“Gente bonita come fruta feia”: as virtudes da imperfeição

31-10-2020
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Do lado de lá da porta ouve-se um burburinho, pessoas que chegam e conversas que se cruzam no átrio da Sociedade Musical União Paredense, em Cascais. Estão todos à espera do mesmo. Os ponteiros do relógio marcam 17h e as duas portas de carvalho abrem-se. Em poucos segundos, a pequena multidão alinha-se em fila: há novos e velhos, homens e mulheres, gente acompanhada e sozinha. No chão, estão alinhados oito corredores de caixas com frutas e legumes. Não são vistosos ou brilhantes como os do supermercado, têm cores e tamanhos diferentes, uns com toques ou manchas e outros formas estranhas. Mesmo imperfeitos, estão perfeitamente arrumados dentro de cada uma das 270 cestas. O local que é habitualmente uma plateia está quase transformado numa horta. E isto acontece todas as semanas. À quinta-feira, lá está a Fruta Feia a vender os cabazes de feios aos associados da Parede. Os miúdos não aguentam a espera e, aos poucos, começam a fugir da fila para procurar a melhor cesta. É o que acontece com Ana Botelho, que veio ao colo dos pais, Isabel Rodrigues, 43 anos, e Carlos Botelho, 50 anos. Ela gosta de laranjas. Sorte a dela, porque hoje vai tê-las.

Lá em casa é Ana e mais três pessoas e o cabaz desaparece rapidamente. “Tenho ideia que assim posso, de alguma forma, estar a ajudar a reduzir o desperdício alimentar. Os produtos são bons”, explica a mãe, Isabel, que é interrompida pelo marido: “Alguns produtos são bem melhores do que os do supermercado, especialmente as couves”. Anualmente, são atirados para o lixo em Portugal cerca de um milhão de toneladas de alimentos. Na União Europeia, o valor chega aos 88 milhões. E, em todo o mundo, são 1,3 mil milhões de toneladas. Segundo a agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), mais de metade do desperdício alimentar é culpa dos consumidores (52%), seguem-se os produtores (23%), a indústria transformadora (17%) e a distribuição (9%). A Fruta Feia, uma cooperativa sem fins lucrativos que tem como objetivo reduzir o desperdício alimentar, vai diretamente aos dois maiores culpados: quem compra e quem produz, conseguindo, por semana, salvar nove toneladas de feios.

Um a um, os associados da Fruta Feia, que distribui em vários pontos do distrito de Lisboa e do Porto, dizem o nome e pagam. Vão até às cestas, escolhem a que mais lhes agrada (seja pelos tamanhos, cores ou completamente aleatório), colocam num saco, dizem “até para a semana” e seguem caminho. Até às 21h é sempre assim. Nunca há um momento parado.

Mas a história não começou aqui. Este é apenas o final (ou quase). Em direção ao oeste à procura dos feios mais saborosos O sol já vai alto e, na capital, o trânsito ainda está meio confuso. Entre carros, motas, táxis e tuk tuks, a carrinha amarela da Fruta Feita não passa despercebida. Além da cor, tem o “charme” de quem transporta todos os dias legumes e fruta acabados de sair da terra. Joana batista, 33 anos, e Miguel Silva, 30 anos, são os condutores / distribuidores / vendedores do dia. Saem com bagageira vazia. Logo à tarde vão chegar com ela cheia de feios.

No caminho faz-se contas, planeia-se os carregamentos e vai-se ligando para os agricultores para acertar as horas de recolha. Começam pelos morangos, no Ramalhal, em Torres Vedras. Junto ao armazém, o vento frio e as nuvens escuras dão as boas vindas à zona oeste. Ali, o ar é tão doce que quase é possível sentir nos lábios o gosto da fruta. A porta está aberta, com as caixas prontas a seguirem viagem. Lá ao fundo estão mais morangos, grandões e vermelhos vivos, mas esses não são feios. “Estes morangos são exatamente iguais. A mesma semente, a mesma luz, a mesma água e a mesma planta. Uns nascem maiores, outros mais pequenos. No fundo, são como as pessoas: uns mais altos, outros mais baixos”, explica Elisabete, da Morangoeste. Exatamente a mesma comparação é usada por Paulo Dias para explicar a diferença nos legumes que vende à Fruta Feia. É na Cambaia, em Mafra, que aguarda mais um carregamento de feios. Desta vez são tomates e laranjas. Com quase 30 anos nas artes agrícolas, Paulo é o padrinho da Fruta Feia (foi o primeiro agricultor a juntar-se à aventura). Trabalhou muito tempo com as grandes superfícies e, melhor que ninguém, conhece as exigências estéticas para colocar um alimento na prateleira do supermercado.

“Chegava a não poder mandar 30% da produção porque não era esteticamente perfeita. Aquelas normas… Numa fábrica de parafusos saem todos iguais, na agricultura não é e nem pode ser assim”, sublinha Paulo Dias. No caso do tomate, por exemplo, quando um cacho não tem seis, já não serve. Paulo mostra orgulhoso uma das suas quatro estufas. Foi ali, na altura com uma enorme plantação de curgetes, que se celebrou o primeiro aniversário da Fruta Feia. A parceria, garante, é “ótima para ambas as partes” e está para durar. “Ao longo do ano, o lucro do que me compram é suficiente para pagar o salário de mais um trabalhador.” A conversa podia prolongar-se por horas. Havia mais estufas e muitos hectares para ver e histórias para contar. Mas não há tempo. É preciso acelerar o passo, porque o próximo agricultor já está à espera de ver chegar a carrinha amarela.

Miguel e Joana vão revezando na condução. Ambos começaram na Fruta Feia como voluntários e, mais tarde, quando foi necessário, juntaram-se à cooperativa. “Desperdiçar apenas por razão estética? Estamos loucos? É indignante. Todas as pessoas podem fazer parte da solução para o problema. E eu estou com a mão na massa”, comenta Joana.

“Os dados que se conhecem sobre o desperdício alimentar não devem corresponder exatamente à realidade. É o que se sabe, porque deve ser muito mais”, acrescenta Miguel. “Na minha horta não há coisas feias” Zé Manel lembra-se exatamente do dia em que as “meninas da Fruta Feia”, como lhes chama carinhosamente, lhe bateram à porta, em São Estêvão da Galês, perto da Malveira. Melhor, recorda-se quando lá foram buscar os primeiros feios. “18 de novembro de 2013: levaram alhos, couves e salsa”, responde sem hesitar. Hoje vão ser alfaces. Enormes alfaces.

Não desvia o olhar por mais de 30 segundos. Está sempre a controlar tudo o que se passa. “Cuidado! Olha que isso vai cair… Já tinha deixado isso tudo preparado”, alerta. E a sogra Carminda responde logo em tom de brincadeira: “Não o querem levar com vocês lá para Lisboa?”. São os dois que dão conta do negócio.

“Se não fosse para a Fruta Feia, isto ficava para usar como estrume ou ia para o lixo. Lá no mercado é só o bonito que conta. Tem de ser bonito, caso contrário não vende”, lamenta Zé Manel. A Fruta precisa de espinafres para a próxima semana. Zé não tem: com a chuva que caiu nos últimos dias, amarelaram. “Não mando, porque uma coisa é serem feios, outra é não terem qualidade.” Mas tem muitos grelos de nabiça. Fica apalavrado que virão buscar 60 ou 70 molhos. Já a carrinha está pronta a arrancar e Zé Manel corre até à janela do lado do condutor. “No sábado sempre podem vir à Profissão de Fé da minha filha?”, pergunta, espreitando. Miguel e Joana não podem, mas convites como este estão sempre a chegar. A última paragem é em Aruil, em Sintra, para ir buscar os agriões ao Sr. Raposo. É o mais velho, tem 78 anos. As mãos calejadas e a pele torrada pelo sol não deixam margem para dúvidas: todos os dias vai para a horta. Só ao fim de semana descansa e vai ver os netos jogaram à bola. “Um joga de manhã no sábado e outro no domingo. Lá está o avô sempre na bancada.” Os agriões estão no trator, só é preciso passar para carrinha amarela. “Muitas vezes são iguais. Estão um bocadinho mais roxos ou encaracolados. Olhe para eles, ali a falar para nós.”

A Fruta Feia é sempre recebida como um amigo da casa ou um familiar próximo. Mas nem sempre foi assim. Ao início, os agricultores estranhavam. Fazia-lhes confusão como é que aquelas coisas que iam diretamente para o estrume ou para o lixo podiam ter interesse para alguém. “Desconfiavam virem umas pessoas da cidade perguntar-lhes se tinham fruta feia para vender. Diziam logo que na sua horta não havia coisas feias. Foi preciso algum tempo para os convencer que aqueles produtos tinham qualidade para serem consumidos e que apenas não eram tão bonitos”, recorda Joana. A virtude da imperfeição O projeto da Fruta Feia começou há quatro anos pela ideia e as mãos de Isabel Soares apenas na zona de Lisboa. Hoje, são cinco funcionários na capital e o projeto já se estendeu até ao Porto, onde estão mais três pessoas empregadas. Há dois tipos de cestas para venda: a pequena, com cerca de quatro quilos e sete variedades de frutas e legumes, e a grande, com o dobro da quantidade e oito produtos diferentes. Custam €3,50 e €7, respetivamente.

Mas como funciona o modelo de negócio? Primeiro, é preciso ser associado (pode inscrever-se no site - www.frutafeia.pt) de uma das delegações da Fruta Feia em Lisboa (Intendente, Rato, Campo de Santa Clara e Parede) ou no Porto (Porto, Matosinhos e Vila Nova de Gaia), com uma quota anual de €5. Depois, é só ir buscar os feios ao local onde está inscrito todas as semanas. “São cerca de 300 associados por delegação”, detalha Miguel. A cooperativa consegue comprar os feios, em média, por metade do preço comparativamente ao que são vendidos no mercado. Por exemplo, se os morangos estiverem bonitos e vistosos e o preço no mercado for €1 ao quilo, a Fruta Feia consegue ficar com os mais pequenininhos e menos perfeitos por €0,50. Para os produtores, que iam deitar fora os feios, qualquer valor que aqueles alimentos possam render é proveito. Todo o lucro é para investir aqui, pois somos uma cooperativa sem fins lucrativos”, explica Joana. A mãe incrível Limão, tomate, laranja, abóbora, alface, morangos e agrião (mais cebola para as caixas grandes). Este é o menu do dia. Os produtos não são sempre os mesmos, variam consoante a altura do ano e a disponibilidade dos produtores.

Logo depois de almoço, e já na Sociedade Musical União Paredense, os voluntários juntam-se a Joana e Miguel. Não são necessárias ordens ou indicações, cada um sabe bem o que fazer. Separar, cortar, pesar, dividir, contar e colocar nos cestos. “Olha estes!”, diz uma das voluntárias ao pegar num cacho de tomates. “Na mesma rama há um verde e um vermelho… A mãe natureza é incrível.” Aos poucos, a sala começa a ganhar cor. Sente-se o cheiro a morangos e laranja. Ouve-se apenas o deslizar da faca na abóbora e a bater na tábua de corte. Ocasionalmente, um ou outro cesto é arrastado pelo chão. Troca-se algumas palavras e gaba-se a qualidade da fruta e legumes (sim, porque cada voluntária tem sempre a oferta de um cabaz). “Hoje é um recorde: ainda faltam cinco minutos para as cinco e já estamos despachadas, mesmo com morangos e abóbora para cortar”, comentam. Está tudo pronto. Do lado de lá da porta ouve-se um burburinho, pessoas que chegam e conversas que se cruzam no átrio. Os ponteiros do relógio marcam 17h e as duas portas de carvalho abrem-se. Lá vem a Ana, os pais e uma pequena multidão.

Do lado de lá da porta ouve-se um burburinho, pessoas que chegam e conversas que se cruzam no átrio da Sociedade Musical União Paredense, em Cascais. Estão todos à espera do mesmo. Os ponteiros do relógio marcam 17h e as duas portas de carvalho abrem-se. Em poucos segundos, a pequena multidão alinha-se em fila: há novos e velhos, homens e mulheres, gente acompanhada e sozinha. No chão, estão alinhados oito corredores de caixas com frutas e legumes. Não são vistosos ou brilhantes como os do supermercado, têm cores e tamanhos diferentes, uns com toques ou manchas e outros formas estranhas. Mesmo imperfeitos, estão perfeitamente arrumados dentro de cada uma das 270 cestas. O local que é habitualmente uma plateia está quase transformado numa horta. E isto acontece todas as semanas. À quinta-feira, lá está a Fruta Feia a vender os cabazes de feios aos associados da Parede. Os miúdos não aguentam a espera e, aos poucos, começam a fugir da fila para procurar a melhor cesta. É o que acontece com Ana Botelho, que veio ao colo dos pais, Isabel Rodrigues, 43 anos, e Carlos Botelho, 50 anos. Ela gosta de laranjas. Sorte a dela, porque hoje vai tê-las.

Lá em casa é Ana e mais três pessoas e o cabaz desaparece rapidamente. “Tenho ideia que assim posso, de alguma forma, estar a ajudar a reduzir o desperdício alimentar. Os produtos são bons”, explica a mãe, Isabel, que é interrompida pelo marido: “Alguns produtos são bem melhores do que os do supermercado, especialmente as couves”. Anualmente, são atirados para o lixo em Portugal cerca de um milhão de toneladas de alimentos. Na União Europeia, o valor chega aos 88 milhões. E, em todo o mundo, são 1,3 mil milhões de toneladas. Segundo a agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), mais de metade do desperdício alimentar é culpa dos consumidores (52%), seguem-se os produtores (23%), a indústria transformadora (17%) e a distribuição (9%). A Fruta Feia, uma cooperativa sem fins lucrativos que tem como objetivo reduzir o desperdício alimentar, vai diretamente aos dois maiores culpados: quem compra e quem produz, conseguindo, por semana, salvar nove toneladas de feios.

Um a um, os associados da Fruta Feia, que distribui em vários pontos do distrito de Lisboa e do Porto, dizem o nome e pagam. Vão até às cestas, escolhem a que mais lhes agrada (seja pelos tamanhos, cores ou completamente aleatório), colocam num saco, dizem “até para a semana” e seguem caminho. Até às 21h é sempre assim. Nunca há um momento parado.

Mas a história não começou aqui. Este é apenas o final (ou quase). Em direção ao oeste à procura dos feios mais saborosos O sol já vai alto e, na capital, o trânsito ainda está meio confuso. Entre carros, motas, táxis e tuk tuks, a carrinha amarela da Fruta Feita não passa despercebida. Além da cor, tem o “charme” de quem transporta todos os dias legumes e fruta acabados de sair da terra. Joana batista, 33 anos, e Miguel Silva, 30 anos, são os condutores / distribuidores / vendedores do dia. Saem com bagageira vazia. Logo à tarde vão chegar com ela cheia de feios.

No caminho faz-se contas, planeia-se os carregamentos e vai-se ligando para os agricultores para acertar as horas de recolha. Começam pelos morangos, no Ramalhal, em Torres Vedras. Junto ao armazém, o vento frio e as nuvens escuras dão as boas vindas à zona oeste. Ali, o ar é tão doce que quase é possível sentir nos lábios o gosto da fruta. A porta está aberta, com as caixas prontas a seguirem viagem. Lá ao fundo estão mais morangos, grandões e vermelhos vivos, mas esses não são feios. “Estes morangos são exatamente iguais. A mesma semente, a mesma luz, a mesma água e a mesma planta. Uns nascem maiores, outros mais pequenos. No fundo, são como as pessoas: uns mais altos, outros mais baixos”, explica Elisabete, da Morangoeste. Exatamente a mesma comparação é usada por Paulo Dias para explicar a diferença nos legumes que vende à Fruta Feia. É na Cambaia, em Mafra, que aguarda mais um carregamento de feios. Desta vez são tomates e laranjas. Com quase 30 anos nas artes agrícolas, Paulo é o padrinho da Fruta Feia (foi o primeiro agricultor a juntar-se à aventura). Trabalhou muito tempo com as grandes superfícies e, melhor que ninguém, conhece as exigências estéticas para colocar um alimento na prateleira do supermercado.

“Chegava a não poder mandar 30% da produção porque não era esteticamente perfeita. Aquelas normas… Numa fábrica de parafusos saem todos iguais, na agricultura não é e nem pode ser assim”, sublinha Paulo Dias. No caso do tomate, por exemplo, quando um cacho não tem seis, já não serve. Paulo mostra orgulhoso uma das suas quatro estufas. Foi ali, na altura com uma enorme plantação de curgetes, que se celebrou o primeiro aniversário da Fruta Feia. A parceria, garante, é “ótima para ambas as partes” e está para durar. “Ao longo do ano, o lucro do que me compram é suficiente para pagar o salário de mais um trabalhador.” A conversa podia prolongar-se por horas. Havia mais estufas e muitos hectares para ver e histórias para contar. Mas não há tempo. É preciso acelerar o passo, porque o próximo agricultor já está à espera de ver chegar a carrinha amarela.

Miguel e Joana vão revezando na condução. Ambos começaram na Fruta Feia como voluntários e, mais tarde, quando foi necessário, juntaram-se à cooperativa. “Desperdiçar apenas por razão estética? Estamos loucos? É indignante. Todas as pessoas podem fazer parte da solução para o problema. E eu estou com a mão na massa”, comenta Joana.

“Os dados que se conhecem sobre o desperdício alimentar não devem corresponder exatamente à realidade. É o que se sabe, porque deve ser muito mais”, acrescenta Miguel. “Na minha horta não há coisas feias” Zé Manel lembra-se exatamente do dia em que as “meninas da Fruta Feia”, como lhes chama carinhosamente, lhe bateram à porta, em São Estêvão da Galês, perto da Malveira. Melhor, recorda-se quando lá foram buscar os primeiros feios. “18 de novembro de 2013: levaram alhos, couves e salsa”, responde sem hesitar. Hoje vão ser alfaces. Enormes alfaces.

Não desvia o olhar por mais de 30 segundos. Está sempre a controlar tudo o que se passa. “Cuidado! Olha que isso vai cair… Já tinha deixado isso tudo preparado”, alerta. E a sogra Carminda responde logo em tom de brincadeira: “Não o querem levar com vocês lá para Lisboa?”. São os dois que dão conta do negócio.

“Se não fosse para a Fruta Feia, isto ficava para usar como estrume ou ia para o lixo. Lá no mercado é só o bonito que conta. Tem de ser bonito, caso contrário não vende”, lamenta Zé Manel. A Fruta precisa de espinafres para a próxima semana. Zé não tem: com a chuva que caiu nos últimos dias, amarelaram. “Não mando, porque uma coisa é serem feios, outra é não terem qualidade.” Mas tem muitos grelos de nabiça. Fica apalavrado que virão buscar 60 ou 70 molhos. Já a carrinha está pronta a arrancar e Zé Manel corre até à janela do lado do condutor. “No sábado sempre podem vir à Profissão de Fé da minha filha?”, pergunta, espreitando. Miguel e Joana não podem, mas convites como este estão sempre a chegar. A última paragem é em Aruil, em Sintra, para ir buscar os agriões ao Sr. Raposo. É o mais velho, tem 78 anos. As mãos calejadas e a pele torrada pelo sol não deixam margem para dúvidas: todos os dias vai para a horta. Só ao fim de semana descansa e vai ver os netos jogaram à bola. “Um joga de manhã no sábado e outro no domingo. Lá está o avô sempre na bancada.” Os agriões estão no trator, só é preciso passar para carrinha amarela. “Muitas vezes são iguais. Estão um bocadinho mais roxos ou encaracolados. Olhe para eles, ali a falar para nós.”

A Fruta Feia é sempre recebida como um amigo da casa ou um familiar próximo. Mas nem sempre foi assim. Ao início, os agricultores estranhavam. Fazia-lhes confusão como é que aquelas coisas que iam diretamente para o estrume ou para o lixo podiam ter interesse para alguém. “Desconfiavam virem umas pessoas da cidade perguntar-lhes se tinham fruta feia para vender. Diziam logo que na sua horta não havia coisas feias. Foi preciso algum tempo para os convencer que aqueles produtos tinham qualidade para serem consumidos e que apenas não eram tão bonitos”, recorda Joana. A virtude da imperfeição O projeto da Fruta Feia começou há quatro anos pela ideia e as mãos de Isabel Soares apenas na zona de Lisboa. Hoje, são cinco funcionários na capital e o projeto já se estendeu até ao Porto, onde estão mais três pessoas empregadas. Há dois tipos de cestas para venda: a pequena, com cerca de quatro quilos e sete variedades de frutas e legumes, e a grande, com o dobro da quantidade e oito produtos diferentes. Custam €3,50 e €7, respetivamente.

Mas como funciona o modelo de negócio? Primeiro, é preciso ser associado (pode inscrever-se no site - www.frutafeia.pt) de uma das delegações da Fruta Feia em Lisboa (Intendente, Rato, Campo de Santa Clara e Parede) ou no Porto (Porto, Matosinhos e Vila Nova de Gaia), com uma quota anual de €5. Depois, é só ir buscar os feios ao local onde está inscrito todas as semanas. “São cerca de 300 associados por delegação”, detalha Miguel. A cooperativa consegue comprar os feios, em média, por metade do preço comparativamente ao que são vendidos no mercado. Por exemplo, se os morangos estiverem bonitos e vistosos e o preço no mercado for €1 ao quilo, a Fruta Feia consegue ficar com os mais pequenininhos e menos perfeitos por €0,50. Para os produtores, que iam deitar fora os feios, qualquer valor que aqueles alimentos possam render é proveito. Todo o lucro é para investir aqui, pois somos uma cooperativa sem fins lucrativos”, explica Joana. A mãe incrível Limão, tomate, laranja, abóbora, alface, morangos e agrião (mais cebola para as caixas grandes). Este é o menu do dia. Os produtos não são sempre os mesmos, variam consoante a altura do ano e a disponibilidade dos produtores.

Logo depois de almoço, e já na Sociedade Musical União Paredense, os voluntários juntam-se a Joana e Miguel. Não são necessárias ordens ou indicações, cada um sabe bem o que fazer. Separar, cortar, pesar, dividir, contar e colocar nos cestos. “Olha estes!”, diz uma das voluntárias ao pegar num cacho de tomates. “Na mesma rama há um verde e um vermelho… A mãe natureza é incrível.” Aos poucos, a sala começa a ganhar cor. Sente-se o cheiro a morangos e laranja. Ouve-se apenas o deslizar da faca na abóbora e a bater na tábua de corte. Ocasionalmente, um ou outro cesto é arrastado pelo chão. Troca-se algumas palavras e gaba-se a qualidade da fruta e legumes (sim, porque cada voluntária tem sempre a oferta de um cabaz). “Hoje é um recorde: ainda faltam cinco minutos para as cinco e já estamos despachadas, mesmo com morangos e abóbora para cortar”, comentam. Está tudo pronto. Do lado de lá da porta ouve-se um burburinho, pessoas que chegam e conversas que se cruzam no átrio. Os ponteiros do relógio marcam 17h e as duas portas de carvalho abrem-se. Lá vem a Ana, os pais e uma pequena multidão.

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