Família Espírito Santo. Como a misteriosa “Ninita” se tornou a portuguesa mais rica

29-04-2020
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José Maria nomeou como testamenteira a sua mulher, Rita, e apontou quatro homens para a ajudarem: o genro, Custódio José Moniz Galvão, o primo Miguel Júlio Saraiva, e os sócios Ricardo Apolinário Dias (padrinho de baptismo de Ricardo Espírito Santo) e Liberato Augusto Correa Brandão. Cada um destes quatro coadjuvantes receberia 5 contos por ter aceite a missão. Manifestou um último desejo, condizente com a forma resguardada como alguns dos seus descendentes (a começar por Maria do Carmo) ainda viriam a usufruir da riqueza: “Peço que o meu testamento não seja publicado nos jornais”.

“Há herdeiros que são senhoras e que não podem colaborar na gerência”

Uma das primeiras decisões a tomar antes de se partilhar a herança é a criação de um conselho de família. Salvaguardando a diferença de se tratar de uma obrigação decretada pela justiça, poderia ser semelhante ao que 75 anos mais tarde viria a ser o conselho superior do grupo, com um representante de cada um dos cinco ramos familiares, para decidir o destino dos negócios. Mas aqui a família ainda está tão no início, que não há mais parentes moradores em Lisboa para lá dos herdeiros, pelo que a viúva decide indicar para o conselho de família aqueles que considera os cinco “amigos mais íntimos do falecido”.

Mas o filho bastardo José Rodrigues Bastos, representado por Francisco Veiga Beirão (que tinha sido ministro e chefe do governo na monarquia), contesta tudo o que pode, desde a escolha da viúva para cabeça de casal até à forma de gestão da fortuna enquanto não se fechassem as partilhas, insinua que o pai teria dinheiro escondido num banco suíço [como alguns dos seus descendentes cem anos mais tarde], e inicia uma espécie de leilão entre os herdeiros, oferecendo-se para pagar dez escudos acima do valor da avaliação, para ficar com dois dos prédios do pai, sendo um deles o que tinha sido deixado à filha Maria Justina. Como estratégia negocial, resultou: a família pagou 90 contos ao filho bastardo para chegarem a acordo e se livrar do problema, 9 meses depois da morte de José Maria.

Removido o principal obstáculo, é convocada nova reunião do conselho de família para 16 de Outubro, onde todas as decisões já são aprovadas por unanimidade. A principal deliberação é que seja respeitado o desejo do falecido e que os negócios que possuía fiquem nas mãos dos cinco filhos legítimos – a casa bancária continuará a ser liderada por José Espírito Santo, que está com 21 anos.

Há mais duas deliberações neste encontro. Uma diz respeito a Custódio Moniz Galvão, marido da filha mais velha do banqueiro: quando morrer, se ainda for sócio da casa bancária, a sua quota deve ser vendida aos seus herdeiros, pelos cinco filhos legítimos de José Maria Espírito Santo, por 40 contos, a pagar em cinco anos, com um juro de 5% ao ano.

A outra deliberação tem a ver com a mudança de algumas cláusulas da escritura do banco, porque “há herdeiros que são senhoras e que não podem colaborar na gerência da referida sociedade”. O facto de as mulheres não trabalharem confere com o resto da sociedade em 1916 – mas entre os Espírito Santo é uma tradição que perdurará pelo resto do século: até ao fim do séc. XX serão raras as senhoras a intrometerem-se na gestão dos negócios de família. Maria do Carmo Moniz Galvão também acabou sempre por confiar a gestão aos homens que a rodearam: sucessivamente o pai, o marido, os amigos do marido e os filhos.

A casa bancária deixa de ter o nome completo do fundador e passa a ser apenas os três apelidos: “Espírito Santo Silva & Companhia”. Cada um dos cinco filhos tem agora uma quota de 72 contos, os restantes sete sócios mantêm as posições anteriores, ou seja, Custódio Moniz Galvão mantém os dez contos — o que significa que os avós de Ninita, juntos, detêm 82 contos.

As regras constantes da nova escritura procuram blindar o poder da família: a gerência ficará a cargo de um representante e descendente directo de José Maria Espírito Santo Silva; o seu filho José Espírito Santo fica investido na qualidade de gerente vitalício; os descendentes dos cinco filhos legítimos do fundador, assim que atingem a maioridade, podem representá-los na empresa, “entrando em exercício como se já fossem sócios, inclusive com direito na gerência”.

Na partilha dos lucros, há ligeiras alterações: os primeiros 30% são para fundos de reserva; depois é retirada uma percentagem para os empregados; do que sobrar, cada um dos sete sócios que já vinham do tempo do fundador (incluindo o seu filho José e o genro Moniz Galvão) recebe 7%. O restante é para dividir entre os cinco filhos legítimos em partes iguais. Por conta dos lucros, cada filho pode levantar da caixa 300 escudos por mês, o dobro do valor permitido aos outros sócios. O negócio continua a correr tão bem que a 9 de Abril de 1920, a casa bancária passa a ser um banco. O Banco Espírito Santo.

O pai de Ninita: a influência na fusão com os Queiroz Pereira e os concursos de cães

O médico Custódio Moniz Galvão lidera o Conselho Fiscal do banco em 1920 e 1921, mas rapidamente se desinteressa das funções e é substituído pelo Duque de Palmela. O seu filho, Fernando Eduardo Moniz Galvão (que viria a ser o pai de Maria do Carmo), forma-se em Engenharia, mas também acaba por ingressar na banca, assumindo um cargo de direção na concorrência: o Banco Comercial de Lisboa, mesmo ao lado do BES, na Rua do Comércio, liderado na altura por Carlos Pereira, dono da Companhia das Águas, pai de Manuel Queiroz Pereira e avô de Pedro Queiroz Pereira. O cargo do pai de Ninita no banco vizinho ajudou seguramente à fusão das duas instituições bancárias, formalizada no papel em Outubro de 1937, e concretizada com o derrube da parede que dividia os dois edifícios. Nasceu assim o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, onde Fernando assumiu o cargo de inspetor-geral. Nasceu também aí a aliança histórica entre os Espírito Santo e os Queiroz Pereira, que acabaria em guerra 75 anos mais tarde, nos anos finais da instituição financeira antes de deixar de pertencer à família e passar a chamar-se Novo Banco.

Antes da fusão, já Fernando Eduardo Moniz Galvão se tinha casado com Maria Carolina Norton de Sommer Alzina e é desta união que nasce Maria do Carmo, em 1933, um ano de grandes mudanças: no país, com a instauração da ditadura do Estado Novo e a afirmação de Salazar como presidente do Conselho; e também no Banco Espírito Santo, que mudou de liderança — José Espírito Santo, que tinha sido o presidente até aí, apaixonou-se pela cunhada, com quem fugiu para Paris para atenuar o escândalo na alta sociedade (ambos eram casados), e foi substituído pelo irmão Ricardo Espírito Santo, avô de Ricardo Salgado (que só nasceria em 1944, sendo 11 anos mais novo que a sua prima Ninita).

Em 1938, quando Maria do Carmo tinha 5 anos, o seu pai foi notícia nos jornais por ter vencido a 10.ª Exposição Canina Internacional de Lisboa, um evento organizado no Jardim Zoológico pela secção de canicultura do Club dos Caçadores Portugueses, e que contou com a presença do então Presidente da República, Óscar Carmona, acompanhado pela mulher e pela filha.

“Recebido com uma salva de palmas pela numerosa assistência, o sr. Presidente da República tomou lugar perto da mesa do júri. Este fez então apresentar no ring os animais que tinham obtido as maiores classificações, para dentre eles selecionar aquele a que competiria o prémio de honra, a taça do Club dos Caçadores Portugueses, a qual coube a um lindo animal, preto azulado e branco, propriedade do sr. eng. Fernando Espírito Santo Moniz Galvão”, lê-se no jornal O Século.

O prémio foi-lhe entregue pelo próprio Chefe de Estado. Outro dos seus cães, “Dennegannon Daphne”, também foi premiado na categoria de cães de caça. Uma fotografia que não saiu publicada no jornal mas está arquivada na Torre do Tombo mostra o pai de Maria do Carmo em plena exibição, de fato e gravata, agachado junto a um cocker spaniel.

No ano seguinte, 1939, morre Maria Justina, a avó de Ninita, deixando o marido e os dois filhos como herdeiros. Fernando Eduardo já é formalmente o proprietário do prédio nº 32 da Rua Aquiles Monteverde, em Arroios (um dos que tinha vindo do património do fundador, José Maria), em 1941, ano em que intenta uma ação de despejo contra o inquilino do 4º esquerdo, que deixou de pagar a renda mensal de 270 escudos. Maria do Carmo viveria na altura com os pais, num segundo andar do 211 da Av. da Liberdade, quando a família foi abalada pelo nascimento e morte de uma bebé, Maria Carolina. Ninita tinha 8 anos.

José Maria nomeou como testamenteira a sua mulher, Rita, e apontou quatro homens para a ajudarem: o genro, Custódio José Moniz Galvão, o primo Miguel Júlio Saraiva, e os sócios Ricardo Apolinário Dias (padrinho de baptismo de Ricardo Espírito Santo) e Liberato Augusto Correa Brandão. Cada um destes quatro coadjuvantes receberia 5 contos por ter aceite a missão. Manifestou um último desejo, condizente com a forma resguardada como alguns dos seus descendentes (a começar por Maria do Carmo) ainda viriam a usufruir da riqueza: “Peço que o meu testamento não seja publicado nos jornais”.

“Há herdeiros que são senhoras e que não podem colaborar na gerência”

Uma das primeiras decisões a tomar antes de se partilhar a herança é a criação de um conselho de família. Salvaguardando a diferença de se tratar de uma obrigação decretada pela justiça, poderia ser semelhante ao que 75 anos mais tarde viria a ser o conselho superior do grupo, com um representante de cada um dos cinco ramos familiares, para decidir o destino dos negócios. Mas aqui a família ainda está tão no início, que não há mais parentes moradores em Lisboa para lá dos herdeiros, pelo que a viúva decide indicar para o conselho de família aqueles que considera os cinco “amigos mais íntimos do falecido”.

Mas o filho bastardo José Rodrigues Bastos, representado por Francisco Veiga Beirão (que tinha sido ministro e chefe do governo na monarquia), contesta tudo o que pode, desde a escolha da viúva para cabeça de casal até à forma de gestão da fortuna enquanto não se fechassem as partilhas, insinua que o pai teria dinheiro escondido num banco suíço [como alguns dos seus descendentes cem anos mais tarde], e inicia uma espécie de leilão entre os herdeiros, oferecendo-se para pagar dez escudos acima do valor da avaliação, para ficar com dois dos prédios do pai, sendo um deles o que tinha sido deixado à filha Maria Justina. Como estratégia negocial, resultou: a família pagou 90 contos ao filho bastardo para chegarem a acordo e se livrar do problema, 9 meses depois da morte de José Maria.

Removido o principal obstáculo, é convocada nova reunião do conselho de família para 16 de Outubro, onde todas as decisões já são aprovadas por unanimidade. A principal deliberação é que seja respeitado o desejo do falecido e que os negócios que possuía fiquem nas mãos dos cinco filhos legítimos – a casa bancária continuará a ser liderada por José Espírito Santo, que está com 21 anos.

Há mais duas deliberações neste encontro. Uma diz respeito a Custódio Moniz Galvão, marido da filha mais velha do banqueiro: quando morrer, se ainda for sócio da casa bancária, a sua quota deve ser vendida aos seus herdeiros, pelos cinco filhos legítimos de José Maria Espírito Santo, por 40 contos, a pagar em cinco anos, com um juro de 5% ao ano.

A outra deliberação tem a ver com a mudança de algumas cláusulas da escritura do banco, porque “há herdeiros que são senhoras e que não podem colaborar na gerência da referida sociedade”. O facto de as mulheres não trabalharem confere com o resto da sociedade em 1916 – mas entre os Espírito Santo é uma tradição que perdurará pelo resto do século: até ao fim do séc. XX serão raras as senhoras a intrometerem-se na gestão dos negócios de família. Maria do Carmo Moniz Galvão também acabou sempre por confiar a gestão aos homens que a rodearam: sucessivamente o pai, o marido, os amigos do marido e os filhos.

A casa bancária deixa de ter o nome completo do fundador e passa a ser apenas os três apelidos: “Espírito Santo Silva & Companhia”. Cada um dos cinco filhos tem agora uma quota de 72 contos, os restantes sete sócios mantêm as posições anteriores, ou seja, Custódio Moniz Galvão mantém os dez contos — o que significa que os avós de Ninita, juntos, detêm 82 contos.

As regras constantes da nova escritura procuram blindar o poder da família: a gerência ficará a cargo de um representante e descendente directo de José Maria Espírito Santo Silva; o seu filho José Espírito Santo fica investido na qualidade de gerente vitalício; os descendentes dos cinco filhos legítimos do fundador, assim que atingem a maioridade, podem representá-los na empresa, “entrando em exercício como se já fossem sócios, inclusive com direito na gerência”.

Na partilha dos lucros, há ligeiras alterações: os primeiros 30% são para fundos de reserva; depois é retirada uma percentagem para os empregados; do que sobrar, cada um dos sete sócios que já vinham do tempo do fundador (incluindo o seu filho José e o genro Moniz Galvão) recebe 7%. O restante é para dividir entre os cinco filhos legítimos em partes iguais. Por conta dos lucros, cada filho pode levantar da caixa 300 escudos por mês, o dobro do valor permitido aos outros sócios. O negócio continua a correr tão bem que a 9 de Abril de 1920, a casa bancária passa a ser um banco. O Banco Espírito Santo.

O pai de Ninita: a influência na fusão com os Queiroz Pereira e os concursos de cães

O médico Custódio Moniz Galvão lidera o Conselho Fiscal do banco em 1920 e 1921, mas rapidamente se desinteressa das funções e é substituído pelo Duque de Palmela. O seu filho, Fernando Eduardo Moniz Galvão (que viria a ser o pai de Maria do Carmo), forma-se em Engenharia, mas também acaba por ingressar na banca, assumindo um cargo de direção na concorrência: o Banco Comercial de Lisboa, mesmo ao lado do BES, na Rua do Comércio, liderado na altura por Carlos Pereira, dono da Companhia das Águas, pai de Manuel Queiroz Pereira e avô de Pedro Queiroz Pereira. O cargo do pai de Ninita no banco vizinho ajudou seguramente à fusão das duas instituições bancárias, formalizada no papel em Outubro de 1937, e concretizada com o derrube da parede que dividia os dois edifícios. Nasceu assim o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, onde Fernando assumiu o cargo de inspetor-geral. Nasceu também aí a aliança histórica entre os Espírito Santo e os Queiroz Pereira, que acabaria em guerra 75 anos mais tarde, nos anos finais da instituição financeira antes de deixar de pertencer à família e passar a chamar-se Novo Banco.

Antes da fusão, já Fernando Eduardo Moniz Galvão se tinha casado com Maria Carolina Norton de Sommer Alzina e é desta união que nasce Maria do Carmo, em 1933, um ano de grandes mudanças: no país, com a instauração da ditadura do Estado Novo e a afirmação de Salazar como presidente do Conselho; e também no Banco Espírito Santo, que mudou de liderança — José Espírito Santo, que tinha sido o presidente até aí, apaixonou-se pela cunhada, com quem fugiu para Paris para atenuar o escândalo na alta sociedade (ambos eram casados), e foi substituído pelo irmão Ricardo Espírito Santo, avô de Ricardo Salgado (que só nasceria em 1944, sendo 11 anos mais novo que a sua prima Ninita).

Em 1938, quando Maria do Carmo tinha 5 anos, o seu pai foi notícia nos jornais por ter vencido a 10.ª Exposição Canina Internacional de Lisboa, um evento organizado no Jardim Zoológico pela secção de canicultura do Club dos Caçadores Portugueses, e que contou com a presença do então Presidente da República, Óscar Carmona, acompanhado pela mulher e pela filha.

“Recebido com uma salva de palmas pela numerosa assistência, o sr. Presidente da República tomou lugar perto da mesa do júri. Este fez então apresentar no ring os animais que tinham obtido as maiores classificações, para dentre eles selecionar aquele a que competiria o prémio de honra, a taça do Club dos Caçadores Portugueses, a qual coube a um lindo animal, preto azulado e branco, propriedade do sr. eng. Fernando Espírito Santo Moniz Galvão”, lê-se no jornal O Século.

O prémio foi-lhe entregue pelo próprio Chefe de Estado. Outro dos seus cães, “Dennegannon Daphne”, também foi premiado na categoria de cães de caça. Uma fotografia que não saiu publicada no jornal mas está arquivada na Torre do Tombo mostra o pai de Maria do Carmo em plena exibição, de fato e gravata, agachado junto a um cocker spaniel.

No ano seguinte, 1939, morre Maria Justina, a avó de Ninita, deixando o marido e os dois filhos como herdeiros. Fernando Eduardo já é formalmente o proprietário do prédio nº 32 da Rua Aquiles Monteverde, em Arroios (um dos que tinha vindo do património do fundador, José Maria), em 1941, ano em que intenta uma ação de despejo contra o inquilino do 4º esquerdo, que deixou de pagar a renda mensal de 270 escudos. Maria do Carmo viveria na altura com os pais, num segundo andar do 211 da Av. da Liberdade, quando a família foi abalada pelo nascimento e morte de uma bebé, Maria Carolina. Ninita tinha 8 anos.

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