Sintra do avesso

12-01-2020
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Llansol,
homenagem que ainda falta
Além do patrocínio que tem concretizado em relação ao denominado Espaço Llansol, sedeado naquela que foi a sua última residência, resolveu a Câmara Municipal de Sintra homenagear a escritora através de uma discreta placa circular, implantada nas pedras do passeio de calçada à portuguesa, junto a um dos grandes plátanos da Volta do Duche que Gabriela Llansol imortalizou.
Quem acompanhou as minhas chamadas de atenção, tanto na Assembleia Municipal, como no já saudoso Jornal de Sintra e nas páginas deste mesmo blogue,* facilmente entenderá que as referidas atitudes da autarquia muito me satisfazem. Todavia, se igualmente bem se lembram, sempre considerei que a devida celebração pública deveria assumir uma inequívoca forma de aproximar a sua memória do cidadão comum.
Ora bem, apesar de tão boa vontade, parece que, de facto, a Câmara ainda não terá acertado. Se quiserem continuar a partilhar as minhas impressões acerca do assunto, terão de lembrar como Gabriela Llansol estava e ficou indissociavelmente ligada à Volta do Duche. E, como todos sabemos, se tal aconteceu, não só foi porque nalguns momentos da sua obra refere o lugar mas também porque tal trecho de Sintra a levou a protagonizar um acto de intervenção cívica que nunca será demais recordar.
A força do civismo O texto que vão (re)ler, foi publicado no Público em 8 de Dezembro de 2001. Antes de o enviar ao jornal, a Maria Gabriela quis ter a gentileza de mo ler. Para mim, o inesperado, duplo e comovido privilégio das palavras escritas, ditas na voz empenhada da primeira pessoa-autora. Concordarão, estou certo, que tratando-se de um dos mais veementes testemunhos em defesa de Sintra, consegue ultrapassar tal dimensão, para funcionar como labéu contra todos quantos se permitem ofender a dignidade, a memória e o espírito dos lugares. "Não haverá diálogo entre mortos (A propósito do projecto de “parking” subterrâneo na Volta do Duche de Sintra) Começo pelos factos. Domingo à tarde fui ao encontro de informação organizado, no terreiro do Palácio de Sintra, por algumas associações ambientalistas. Estávamos umas 200 pessoas. Foi então que percebi o que o executivo camarário planeava, com o acordo do programa Polis II, para a Volta do Duche. Isto: construir, exactamente por baixo da estrada que serpenteia a colina, um parque de estacionamento subterrâneo. Vista do palácio a ideia é simplesmente aberrante. Que espécie de humanos foi capaz de sequer imaginar uma coisa daquelas? Foi-me então explicado que o projecto iria criar uns 300 lugares de estacionamento, iria custar (para começar!) mais de um milhão de contos, poria em risco as árvores que sobrevivessem, além das que seriam abatidas. Ouvi ler extractos de um relatório do Instituto Português do Património Arquitectónico emitindo críticas severas ao projecto. Ouvi dizer que não fora feito nenhum estudo geológico, nem de impacto ambiental. Ouvi dizer que não fora organizada nenhuma consulta pública. Ouvi dizer que os lugares de estacionamento, além de caríssimos, ainda seriam menos dos que actualmente existentes. Ouvi dizer. Ouvi dizer. Projecto inútil, faraónico, destruidor. Praticamente infantil. Na realidade, a informação era escassa. Fora obtida à revelia da edilidade instituída. Que esta se recusava a colocar à disposição da população os elementos necessários a uma aprovação (ou desaprovação) informada. Não ouvi nenhum “slogan”. Nenhum partido político foi aplaudido, nem, aliás, apupado. Apenas foi pedido aos presentes (e ausentes) que assinassem um abaixo-assinado a exigir uma discussão pública sobre a questão. O que assinei. Saí dali com o sentimento de que, na minha “cidade”, onde se desenrolam tantos dos meus livros, eleitos, estranhamente afastados do vivo e do belo, decidiam e devastavam. De que era prudentemente fundada a desconfiança generalizada pelos políticos. De que estes eram um perigo. Que não deixavam sangue nas ruas, mas ferida mortais nos lugares, nas paisagens, nas sensibilidades, na simples e antiquíssima boa-fé. Que interpretavam o voto que lhes fora transitoriamente concedido como um direito a desprezar a inteligência e a estima dos seus concidadãos. Não vou discutir com ninguém o que não pode ser objecto de discussão. Não vou aceitar a morte de árvores, em troco da precária sobrevivência de outras. Não aceito que se anule uma paisagem que não fez mal a ninguém, excepto o dom quotidiano que nos faz de uma beleza de que os paisagistas (assim chamados!) perderam o segredo. Não quero ouvir dizer que o homem pode destruir o que os outros edificaram, sobretudo quando os que assim falam são mentes sem lampejo. Não aceito promessas a troco de atentados irrecuperáveis. Discutir isso seria discutir entre mortos. Repito: só os mortos poderão ter imaginado que as suas ambições desvairadas não teriam consequências. Quando me sentar na Volta do Duche, como tantas vezes faço, que vou dizer às árvores, aos arbustos, aos pássaros, às estações, à vida? Que vos vou dizer? Que não tive forças para respeitar um simples pacto de bondade? Que, mais uma vez, a minha espécie planificou friamente o desastre? Que, juntos, somos mais frágeis do que um punhado de edis, de paisagistas, de construtores civis, sem alma para sentir a santidade da paisagem? E, desta vez, não me serve de consolo constatar o que sempre soube: onde os interesses materiais vingarem como fim, o homem não será. É aterrador pensar, mas é a realidade: sem o dom poético, sem a simples capacidade de sermos maravilhados pelo vivo, a liberdade de consciência está condenada a definhar. Por mim e por vós, foi essa liberdade que fui defender no terreiro do Palácio de Sintra. Maria Gabriela Llansol" ::::::::::::::::::::::
In memoriam
Não é de poético espanto, a força destas palavras? Que assombro! E que desassombro! Considero conveniente recordar em que enquadramento surgiu o texto supra, que terá constituído a machadada final e decisiva no propósito da recandidatura de Edite Estrela à presidência da Câmara Municipal de Sintra. As eleições locais realizaram-se uma semana depois da publicação do artigo de opinião de Maria Gabriela Llansol que teve um impacto enorme. Como sabem, MGL é um dos mais notáveis nomes das Letras portuguesas, não só dos nossos dias mas também, ouso dizê-lo, de todos os tempos, e estou muito bem acompanhado, por exemplo, pelo Prof. João Barrento. Pois, como se verifica, através de um discurso do maior alcance, com toda a acutilância, sem qualquer eufemismo, acabou a escritora por desmascarar quem, apesar do escândalo do projecto, se perfilava para permanecer no poder. Por exemplo, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, dezenas e dezenas de conhecidos académicos subscreveram o abaixo-assinado de que fala a autora do artigo que, com a sua pública tomada de posição –verdadeiro manifesto de Cultura contra a barbárie – induziu muita gente a segui-la, num dos mais interessantes movimentos de cidadãos que Sintra conheceu. Não é muito frequente que intelectuais da craveira de Maria Gabriela Llansol se exponham desta maneira. Subscrever um abaixo-assinado, a favor de uma causa nobre e elevada, é uma coisa. Em idênticas circunstâncias, outra coisa é subscrever um texto com esta força.
Definitiva homenagem
Pois é, meus amigos, Maria Gabriela Llansol é, na realidade, para todos os efeitos e para sempre, a grande senhora da Volta do Duche. Como ela, ninguém se bateu para que aquele lugar permanecesse como ainda hoje se apresenta. Não era do género de pessoa receosa que se refugiasse atrás de atávicos e perenes medos para colher louros, já que não buscava a ribalta videirinha - Maria Gabriela denunciava e subscrevia.
É por tudo isto que me permito insistir. A homenagem pública que merece ainda não aconteceu. Na minha opinião, é a própria Volta do Duche que tem de ficar indissociavelmente ligada à escritora. Trata-se de uma questão de toponímia mas sem que tenha de se alterar seja o que for no sentido da substituição e, muito menos, da supressão de qualquer elemento. Muito pelo contrário e, em suma, proponho que, muito simplesmente, sejam acrescentadas duas palavras nas actuais placas que passariam a indicar: Volta do Duche - Caminho Llansol. Noutros lugares, certo é que em latitudes mais beneficiadas, coisas que tais merecem placas explicativas. Não percebo como, por cá, não afirmamos a história das pessoas e das coisas, das casas, por exemplo, que lhes ficaram presas à memória. A casa que habitou, a história da sua luta pela Volta do Duche, não podem, não devem estar escondidas. Por ali passa a dimensão da escritora e cidadã que soube intervir quando foi importante que interviesse.
Se e quando tal acontecer – provavelmente, na altura em que o pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Sintra tiver sido atribuído a alguém que, efectivamente, mereça a distinção de tão especial serviço à comunidade – bom será que os estafados discursos de ocasião não metam tanto os pés pelas mãos nas excelências, a que Maria Gabriela tão pouco ligava. * Neste mesmo blogue, ler: Llansol, palavra certa, 02.03.09; Uma questão de homenagem, 03.07.08; Maria Gabriela Llansol, voz contundente, 02.04.08.
............................. Aproveito a oportunidade para desejar a todos um Bom Ano Novo.


Llansol,
homenagem que ainda falta
Além do patrocínio que tem concretizado em relação ao denominado Espaço Llansol, sedeado naquela que foi a sua última residência, resolveu a Câmara Municipal de Sintra homenagear a escritora através de uma discreta placa circular, implantada nas pedras do passeio de calçada à portuguesa, junto a um dos grandes plátanos da Volta do Duche que Gabriela Llansol imortalizou.
Quem acompanhou as minhas chamadas de atenção, tanto na Assembleia Municipal, como no já saudoso Jornal de Sintra e nas páginas deste mesmo blogue,* facilmente entenderá que as referidas atitudes da autarquia muito me satisfazem. Todavia, se igualmente bem se lembram, sempre considerei que a devida celebração pública deveria assumir uma inequívoca forma de aproximar a sua memória do cidadão comum.
Ora bem, apesar de tão boa vontade, parece que, de facto, a Câmara ainda não terá acertado. Se quiserem continuar a partilhar as minhas impressões acerca do assunto, terão de lembrar como Gabriela Llansol estava e ficou indissociavelmente ligada à Volta do Duche. E, como todos sabemos, se tal aconteceu, não só foi porque nalguns momentos da sua obra refere o lugar mas também porque tal trecho de Sintra a levou a protagonizar um acto de intervenção cívica que nunca será demais recordar.
A força do civismo O texto que vão (re)ler, foi publicado no Público em 8 de Dezembro de 2001. Antes de o enviar ao jornal, a Maria Gabriela quis ter a gentileza de mo ler. Para mim, o inesperado, duplo e comovido privilégio das palavras escritas, ditas na voz empenhada da primeira pessoa-autora. Concordarão, estou certo, que tratando-se de um dos mais veementes testemunhos em defesa de Sintra, consegue ultrapassar tal dimensão, para funcionar como labéu contra todos quantos se permitem ofender a dignidade, a memória e o espírito dos lugares. "Não haverá diálogo entre mortos (A propósito do projecto de “parking” subterrâneo na Volta do Duche de Sintra) Começo pelos factos. Domingo à tarde fui ao encontro de informação organizado, no terreiro do Palácio de Sintra, por algumas associações ambientalistas. Estávamos umas 200 pessoas. Foi então que percebi o que o executivo camarário planeava, com o acordo do programa Polis II, para a Volta do Duche. Isto: construir, exactamente por baixo da estrada que serpenteia a colina, um parque de estacionamento subterrâneo. Vista do palácio a ideia é simplesmente aberrante. Que espécie de humanos foi capaz de sequer imaginar uma coisa daquelas? Foi-me então explicado que o projecto iria criar uns 300 lugares de estacionamento, iria custar (para começar!) mais de um milhão de contos, poria em risco as árvores que sobrevivessem, além das que seriam abatidas. Ouvi ler extractos de um relatório do Instituto Português do Património Arquitectónico emitindo críticas severas ao projecto. Ouvi dizer que não fora feito nenhum estudo geológico, nem de impacto ambiental. Ouvi dizer que não fora organizada nenhuma consulta pública. Ouvi dizer que os lugares de estacionamento, além de caríssimos, ainda seriam menos dos que actualmente existentes. Ouvi dizer. Ouvi dizer. Projecto inútil, faraónico, destruidor. Praticamente infantil. Na realidade, a informação era escassa. Fora obtida à revelia da edilidade instituída. Que esta se recusava a colocar à disposição da população os elementos necessários a uma aprovação (ou desaprovação) informada. Não ouvi nenhum “slogan”. Nenhum partido político foi aplaudido, nem, aliás, apupado. Apenas foi pedido aos presentes (e ausentes) que assinassem um abaixo-assinado a exigir uma discussão pública sobre a questão. O que assinei. Saí dali com o sentimento de que, na minha “cidade”, onde se desenrolam tantos dos meus livros, eleitos, estranhamente afastados do vivo e do belo, decidiam e devastavam. De que era prudentemente fundada a desconfiança generalizada pelos políticos. De que estes eram um perigo. Que não deixavam sangue nas ruas, mas ferida mortais nos lugares, nas paisagens, nas sensibilidades, na simples e antiquíssima boa-fé. Que interpretavam o voto que lhes fora transitoriamente concedido como um direito a desprezar a inteligência e a estima dos seus concidadãos. Não vou discutir com ninguém o que não pode ser objecto de discussão. Não vou aceitar a morte de árvores, em troco da precária sobrevivência de outras. Não aceito que se anule uma paisagem que não fez mal a ninguém, excepto o dom quotidiano que nos faz de uma beleza de que os paisagistas (assim chamados!) perderam o segredo. Não quero ouvir dizer que o homem pode destruir o que os outros edificaram, sobretudo quando os que assim falam são mentes sem lampejo. Não aceito promessas a troco de atentados irrecuperáveis. Discutir isso seria discutir entre mortos. Repito: só os mortos poderão ter imaginado que as suas ambições desvairadas não teriam consequências. Quando me sentar na Volta do Duche, como tantas vezes faço, que vou dizer às árvores, aos arbustos, aos pássaros, às estações, à vida? Que vos vou dizer? Que não tive forças para respeitar um simples pacto de bondade? Que, mais uma vez, a minha espécie planificou friamente o desastre? Que, juntos, somos mais frágeis do que um punhado de edis, de paisagistas, de construtores civis, sem alma para sentir a santidade da paisagem? E, desta vez, não me serve de consolo constatar o que sempre soube: onde os interesses materiais vingarem como fim, o homem não será. É aterrador pensar, mas é a realidade: sem o dom poético, sem a simples capacidade de sermos maravilhados pelo vivo, a liberdade de consciência está condenada a definhar. Por mim e por vós, foi essa liberdade que fui defender no terreiro do Palácio de Sintra. Maria Gabriela Llansol" ::::::::::::::::::::::
In memoriam
Não é de poético espanto, a força destas palavras? Que assombro! E que desassombro! Considero conveniente recordar em que enquadramento surgiu o texto supra, que terá constituído a machadada final e decisiva no propósito da recandidatura de Edite Estrela à presidência da Câmara Municipal de Sintra. As eleições locais realizaram-se uma semana depois da publicação do artigo de opinião de Maria Gabriela Llansol que teve um impacto enorme. Como sabem, MGL é um dos mais notáveis nomes das Letras portuguesas, não só dos nossos dias mas também, ouso dizê-lo, de todos os tempos, e estou muito bem acompanhado, por exemplo, pelo Prof. João Barrento. Pois, como se verifica, através de um discurso do maior alcance, com toda a acutilância, sem qualquer eufemismo, acabou a escritora por desmascarar quem, apesar do escândalo do projecto, se perfilava para permanecer no poder. Por exemplo, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, dezenas e dezenas de conhecidos académicos subscreveram o abaixo-assinado de que fala a autora do artigo que, com a sua pública tomada de posição –verdadeiro manifesto de Cultura contra a barbárie – induziu muita gente a segui-la, num dos mais interessantes movimentos de cidadãos que Sintra conheceu. Não é muito frequente que intelectuais da craveira de Maria Gabriela Llansol se exponham desta maneira. Subscrever um abaixo-assinado, a favor de uma causa nobre e elevada, é uma coisa. Em idênticas circunstâncias, outra coisa é subscrever um texto com esta força.
Definitiva homenagem
Pois é, meus amigos, Maria Gabriela Llansol é, na realidade, para todos os efeitos e para sempre, a grande senhora da Volta do Duche. Como ela, ninguém se bateu para que aquele lugar permanecesse como ainda hoje se apresenta. Não era do género de pessoa receosa que se refugiasse atrás de atávicos e perenes medos para colher louros, já que não buscava a ribalta videirinha - Maria Gabriela denunciava e subscrevia.
É por tudo isto que me permito insistir. A homenagem pública que merece ainda não aconteceu. Na minha opinião, é a própria Volta do Duche que tem de ficar indissociavelmente ligada à escritora. Trata-se de uma questão de toponímia mas sem que tenha de se alterar seja o que for no sentido da substituição e, muito menos, da supressão de qualquer elemento. Muito pelo contrário e, em suma, proponho que, muito simplesmente, sejam acrescentadas duas palavras nas actuais placas que passariam a indicar: Volta do Duche - Caminho Llansol. Noutros lugares, certo é que em latitudes mais beneficiadas, coisas que tais merecem placas explicativas. Não percebo como, por cá, não afirmamos a história das pessoas e das coisas, das casas, por exemplo, que lhes ficaram presas à memória. A casa que habitou, a história da sua luta pela Volta do Duche, não podem, não devem estar escondidas. Por ali passa a dimensão da escritora e cidadã que soube intervir quando foi importante que interviesse.
Se e quando tal acontecer – provavelmente, na altura em que o pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Sintra tiver sido atribuído a alguém que, efectivamente, mereça a distinção de tão especial serviço à comunidade – bom será que os estafados discursos de ocasião não metam tanto os pés pelas mãos nas excelências, a que Maria Gabriela tão pouco ligava. * Neste mesmo blogue, ler: Llansol, palavra certa, 02.03.09; Uma questão de homenagem, 03.07.08; Maria Gabriela Llansol, voz contundente, 02.04.08.
............................. Aproveito a oportunidade para desejar a todos um Bom Ano Novo.

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