Alma Lusíada: Outubro 2005

01-09-2020
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O artigo de Medina Carreira, inserto no Público de hoje, intitulado « No Fio da Navalha », merece ser lido e meditado, como normalmente sucede, com tudo o que MC escreve sobre a situação económico-financeira do Estado Português, pelo menos por aqueles que prezam a decência de um Estado organizado, provido de coesão social, de solidariedade entre os seus membros, longe da selvajaria do salve-se quem puder, que tende hoje a alastrar pelo mundo.Há muito quem proclame Medina Carreira louco, tomado de negro pessimismo, pretendendo, assim, desvalorizar o que ele diz. Fariam melhor em rebater a argumentação que ele apresenta...Para os que verdadeiramente se preocupam com a preservação do Estado de Bem-Estar Social, convém que saibam bem o que o ameaça, para depois lhe prescreverem a terapêutica adequada, em lugar de apodarem de pessimista ou profeta da desgraça quem se limita a analisar as contas do Estado, sem altas incursões matemáticas, usando, quase só, a comezinha Aritmética de outros mais limitados tempos.Perante o quadro sombrio do actual Estado Social, traçado por pessoas que nos merecem confiança técnica, profissional e moral, como Medina Carreira e Silva Lopes, por ex., para citar apenas dois dos nossos mais reputados estudiosos da Economia e das Finanças públicas, só uma questão se deve levantar : ou ele, o lúgubre quadro, assenta em dados reais, verdadeiros, ou não.Se não o são, que esses dados sejam contraditados, por quem os conheça melhor. Se são reais, então que se proceda em conformidade, para salvar o que pode ser salvo do Bem-Estar Social, que tornou a Europa um oásis de paz e de progresso nos últimos sessenta anos.Isto porque, pese a realidade dos números, devemos lembrar-nos de que, se o Estado de Bem-Estar Social abrir falência, por insustentabilidade financeira, todos perderemos com a situação ; sem ele, não há dignidade assegurada para ninguém no mundo do Trabalho, com excepção de um pequeno número de apaniguados, salvaguardados, como sempre, pelo famigerado elevado Q.I. ( quem indica ).Em primeiro lugar, para os trabalhadores por conta de outrem, a ameaça é real ; a curto prazo, podem muito simplesmente regressar à condição de meros serviçais, braçais ou intelectuais, com leves direitos, mas sobrecarregados de deveres, sujeitos aos humores ou boas graças de Patrões, Empresários ou Gestores, que, rapidamente, se transformarão em qualquer coisa como novos Amos ou Senhores, dispensando favores ou concedendo vantagens a quem bem entenderem, segundo os juízos e critérios mais discricionários que se possam conceber, sem nenhuma possibilidade de contestação por parte dos eventuais preteridos e prejudicados.Se não queremos que tal desgraça nos aconteça, é melhor começarmos a pensar na forma de o retirar a ele, ao Estado Social, do caminho e da rota funesta que vem perigosamente seguindo.Sem Estado de Bem-Estar alargado, aligeirado que seja, adeus coesão social; regrediremos rapidamente muitas dezenas de anos, acumulando sofrimento e vexames, que, ainda há pouco, se nos figuravam no espírito como velhas relíquias deixadas pela roda imparável da História.Seria bom que os cidadãos conscientes do seu papel, em particular os que votam nos Partidos com preocupações sociais, da área socialista ou social-democrática, meditassem neste vero magno problema e levassem os responsáveis das suas organizações a comprometerem-se a envidar todos os esforços para a preservação do Estado Social, que desde a Segunda Guerra para cá, criou as sociedades culturalmente avançadas e socialmente equilibradas que conhecemos. O que em seu lugar se prepara não é nada auspicioso.Os altivos arautos do ultra-liberalismo económico, os que propugnam o fim dos Estados e das Nações, que não os deles, obviamente, os que advogam a desregulação de toda a vida económica e social, em nome da sacrossanta competitividade das Empresas, os que nunca respondem pelas nocivas consequências das suas levianas decisões, há muito que nos empurram para um mundo medonho de incerteza, de conflitualidade e precariedade, que a Europa, pelo menos, não imaginava pudesse voltar a conhecer.Aqui não espantará que surjam fortes resistências ao desmantelamento do Estado Social. Compreende-se a necessidade de mudança, aceita-se até prescindir de algumas regalias sociais, em nome da sustentabilidade daquilo que se sente como elemento de estabilidade, que dá honra e dignidade à nossa vida social.Abdicar do Estado de Bem-Estar Social para ver triunfar o egoísmo, a impiedade e a selvajaria, a indiferença pelo sofrimento alheio, numa espécie de darwinismo social, em que só sobrevivem os mais fortes, não será nunca atitude razoável, consentânea com a dignidade do ser humano.É para este perigo que é preciso acordar e para isso não se torna necessário ressuscitar ideologias fantasmas, que provaram igualmente a sua nocividade, mas tão-somente afirmar preceitos e princípios compatíveis com essa dignidade humana, alguns deles com mais de dois mil anos de existência e já amplamente alcançados em muitos países do continente europeu.AV_Lisboa, 25 de Outubro de 2005----------------------------------Pela sua importância e oportunidade, transcrevo abaixo o artigo de Medina Carreira que suscitou a reflexão que acabei de fazer.« No fio da navalhaMedina Carreira*«Quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável.»Séneca1- A nossa crise aí está, cada vez mais complexa, mais demorada e mais perigosa. Tenderá a agravar-se enquanto os "optimistas profissionais" não entenderem que o mal não é o pessimismo, mas o atraso; não é a desconfiança, mas os embustes; não é a descrença, mas a incompetência; não são os défices, mas a inviabilidade de viver à custa alheia; não é a falta de desenvolvimento, mas o conservadorismo que o bloqueia; não são as ideias, mas as palavras; não são os males do mundo, mas a nossa incapacidade para vencer os próprios. As crises do Estado e da economia, entre todas, têm especial relevância e arriscada repercussão. Daremos um decisivo passo em frente quando os portugueses tomarem "consciência deste estado, porque as políticas só serão possíveis com consenso social". E que "é preciso dizer a verdade, não histórias", como sensatamente sublinha Andrea Canino (1).2. A crise do nosso Estado é, antes de mais, política. Um regime quase parlamentar vale o que valerem os princípios e a prática dos principais partidos. Em Portugal, eles estão agora dominados por um clientelismo devorador que a tudo antepõe o objectivo da "ocupação" do Estado porque, só neste, se dispõe de tantos empregos, de tantas oportunidades e de tantas influências. Os demais partidos, sem horizontes próximos de assunção de responsabilidades, garantem ou insinuam, em geral, a existência de uma capacidade do Estado, para dar ou para fazer, que oscila entre uma confrangedora ingenuidade e um descarado embuste. Portanto, fora do arrivismo, do negocismo, da fantasia ou do sofisma, vai-se reduzindo perigosamente o espaço para a verdade e para a acção política séria. A democracia, assim, é um engano e em breve será uma terrível desilusão.3. O clientelismo partidário encontra um aliado decisivo no "Partido do Estado". Sem este não há votos suficientes, sem votos não há "ocupação" do Estado e sem esta "ocupação" não há distribuição de benefícios. Isto é: sem os favores de grande parte dessa multidão de mais de cinco milhões de portugueses - políticos, funcionários, pensionistas, subsidiados e familiares -, detentores de mais de 55 por cento dos votos do eleitorado, nenhum partido pode hoje governar em Portugal. Por isso, nas campanhas eleitorais silencia-se, distorce-se ou dissimula-se a verdade da nossa situação para tranquilizar os membros do "Partido do Estado". Atingido o Governo, logo se procura o pretexto da "alteração das circunstâncias" em vista da imposição de medidas impopulares que, embora insuficientes, teriam alterado o sentido da votação se fossem ditas na campanha eleitoral. Os resultados desta traficância são fatais: o descrédito dos políticos e a ausência de reformas essenciais. Legislatura após legislatura, vamos caindo para níveis que não eram sequer pensáveis.4. O produto interno bruto português cresceu 80 por cento (1960-70), 57 (1970-80), 43 (1980-90) e 30 (1990-2000); 4 por cento entre 2000 e 2005 (2). E hoje a sua evolução está muito condicionada pelo volume do crédito externo que formos obtendo: como adverte Silva Lopes (3), se este atingir limites muito mais apertados que os actuais "negras nuvens pairarão sobre o crescimento da economia nacional". No curto e no médio prazo teremos uma economia rastejante e, em boa medida, nas mãos dos financiadores internacionais.5. É também muito grave a crise financeira do Estado. A queda prolongada da economia, a expansão descontrolada das despesas, o envelhecimento demográfico e a insuficiência relativa da arrecadação fiscal colocaram-nos na situação financeira pública mais desesperada de toda a UE/15. Efectivamente, foram estes os crescimentos reais (1960-2005): do PIB, 5,5 vezes; dos impostos, 13,8 vezes; da despesa pública primária, 15,5 vezes. Por isso, o défice fiscal em relação a esta despesa apresenta uma forte tendência para o agravamento: -1,2 pp. do Pib (1960); -2,5 pp. (1990); e - 8 pp. (2005), embora a carga fiscal, equivalente a cerca de 55 por cento da média europeia, nos anos sessenta, tenha subido para quase 95 por cento em 2005. Um Estado constitucionalizado na dependência implícita de uma economia que crescia quase 80 por cento numa década (1960-70), não tem suporte económico e financeiro quando ela se queda nos quatro por cento num lustro (2000-2005) e enfrenta ainda um acelerado envelhecimento demográfico. É isto, nomeadamente, que não permite falar com seriedade de "alteração das circunstâncias", perante uma tendência continuada e sempre agravada que atravessa mais de três décadas.6. Crise económica e crise financeira do Estado, em especial, determinam a pouco referida crise da social-democracia / socialismo democrático. De facto, sem perspectivas favoráveis, no curto e no médio prazo, a economia portuguesa já não suporta, e não suportará, uma política redistributiva do rendimento e da riqueza (4); nem aproximará a taxa de ocupação da mão-de-obra do pleno emprego; nem assegurará, responsavelmente, o futuro de um Estado Social que pretenda garantir tudo a todos; nem um sindicalismo actuante porque, "contra" os privados, teme as falências e as "deslocalizações", e "contra" o Estado ataca verdadeiramente os contribuintes, que são as únicas vítimas do "Partido do Estado". Além da medíocre economia que temos, o Estado português, na Zona Euro, não pode ser intervencionista: sem moeda já não tem política monetária, nem cambial próprias; não tem fronteiras nem alfândegas; não tem autonomia orçamental; e não pode controlar a circulação dos capitais. Neste contexto, as políticas e os objectivos da social-democracia/socialismo democrático, que a grande maioria dos portugueses prefere, caminham para o esgotamento.7. De resto, ainda não se entendeu bem, entre nós, que "as principais baixas políticas das crises do capitalismo na Europa Ocidental haviam de ser os partidos da esquerda [...], ao passo que os seus maiores êxitos se verificaram durante os trinta gloriosos anos de crescimento capitalista (1945-75) - a Era Dourada do Capitalismo" (5). Na verdade, sem uma economia próspera é uma pura estultícia prometer a redistribuição, o pleno emprego, a solidez do Estado Social que dá tudo a todos e a intervenção consistente do sindicalismo. Ao menos como modelo nacional e no mundo actual, a social-democracia está a caminho da irrelevância completa. É isto, muito claramente, que coloca o problema económico no cerne de todas as preocupações em alguns países da UE.8. A abertura das economias através da UE/15, do "alargamento" e da liberalização do comércio mundial é a novidade e o embaraço. Neste novo e enorme mercado, e sem capacidade competitiva, nem vendemos em Portugal o que aqui poderíamos produzir, nem exportamos porque outros são os preferidos: as nossas produções acabam por desaparecer se não conseguirmos competir melhor ou se o mundo não voltar para trás. Em face disto, há quem pense, como Mário Soares (6), que "os socialistas têm que estar conscientes de que hoje é indispensável mudar a ordem das coisas no mundo, sem o que os seus ideais deixam de ter sentido". É correcta esta percepção quanto ao futuro da social-democracia, como a conhecemos, num espaço comercialmente aberto e com livre circulação dos capitais. Mas é muito arriscado esperar que mude a "ordem das coisas no mundo", para viabilizar a social-democracia, porque poderá não acontecer. É por isso que, se não formos capazes de promover a nossa própria mudança, nos restará o estatuto de modestos serviçais dos europeus. Resumindo: mudar é a condição da sobrevivência, conservar será o nosso suicídio. Esta é a escolha que se coloca aos portugueses.9. A modificação mais urgente e mais difícil, mas ao nosso alcance, é a do Estado, porque não haverá meios, na próxima década, para alimentar o desvario despesista dos últimos anos. Pese embora a circunstância de sermos um dos países mais pobres da UE/15 (Quadro anexo, col.1), excedemos todos os outros na evolução de índices fundamentais relativos às finanças públicas (Quadro anexo): na carga fiscal (+ 8,4 pp. do PIB, col.2); na despesa corrente (+ 4,7 pp. - col.3); na despesa corrente primária (+ 10 pp., col.4); nas despesas de protecção social (+ 8,2 pp., col.5); nas pensões (+ 3,7 pp., col.6); e na fracção dos impostos aplicados na protecção social (+ 18 pp. do NF, col.7) (7). Uma tão desatinada evolução financeira - verdadeiramente ruinosa e sem paralelo europeu - constitui em muito o resultado do "optimismo profissional" e inconsistente dos responsáveis, e da maldição que sempre nos persegue, e que é o "ódio nacional" aos números, às contas, ao rigor e à responsabilidade, quando está em causa a gestão dos dinheiros públicos.10. O Quadro anexo evidencia assim o insuportável ritmo da evolução das despesas correntes primárias e, nelas, das da protecção social, onde as pensões assumem grande importância. Os países que aí nos seguem imediatamente, a Alemanha e a Grécia, situam-se a uma distância enorme: -6 ,1 pp. (despesa corrente primária. col.4), -3,1 pp. (despesa de protecção social, col.5), e -1.8 pp. (pensões, col.6). Porque não vislumbramos condições para uma próxima e suficiente prosperidade económica, resta apenas o caminho das reformas urgentes, drásticas e com efeitos num prazo útil, isto é, da ordem dos cinco anos: são uma condição necessária, embora insuficiente, para evitar o colapso financeiro do Estado.11. Fixemos o quadro fundamental seguinte:1.º Que a nossa economia, no longo prazo, apresenta um inexorável declínio;2.º Que, no médio prazo, tenderá a manter-se esta mediocridade, nomeadamente, devido: ao nosso endividamento e à dependência financeira externa; à falta de competitividade; aos custos elevados do petróleo; ao "alargamento" e às suas consequências; à penetração dos produtos chineses; à estagnação das principais economias europeias; e à ausência de investimentos estrangeiros;3.º Que a iniquidade do nosso sistema fiscal não tem impedido arrecadações que já excedem as expectativas, em comparação com a UE/15;4.º Que, sendo estes os muito prováveis limites económicos e financeiros, nos próximos anos, a consolidação orçamental dependerá das políticas de despesas, em que avultam as do pessoal e as prestações sociais (80 por cento da despesa corrente primária, em 2004);5.º Que, consequentemente, terá de ir-se muito mais longe do que se foi, até agora, quanto àquelas políticas, o que só será possível modificando os regimes em vigor e os "direitos adquiridos", face à verdadeira "alteração das circunstâncias";6.º Que só uma nova e próxima prosperidade económica, inverosímil em prazo útil, poderia evitar ou atenuar a rudeza do que se impõe fazer;7.º Que a improbabilidade manifesta de êxito da política de espera pela "mudança do mundo" não consente, responsavelmente, mais tergiversações e delongas.12. O que é imperativo que se faça, sob pena da nossa devastação pelo livre comércio mundial e pelo peso insuportável do Estado, exige a adesão e a unidade consciente da sociedade. E esta só será conquistada perante a verdade completa da nossa situação, enunciada pelos mais altos responsáveis políticos.*Advogado, antigo Ministro das Finanças(1). PÚBLICO, 6.Out.2005.(2). Nos últimos anos: 1998 - +4,7%; 1999 - +3,8%; 2000 - +3,7%; 2001 - +1,8%; 2002 - +0,4%;2003 - -1,1%; 2004 - +1,1%.(3). A economia portuguesa no século XX, ICS/2004, p. 125.(4). Dificuldade agravada pelos altos níveis fiscais já atingidos, pela competitividade fiscal internacional e pela livre circulação dos capitais.(5). Donald Sassoon, Cem anos de socialismo, Vol. I, p. 21.(6). Mário Soares e Sérgio Sousa Pinto, Diálogo de Gerações, Temas & Debates/2004, p. 59.(7). Os resultados recentes das contas públicas só não são mais desastrados porque, nos anos 90, os impostos se comportaram positivamente, os fundos europeus atingiram os 45 000 milhões de euros, as privatizações renderam 17 000 milhões de euros (dos quais 10 000 milhões amortizaram a dívida pública) e o peso dos juros caiu o equivalente a quase a 6 pp. do PIB. Este conjunto de circunstâncias favoráveis são irrepetíveis nos próximos anos. »------------------------------------------------------------------------------------------------

O artigo de Medina Carreira, inserto no Público de hoje, intitulado « No Fio da Navalha », merece ser lido e meditado, como normalmente sucede, com tudo o que MC escreve sobre a situação económico-financeira do Estado Português, pelo menos por aqueles que prezam a decência de um Estado organizado, provido de coesão social, de solidariedade entre os seus membros, longe da selvajaria do salve-se quem puder, que tende hoje a alastrar pelo mundo.Há muito quem proclame Medina Carreira louco, tomado de negro pessimismo, pretendendo, assim, desvalorizar o que ele diz. Fariam melhor em rebater a argumentação que ele apresenta...Para os que verdadeiramente se preocupam com a preservação do Estado de Bem-Estar Social, convém que saibam bem o que o ameaça, para depois lhe prescreverem a terapêutica adequada, em lugar de apodarem de pessimista ou profeta da desgraça quem se limita a analisar as contas do Estado, sem altas incursões matemáticas, usando, quase só, a comezinha Aritmética de outros mais limitados tempos.Perante o quadro sombrio do actual Estado Social, traçado por pessoas que nos merecem confiança técnica, profissional e moral, como Medina Carreira e Silva Lopes, por ex., para citar apenas dois dos nossos mais reputados estudiosos da Economia e das Finanças públicas, só uma questão se deve levantar : ou ele, o lúgubre quadro, assenta em dados reais, verdadeiros, ou não.Se não o são, que esses dados sejam contraditados, por quem os conheça melhor. Se são reais, então que se proceda em conformidade, para salvar o que pode ser salvo do Bem-Estar Social, que tornou a Europa um oásis de paz e de progresso nos últimos sessenta anos.Isto porque, pese a realidade dos números, devemos lembrar-nos de que, se o Estado de Bem-Estar Social abrir falência, por insustentabilidade financeira, todos perderemos com a situação ; sem ele, não há dignidade assegurada para ninguém no mundo do Trabalho, com excepção de um pequeno número de apaniguados, salvaguardados, como sempre, pelo famigerado elevado Q.I. ( quem indica ).Em primeiro lugar, para os trabalhadores por conta de outrem, a ameaça é real ; a curto prazo, podem muito simplesmente regressar à condição de meros serviçais, braçais ou intelectuais, com leves direitos, mas sobrecarregados de deveres, sujeitos aos humores ou boas graças de Patrões, Empresários ou Gestores, que, rapidamente, se transformarão em qualquer coisa como novos Amos ou Senhores, dispensando favores ou concedendo vantagens a quem bem entenderem, segundo os juízos e critérios mais discricionários que se possam conceber, sem nenhuma possibilidade de contestação por parte dos eventuais preteridos e prejudicados.Se não queremos que tal desgraça nos aconteça, é melhor começarmos a pensar na forma de o retirar a ele, ao Estado Social, do caminho e da rota funesta que vem perigosamente seguindo.Sem Estado de Bem-Estar alargado, aligeirado que seja, adeus coesão social; regrediremos rapidamente muitas dezenas de anos, acumulando sofrimento e vexames, que, ainda há pouco, se nos figuravam no espírito como velhas relíquias deixadas pela roda imparável da História.Seria bom que os cidadãos conscientes do seu papel, em particular os que votam nos Partidos com preocupações sociais, da área socialista ou social-democrática, meditassem neste vero magno problema e levassem os responsáveis das suas organizações a comprometerem-se a envidar todos os esforços para a preservação do Estado Social, que desde a Segunda Guerra para cá, criou as sociedades culturalmente avançadas e socialmente equilibradas que conhecemos. O que em seu lugar se prepara não é nada auspicioso.Os altivos arautos do ultra-liberalismo económico, os que propugnam o fim dos Estados e das Nações, que não os deles, obviamente, os que advogam a desregulação de toda a vida económica e social, em nome da sacrossanta competitividade das Empresas, os que nunca respondem pelas nocivas consequências das suas levianas decisões, há muito que nos empurram para um mundo medonho de incerteza, de conflitualidade e precariedade, que a Europa, pelo menos, não imaginava pudesse voltar a conhecer.Aqui não espantará que surjam fortes resistências ao desmantelamento do Estado Social. Compreende-se a necessidade de mudança, aceita-se até prescindir de algumas regalias sociais, em nome da sustentabilidade daquilo que se sente como elemento de estabilidade, que dá honra e dignidade à nossa vida social.Abdicar do Estado de Bem-Estar Social para ver triunfar o egoísmo, a impiedade e a selvajaria, a indiferença pelo sofrimento alheio, numa espécie de darwinismo social, em que só sobrevivem os mais fortes, não será nunca atitude razoável, consentânea com a dignidade do ser humano.É para este perigo que é preciso acordar e para isso não se torna necessário ressuscitar ideologias fantasmas, que provaram igualmente a sua nocividade, mas tão-somente afirmar preceitos e princípios compatíveis com essa dignidade humana, alguns deles com mais de dois mil anos de existência e já amplamente alcançados em muitos países do continente europeu.AV_Lisboa, 25 de Outubro de 2005----------------------------------Pela sua importância e oportunidade, transcrevo abaixo o artigo de Medina Carreira que suscitou a reflexão que acabei de fazer.« No fio da navalhaMedina Carreira*«Quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável.»Séneca1- A nossa crise aí está, cada vez mais complexa, mais demorada e mais perigosa. Tenderá a agravar-se enquanto os "optimistas profissionais" não entenderem que o mal não é o pessimismo, mas o atraso; não é a desconfiança, mas os embustes; não é a descrença, mas a incompetência; não são os défices, mas a inviabilidade de viver à custa alheia; não é a falta de desenvolvimento, mas o conservadorismo que o bloqueia; não são as ideias, mas as palavras; não são os males do mundo, mas a nossa incapacidade para vencer os próprios. As crises do Estado e da economia, entre todas, têm especial relevância e arriscada repercussão. Daremos um decisivo passo em frente quando os portugueses tomarem "consciência deste estado, porque as políticas só serão possíveis com consenso social". E que "é preciso dizer a verdade, não histórias", como sensatamente sublinha Andrea Canino (1).2. A crise do nosso Estado é, antes de mais, política. Um regime quase parlamentar vale o que valerem os princípios e a prática dos principais partidos. Em Portugal, eles estão agora dominados por um clientelismo devorador que a tudo antepõe o objectivo da "ocupação" do Estado porque, só neste, se dispõe de tantos empregos, de tantas oportunidades e de tantas influências. Os demais partidos, sem horizontes próximos de assunção de responsabilidades, garantem ou insinuam, em geral, a existência de uma capacidade do Estado, para dar ou para fazer, que oscila entre uma confrangedora ingenuidade e um descarado embuste. Portanto, fora do arrivismo, do negocismo, da fantasia ou do sofisma, vai-se reduzindo perigosamente o espaço para a verdade e para a acção política séria. A democracia, assim, é um engano e em breve será uma terrível desilusão.3. O clientelismo partidário encontra um aliado decisivo no "Partido do Estado". Sem este não há votos suficientes, sem votos não há "ocupação" do Estado e sem esta "ocupação" não há distribuição de benefícios. Isto é: sem os favores de grande parte dessa multidão de mais de cinco milhões de portugueses - políticos, funcionários, pensionistas, subsidiados e familiares -, detentores de mais de 55 por cento dos votos do eleitorado, nenhum partido pode hoje governar em Portugal. Por isso, nas campanhas eleitorais silencia-se, distorce-se ou dissimula-se a verdade da nossa situação para tranquilizar os membros do "Partido do Estado". Atingido o Governo, logo se procura o pretexto da "alteração das circunstâncias" em vista da imposição de medidas impopulares que, embora insuficientes, teriam alterado o sentido da votação se fossem ditas na campanha eleitoral. Os resultados desta traficância são fatais: o descrédito dos políticos e a ausência de reformas essenciais. Legislatura após legislatura, vamos caindo para níveis que não eram sequer pensáveis.4. O produto interno bruto português cresceu 80 por cento (1960-70), 57 (1970-80), 43 (1980-90) e 30 (1990-2000); 4 por cento entre 2000 e 2005 (2). E hoje a sua evolução está muito condicionada pelo volume do crédito externo que formos obtendo: como adverte Silva Lopes (3), se este atingir limites muito mais apertados que os actuais "negras nuvens pairarão sobre o crescimento da economia nacional". No curto e no médio prazo teremos uma economia rastejante e, em boa medida, nas mãos dos financiadores internacionais.5. É também muito grave a crise financeira do Estado. A queda prolongada da economia, a expansão descontrolada das despesas, o envelhecimento demográfico e a insuficiência relativa da arrecadação fiscal colocaram-nos na situação financeira pública mais desesperada de toda a UE/15. Efectivamente, foram estes os crescimentos reais (1960-2005): do PIB, 5,5 vezes; dos impostos, 13,8 vezes; da despesa pública primária, 15,5 vezes. Por isso, o défice fiscal em relação a esta despesa apresenta uma forte tendência para o agravamento: -1,2 pp. do Pib (1960); -2,5 pp. (1990); e - 8 pp. (2005), embora a carga fiscal, equivalente a cerca de 55 por cento da média europeia, nos anos sessenta, tenha subido para quase 95 por cento em 2005. Um Estado constitucionalizado na dependência implícita de uma economia que crescia quase 80 por cento numa década (1960-70), não tem suporte económico e financeiro quando ela se queda nos quatro por cento num lustro (2000-2005) e enfrenta ainda um acelerado envelhecimento demográfico. É isto, nomeadamente, que não permite falar com seriedade de "alteração das circunstâncias", perante uma tendência continuada e sempre agravada que atravessa mais de três décadas.6. Crise económica e crise financeira do Estado, em especial, determinam a pouco referida crise da social-democracia / socialismo democrático. De facto, sem perspectivas favoráveis, no curto e no médio prazo, a economia portuguesa já não suporta, e não suportará, uma política redistributiva do rendimento e da riqueza (4); nem aproximará a taxa de ocupação da mão-de-obra do pleno emprego; nem assegurará, responsavelmente, o futuro de um Estado Social que pretenda garantir tudo a todos; nem um sindicalismo actuante porque, "contra" os privados, teme as falências e as "deslocalizações", e "contra" o Estado ataca verdadeiramente os contribuintes, que são as únicas vítimas do "Partido do Estado". Além da medíocre economia que temos, o Estado português, na Zona Euro, não pode ser intervencionista: sem moeda já não tem política monetária, nem cambial próprias; não tem fronteiras nem alfândegas; não tem autonomia orçamental; e não pode controlar a circulação dos capitais. Neste contexto, as políticas e os objectivos da social-democracia/socialismo democrático, que a grande maioria dos portugueses prefere, caminham para o esgotamento.7. De resto, ainda não se entendeu bem, entre nós, que "as principais baixas políticas das crises do capitalismo na Europa Ocidental haviam de ser os partidos da esquerda [...], ao passo que os seus maiores êxitos se verificaram durante os trinta gloriosos anos de crescimento capitalista (1945-75) - a Era Dourada do Capitalismo" (5). Na verdade, sem uma economia próspera é uma pura estultícia prometer a redistribuição, o pleno emprego, a solidez do Estado Social que dá tudo a todos e a intervenção consistente do sindicalismo. Ao menos como modelo nacional e no mundo actual, a social-democracia está a caminho da irrelevância completa. É isto, muito claramente, que coloca o problema económico no cerne de todas as preocupações em alguns países da UE.8. A abertura das economias através da UE/15, do "alargamento" e da liberalização do comércio mundial é a novidade e o embaraço. Neste novo e enorme mercado, e sem capacidade competitiva, nem vendemos em Portugal o que aqui poderíamos produzir, nem exportamos porque outros são os preferidos: as nossas produções acabam por desaparecer se não conseguirmos competir melhor ou se o mundo não voltar para trás. Em face disto, há quem pense, como Mário Soares (6), que "os socialistas têm que estar conscientes de que hoje é indispensável mudar a ordem das coisas no mundo, sem o que os seus ideais deixam de ter sentido". É correcta esta percepção quanto ao futuro da social-democracia, como a conhecemos, num espaço comercialmente aberto e com livre circulação dos capitais. Mas é muito arriscado esperar que mude a "ordem das coisas no mundo", para viabilizar a social-democracia, porque poderá não acontecer. É por isso que, se não formos capazes de promover a nossa própria mudança, nos restará o estatuto de modestos serviçais dos europeus. Resumindo: mudar é a condição da sobrevivência, conservar será o nosso suicídio. Esta é a escolha que se coloca aos portugueses.9. A modificação mais urgente e mais difícil, mas ao nosso alcance, é a do Estado, porque não haverá meios, na próxima década, para alimentar o desvario despesista dos últimos anos. Pese embora a circunstância de sermos um dos países mais pobres da UE/15 (Quadro anexo, col.1), excedemos todos os outros na evolução de índices fundamentais relativos às finanças públicas (Quadro anexo): na carga fiscal (+ 8,4 pp. do PIB, col.2); na despesa corrente (+ 4,7 pp. - col.3); na despesa corrente primária (+ 10 pp., col.4); nas despesas de protecção social (+ 8,2 pp., col.5); nas pensões (+ 3,7 pp., col.6); e na fracção dos impostos aplicados na protecção social (+ 18 pp. do NF, col.7) (7). Uma tão desatinada evolução financeira - verdadeiramente ruinosa e sem paralelo europeu - constitui em muito o resultado do "optimismo profissional" e inconsistente dos responsáveis, e da maldição que sempre nos persegue, e que é o "ódio nacional" aos números, às contas, ao rigor e à responsabilidade, quando está em causa a gestão dos dinheiros públicos.10. O Quadro anexo evidencia assim o insuportável ritmo da evolução das despesas correntes primárias e, nelas, das da protecção social, onde as pensões assumem grande importância. Os países que aí nos seguem imediatamente, a Alemanha e a Grécia, situam-se a uma distância enorme: -6 ,1 pp. (despesa corrente primária. col.4), -3,1 pp. (despesa de protecção social, col.5), e -1.8 pp. (pensões, col.6). Porque não vislumbramos condições para uma próxima e suficiente prosperidade económica, resta apenas o caminho das reformas urgentes, drásticas e com efeitos num prazo útil, isto é, da ordem dos cinco anos: são uma condição necessária, embora insuficiente, para evitar o colapso financeiro do Estado.11. Fixemos o quadro fundamental seguinte:1.º Que a nossa economia, no longo prazo, apresenta um inexorável declínio;2.º Que, no médio prazo, tenderá a manter-se esta mediocridade, nomeadamente, devido: ao nosso endividamento e à dependência financeira externa; à falta de competitividade; aos custos elevados do petróleo; ao "alargamento" e às suas consequências; à penetração dos produtos chineses; à estagnação das principais economias europeias; e à ausência de investimentos estrangeiros;3.º Que a iniquidade do nosso sistema fiscal não tem impedido arrecadações que já excedem as expectativas, em comparação com a UE/15;4.º Que, sendo estes os muito prováveis limites económicos e financeiros, nos próximos anos, a consolidação orçamental dependerá das políticas de despesas, em que avultam as do pessoal e as prestações sociais (80 por cento da despesa corrente primária, em 2004);5.º Que, consequentemente, terá de ir-se muito mais longe do que se foi, até agora, quanto àquelas políticas, o que só será possível modificando os regimes em vigor e os "direitos adquiridos", face à verdadeira "alteração das circunstâncias";6.º Que só uma nova e próxima prosperidade económica, inverosímil em prazo útil, poderia evitar ou atenuar a rudeza do que se impõe fazer;7.º Que a improbabilidade manifesta de êxito da política de espera pela "mudança do mundo" não consente, responsavelmente, mais tergiversações e delongas.12. O que é imperativo que se faça, sob pena da nossa devastação pelo livre comércio mundial e pelo peso insuportável do Estado, exige a adesão e a unidade consciente da sociedade. E esta só será conquistada perante a verdade completa da nossa situação, enunciada pelos mais altos responsáveis políticos.*Advogado, antigo Ministro das Finanças(1). PÚBLICO, 6.Out.2005.(2). Nos últimos anos: 1998 - +4,7%; 1999 - +3,8%; 2000 - +3,7%; 2001 - +1,8%; 2002 - +0,4%;2003 - -1,1%; 2004 - +1,1%.(3). A economia portuguesa no século XX, ICS/2004, p. 125.(4). Dificuldade agravada pelos altos níveis fiscais já atingidos, pela competitividade fiscal internacional e pela livre circulação dos capitais.(5). Donald Sassoon, Cem anos de socialismo, Vol. I, p. 21.(6). Mário Soares e Sérgio Sousa Pinto, Diálogo de Gerações, Temas & Debates/2004, p. 59.(7). Os resultados recentes das contas públicas só não são mais desastrados porque, nos anos 90, os impostos se comportaram positivamente, os fundos europeus atingiram os 45 000 milhões de euros, as privatizações renderam 17 000 milhões de euros (dos quais 10 000 milhões amortizaram a dívida pública) e o peso dos juros caiu o equivalente a quase a 6 pp. do PIB. Este conjunto de circunstâncias favoráveis são irrepetíveis nos próximos anos. »------------------------------------------------------------------------------------------------

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