distúrbios elementares: bilhete postal da Turquia

10-12-2019
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Distúrbios elementares pela Sónia Ferreira, que me mandou este 'postal' da Turquia, que eu lhe pedi para partilhar. Obrigada.

 

 

Por Sónia Ferreira, da imprensa livre.

 

 

 

A Turquia é uma sauna. Os turcos têm uma obsessão pelo abafo e eu senti-me como uma nórdica em Portugal. Um exagero de aquecimento, caras arrepiadas quando lá fora apenas se sentia uma brisa fresca, um caso de estudo estes turcos. Fiquei impressionada com toda a experiência. Não apenas com os palácios e mesquitas, com o contraste entre abundância e delicadeza, mas com a noção de um país que se sustenta e se renova autonomamente. Na Turquia, que também passou pela purga do FMI, as cidades alargam-se. Fazem-se túneis, estradas, casas, o desemprego está abaixo dos 10 por cento e a descer. Os responsáveis políticos falam em "vamos fazer" e "vamos construir" com tamanha naturalidade que senti nascer no peito um sentimento de pena pelo meu país. Somos pequenos e não temos dinheiro. E de receio, pela Europa que deixamos que aconteça neste momento. Nações estraçalhadas pela ganância de um sistema autofágico, ausência de política, o nada. Na Turquia, debaixo de um regime estranho e de discurso perverso, os direitos das mulheres sofrem retrocessos. Os direitos civis e as liberdades estão longe de cumprir os padrões ocidentais, para nós elementares. Soube que a Turquia está no topo da lista de países com mais jornalistas presos. Há dezenas de jornalistas presos, sobretudo na sequência das manifestações, sobre os quais recaíram acusações falsas de pertencerem a redes criminosas de droga ou de "terrorismo". Bom, no ministério da Defesa Nacional, a assessora perguntou-nos se eramos da "free press" por isso fiquei com dúvidas sobre o estatuto da imprensa na Turquia. Contam-me que uma jornalista foi despedida na semana passada por usar uma camisola que o primeiro-ministro classificou como imprópria. Digo perverso um discurso de um primeiro-ministro que usa o argumentário do ocidente para justificar a islamização do Estado, aos poucos. Diz ele que se a maioria da população é muçulmana, então deve respeitar-se a democracia e dar-se expressão à maioria. A democracia assim esvaziada numa cápsula formal. Na Turquia, o vermelho por todo o lado. Também no raki, a bebida nacional, e mesmo nas romãs, enormes, expostas abertas nas pequenas bancas na praça à hora do pequeno-almoço. O vermelho que forra a sala em que o sultão recebia os altos embaixadores de outros reinos. Uma nação que preza o poder e o exibe, apenas nisto despudorada, nas bandeiras que esvoaçam pela cidade sobre as nossas cabeças.

 

 

Distúrbios elementares pela Sónia Ferreira, que me mandou este 'postal' da Turquia, que eu lhe pedi para partilhar. Obrigada.

 

 

Por Sónia Ferreira, da imprensa livre.

 

 

 

A Turquia é uma sauna. Os turcos têm uma obsessão pelo abafo e eu senti-me como uma nórdica em Portugal. Um exagero de aquecimento, caras arrepiadas quando lá fora apenas se sentia uma brisa fresca, um caso de estudo estes turcos. Fiquei impressionada com toda a experiência. Não apenas com os palácios e mesquitas, com o contraste entre abundância e delicadeza, mas com a noção de um país que se sustenta e se renova autonomamente. Na Turquia, que também passou pela purga do FMI, as cidades alargam-se. Fazem-se túneis, estradas, casas, o desemprego está abaixo dos 10 por cento e a descer. Os responsáveis políticos falam em "vamos fazer" e "vamos construir" com tamanha naturalidade que senti nascer no peito um sentimento de pena pelo meu país. Somos pequenos e não temos dinheiro. E de receio, pela Europa que deixamos que aconteça neste momento. Nações estraçalhadas pela ganância de um sistema autofágico, ausência de política, o nada. Na Turquia, debaixo de um regime estranho e de discurso perverso, os direitos das mulheres sofrem retrocessos. Os direitos civis e as liberdades estão longe de cumprir os padrões ocidentais, para nós elementares. Soube que a Turquia está no topo da lista de países com mais jornalistas presos. Há dezenas de jornalistas presos, sobretudo na sequência das manifestações, sobre os quais recaíram acusações falsas de pertencerem a redes criminosas de droga ou de "terrorismo". Bom, no ministério da Defesa Nacional, a assessora perguntou-nos se eramos da "free press" por isso fiquei com dúvidas sobre o estatuto da imprensa na Turquia. Contam-me que uma jornalista foi despedida na semana passada por usar uma camisola que o primeiro-ministro classificou como imprópria. Digo perverso um discurso de um primeiro-ministro que usa o argumentário do ocidente para justificar a islamização do Estado, aos poucos. Diz ele que se a maioria da população é muçulmana, então deve respeitar-se a democracia e dar-se expressão à maioria. A democracia assim esvaziada numa cápsula formal. Na Turquia, o vermelho por todo o lado. Também no raki, a bebida nacional, e mesmo nas romãs, enormes, expostas abertas nas pequenas bancas na praça à hora do pequeno-almoço. O vermelho que forra a sala em que o sultão recebia os altos embaixadores de outros reinos. Uma nação que preza o poder e o exibe, apenas nisto despudorada, nas bandeiras que esvoaçam pela cidade sobre as nossas cabeças.

 

 

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