os portugueses e tem que ver com uma dimensão de transformação da floresta que tem de ser prosseguida todos os dias e levará a anos de intervenção. Essa é a prioridade’, declarou Eduardo Cabrita”.

Sugiro um regresso ao passado, a esta entrevista do Expresso publicada a 15 de outubro de 2019 para assinalar dois anos dos incêndios mortais de outro 15 de outubro, o de 2017 - Domingos Xavier Viegas, que investigou para o Governo o que falhou no combate aos fogos desse doloroso 2017, já tinha dado nessa entrevista a resposta às inquietações manifestadas este domingo por Marcelo e Eduardo Cabrita e explicava também como tratamos mal os Fernandos Ribeiros de Portugal: “Por um lado queremos que as pessoas se fixem no interior, nas zonas rurais, mas verificamos que muitas vezes não há condições para uma vida normal, digna e segura. Se não lhes oferecemos essas condições não podemos exigir que haja gente que habite no interior do país e sem isso não é possível sustentar a floresta e os espaços rurais. Essa é a nossa primeira recomendação: inverter esta situação, que é fruto de uma má coordenação do país durante décadas. Não é culpa de Governo A ou B, é algo que se arrasta. A segunda recomendação está também relacionada com a manutenção da segurança das pessoas. Não temos capacidade para evitar acontecimentos destes, aliás, podemos ter incêndios como os de Pedrógão Grande ou os de 15 de Outubro cada vez com mais frequência, o que não podemos é aceitar que morram pessoas”.

PONTO DA SITUAÇÃO COVID

1. Comece por aqui - Portugal ultrapassa os 50 mil infetados por covid-19 - mas depois é preciso complementar com Número real de infetados em Portugal faz descer letalidade de 3,5% para 0,6%;

2. Portugal com mais um morto, 207 recuperados e 209 infetados: Covid-19. O surto em Portugal, em gráficos e mapas (e ainda mais três sugestões: esta - Plano do Governo não prepara SNS para o frio com pandemia; esta - Covid-19. Mortalidade provoca recuo na esperança de vida; e esta - Covid-19. Rastreio na Universidade do Porto revela que homens têm mais anticorpos);

3. “Tivemos pessoas a andar pela manhã e a falecer à noite. Não era compreensível. Tínhamos medo até de subir as escadas do hospital.” Leia, leia, leia esta entrevista: Enfermeira do Centro Hospitalar de Coimbra: “Nunca mais voltaremos a ser o que éramos”;

4. Alerta em Espanha (e cuidado com África): Covid-19. Espanha poderá estar a entrar numa segunda onda. Mas não é o único país (junte esta: Reino Unido impõe quarentena obrigatória a quem viajar de Espanha. MNE britânico justifica com “grande salto” de infeções no país);

5. Demasiados super: Depois do supervírus, a próxima ameaça é uma superbactéria;

6. Fenprof “acusou o Ministério da Educação de ser o ‘responsável moral e material’ pela falta de condições de segurança nas escolas no caso de professores ficarem doentes ou infetados com covid-19”, o Governo reage: Ministro da Educação acusa Mário Nogueira de gerar ruído e angústia nas famílias (e depois complemente com Máscaras, distâncias e ‘bolhas’. Como serão as aulas noutros países da Europa).

OUTRAS NOTÍCIAS

1. A polícia está a investigar, que seja rápida e a Justiça também: Homicídio em Moscavide. Bruno Candé ameaçado de morte com insultos racistas (e ainda Catarina Martins repudia “assassinato violento, racista” do ator Bruno Candé);

2. “Fica o recado, muito discreto: ele, Marcelo, acha que se deve debater”: Marcelo deixa farpa a Costa e Rio sobre o fim dos debates quinzenais (passe ainda por aqui: Debates quinzenais. A história dos dias em que os que governam perderam o brilho e Alexandre Poço votou contra o fim dos quinzenais. É agora o novo líder da JSD);

3. Dificilmente haverá texto melhor que este sobre o treinador do Sporting (mas também sobre algumas circunstâncias do Benfica porque tem frases como “a taxa de concretização do Benfica equivale à de um míope na carreira de tiro”): Estado de graça, bluff, caído em desgraça: Rúben Amorim já sabe como é, mas saberá ele como vai ser? (e quanto ao resto cá dentro é Portimonense desce à II Liga. Salvam-se Tondela e Vitória de Setúbal e ao resto lá fora é Um Sarrismo assim-assim, com uma ajuda do Ronaldismo do costume, fez da Juventus campeã);

4. O sinistro aqui referido trata-se das “aparições sinistras do bloco central” - quanto ao resto, leia que vale a pena: Francisco Rodrigues dos Santos. Seis meses de liderança entre o “sinistro” e o “epifenómeno”;

5. A bondade, esse bem fundamental: Zé Pedro no cinema. A história de um rocker que era um homem bom;

6. O segundo parágrafo é particularmente intrigante e depois vai querer devorar tudo: A ilha de Miguel é um Jardim (ou como o presidente da Madeira se fez um Alberto João);

7. “Em causa está a emissão de vouchers em vez de reembolsos no caso de férias e viagens canceladas devido à pandemia”: Viagens canceladas: Bruxelas ameaça Portugal com ação na justiça devido à lei dos vouchers (e a reação da TAP - garante que “cumpre toda a legislação” sobre direitos dos passageiros);

8. Este é o resultado de centenas de entrevistas que o Expresso fez nos últimos 20 anos a líderes empresariais e gestores de pessoas: 5 conselhos de carreira que ninguém dá (mas deveria);

9. “Socorri-me dos livros para manter a sanidade mental”: eu também - e você? Os livros da pandemia;

10. Péssimos fenómenos de imitação: Estátua de Cristóvão Colombo no Funchal foi derrubada e vandalizada;

11. O Governo diz que é uma “oportunidade para Portugal se industrializar” porque o país “não pode continuar a viver apenas de coisas que os outros produzem”: Hidrogénio: a nova bandeira?;

12. Grande título: B Fachada quebrou o silêncio e fundou um país à porrada.

FRASES

“Eu, quando fui candidato à Presidência, discuti com todos os candidatos. E se vier a ser candidato, assunto sobre o qual não pensarei antes de novembro, obviamente discutirei com todos os candidatos presidenciais” Marcelo Rebelo de Sousa em declarações este domingo ao jornalistas

“Ora, as barbaridades que atulham o granuloso esgoto das redes sociais são infinitamente preferíveis à espetacular ideia de policiar, ‘monitorando e identificando’, o ‘discurso de ódio’ nas redes sociais e fora delas. Se o salazarismo tivesse sobrevivido até aos dias de hoje, era exatamente isso o que faria. Não invocaria evidentemente, em 2020, a urgência de monitorizar ‘comunistas e subversivos’, através de um Observatório aos cuidados do dr. Cazal-Ribeiro. Políticos, e não só, são alvo de torpezas e ordinarices irreproduzíveis, que mais tarde ou mais cedo os seus filhos descobrirão, quando se tornar inviável cortar-lhes o acesso ao caneiro digital. É penoso, mas não tem solução. Antes o esgoto que a censura, mesmo se confiada, por notória inclinação, a um dos 67 indignados do livro sobre o Chega” Sérgio Sousa Pinto no Expresso

“O crescimento do Chega é uma preocupação para o PSD. Cresce com os descontentes do PSD e do CDS. E abre um problema novo: o PSD ganha eleições, mas se não tiver maioria como é que faz?” Marques Mendes durante o seu habitual espaço de comentário na SIC

“Biden não tem [hipótese]! A maioria silenciosa falará a 3 de novembro” Donald Trump

O QUE EU ANDO A LER

“às vezes eu tenho uma torrada grande na mão, com muita manteiga, ainda quente, e apetece-me pressioná-la contra a cara e ficar assim durante alguns minutos enquanto a outra pessoa vai tomando o café com leite. pra mim ficção científica é isto. recuperar, aproveitar, experimentar pela primeira vez os actos possíveis negligenciados (negligenciados porque a torrada é para comer, e comemos porque a seguir vamos sair pra trabalhar, etc.) (...) os actos possíveis esquecidos (esquecidos desde o início do mundo, as pessoas nunca esfregaram a torrada com manteiga na cara; não o fazer, nunca o fazer, é que é estranho). ou seja, este mundo é que é estranho, não o que tenha camarões e chuveiros em posições diferentes. a minha ficção científica não se apoquenta com naves e lasers porque no pequeno-almoço já há que chegue.”

Sei muito de ficção científica, não tanto ao pequeno-almoço mas noutra variação existencial, o meu primeiro grande amigo foi-me levado pela emigração, os pais tinham gosto pelo Luxemburgo e eu fiquei com o desgosto da solidão, lidei tão mal que o meu segundo grande amigo nasceu da minha imaginação angustiada, fiz amizade com um morto, na verdade o poster dele colado com fita cola no armário e depois na parede do meu quarto, procedi à trasladação porque pareceu-me entretanto que as paredes são panteão mais digno que um armário: era um poster do Kurt Cobain, ele encostado a uma porta ou assim numa imagem de corpo inteiro, pé firme no chão e o outro cruzado por trás da perna só com as pontas a tocar no solo, um ballet grunge portanto, era o meu cisne louro de coração negro Cobain, ele tinhas as calças rasgadas nos joelhos e mais acima nas coxas e junto aos bolsos por todo o lado, a roupa diz bastante sobre nós e a dele dizia feridas, era o meu Cobain cheio de rasgo nas canções todo rasgado pelas emoções, os olhos dele no meu poster tinham a cor azul-ternura-como-o-céu-limpo-de-verão-mas-transparente-como-o-mar-da-Ilha-dos-Coelhos-de-Lampesuda, inventei agora esta cor e sinto o dever de explicá-la, é azul tristeza ao fundo com o ilusionismo da beleza à superfície, a beleza esconde e adia tantos desastres, lembro-me ainda do Cobain a fumar naquele poster e isso nunca lhe quis imitar só o cabelo comprido, toda a gente queria o cabelo luminoso-sujo dele, até o couro cabeludo do Cobain era uma metáfora sentimental, mas o mais cintilante do poster, a verdadeira ficção científica, o que me fez sentir o George Lucas da minha solidão era o sorriso do Cobain - contei àquele poster as minhas atribulações juvenis porque smells like teen spirit e o Cobain sorriu, contei euforias contei depressões e ele sorriu, contei falhanços conquistas dúvidas e ele sorriu, “I need an easy friend I do, with an ear to lend”, contei vida morte sofrimento injustiça erros felicidade descoberta paixão e ele sorriu, contei-me inteiro a um poster e ele sorriu nas histórias todas, um sorriso que a minha solidão-imaginação transformou em sorrisos compreensivos repreensivos e ternurentos rabujentos e desolados arrebatados consoante o amparo que me faltava, chorei mesmo diante do poster, “My heart is broke But I have some glue”, e vi lágrimas também no azul-ternura-como-o-céu-limpo-de-verão-mas-transparente-como-o-mar-da-Ilha-dos-Coelhos-de-Lampesuda, chorámos juntos, uma três dez vezes, a imaginação de um adolescente é fértil e a psicologia deve ter explicação para isto mas estranho neste mundo é as pessoas não acabarem todas a desabafar com um poster, “I’m so happy ‘Cause today I’ve found my friends In my head”, às vezes o invisível é o mais íntimo que há:

Com o homem começa o invisível.

O que se diz é o que se esconde, os olhos

giram para bem longe da sua fome.

O homem enche a sua fome de poemas,

os seus poemas de sonhos de amor,

os seus sonhos de amor de coisas impossíveis,

como a eternidade ou o lugar perfeito

onde nos deitaremos a ouvir o pensamento

dos pássaros, a água que corre aflita

com medo de ser pouca no chão tanto,

com a loucura do mundo a crescer no

nosso sexo, no nosso pensamento,

com o mundo a crescer vibrante a cada instante,

por dentro de nós, em nós, por fora de nós,

sem parar, sem memória, sempre,

sem fim, sem infinito, para lá das coisas que nos vencem,

para lá do sonho, nesse lugar além de tudo quanto

pode ser dito, de tudo quanto foi dito, além da história

do que somos, da vida que vivemos, todos, incluindo os

mortos,

os que ainda não nasceram, os que se vendem, por dinheiro

ou excesso de tristeza, os que acreditam na vida, na

beleza,

na utilidade prática da arte, na invencibilidade do amor,

na irmandade dos homens que constroem um mundo

melhor,

homens e mulheres que estão aqui, ou que porventura

chegarão amanhã, quando nós e eles formos outros,

maiores que o dia que passou, que a noite que nos guarda,

quando o invisível for mais perto do braço que nos toca,

dos olhos onde revemos a história do mundo,

deste momento onde parimos a luz

está no “Mike Tyson para principiantes - antologia poética”, é do Rui Costa, a torrada na mão para esfregar na cara também é dele, um email transcrito no prefácio do livro, o Rui, trato-o pelo nome próprio com a admiração do leitor-eu que se rende ao escritor-ele, o Rui tinha “obsessões rítmicas e formais”, recolheu um “acervo de palavras e metáforas”, “procurava modos drásticos de desligar as palavras das raízes e voltar a ligá-las, jogando-as umas contras as outras para recriar o vocabulário com que devemos falar daquilo que é importante”, o resultado era assim

Na agência de viagens, à noite, sentado,

esperando o homem que mesmo de noite vende

países a pessoas como eu, que os

conhecem, eu via russos a dançarem-lhe nos olhos

e mulheres envergonhadas do pão nos ombros feito.

Pensei nos nomes que ele tinha nos

olhos por países e

percebi como de tantos os vender os

desconhece.

Como o homem que vende viagens

para o mundo continuar a ser tão cheio

de países pedindo gente,

assim os nomes que te dou são países onde

não te paro.

Os teus cabelos, os olhos, o teu corpo inteiro

e tu abrindo à noite a sua boca:

no que me falta soletrar de ti viajo

letra a letra

o mundo todo

ou assim

O atletismo de competição só é praticável por não haver atletas com pernas de cinco metros de altura. A possibilidade de um participante vencer a corrida com meia dúzia de passos não agrada ao público, que gosta de sofrer até ao fim. Se tiveres um coração grande demais a outra pessoa (aquela em quem começas a pensar muitas vezes) pensa que não vai conseguir recolher o sangue todo que esse coração enorme bombeia, e, mesmo que pense em ti muitas vezes, recua. Um coração enorme é uma bomba de felicidade com pernas de cinco metros de altura a correr por cima do teu coraçãozinho assustado

o Rui morreu no rio Douro, há dias eu estive lá e pensei tanto nele, do quarto da casa onde durmo sempre que regresso ao Porto vejo a Ponte da Arrábida, ela tão perto tão alta tão perigosa, é o meu poster de adulto colado nas duas margens por engenheiros e construtores, o arco da ponte tem a forma de um emoji triste e senti o impulso da ficção científica: fotografei a Arrábida e virei-a ao contrário no meu telefone, o arco da ponte tornou-se um emoji sorridente, fiz o meu poster de agora sorrir-me como o de outrora - e o rio ficou no lugar do céu, o céu no do rio, por isso atirei da minha ponte os poemas do Rui para eles caírem na eternidade do céu:

se não fizermos nada já

um dia o céu vai estar irrespirável

e depois não temos sítio nenhum

para irmos quando morrermos.

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