Anatomia de um desastre: a noite em que a CDU perdeu 188 mil votos

20-11-2019
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Anatomia de um desastre: a noite em que a CDU perdeu 188 mil votos por João Pedro Henriques [*]

O resultado da CDU é um desastre a todos os níveis – e o terceiro consecutivo na era da 'geringonça', depois das presidenciais de 2016 e das autárquicas de 2017. Os comunistas culpam, em parte, os "media" 188 mil votos. Ou, mais precisamente, 188 545. Foram estes os votos que os comunistas perderam nas europeias de domingo, quando comparado o resultado com o de há cinco anos, nas mesmas eleições. Em percentagem: 45%. A CDU perdeu no território nacional, com 100% das freguesias apuradas, 45% dos votos que tinha tido nas Europeias de 2014. Passou de cerca de 416 mil votos para cerca de 227,5 mil. O que valeu aos comunistas foi que esta percentagem de perda de votos depois só resultou numa perda de um terço em eleitos: a CDU passou de três para dois: João Ferreira e Sandra Pereira.

Um desaire como há muito não se via na coligação liderada pelo PCP. Mesmo nas autárquicas de 2017, onde os comunistas perderam dez presidências de câmara – passaram de 34 para 24 –, os números absolutos de votos foram menos devastadores. De 552,7 mil votos passaram para 489 mil: uma perda de 63 mil votos (11,5%).

Distritalmente, em europeias, a CDU já não é a maior força em nenhum distrito. Em 2014 tinha-o sido em Beja e Setúbal, embora nos dois casos por margens muito curtas em relação ao PS: 270 votos de vantagem em Beja; 655 em Setúbal. Agora, os socialistas conquistaram aos comunistas esses dois distritos. O PS, aliás, só não foi a maior força na Madeira e em Vila Real, perdendo para o PSD.

Setúbal é, aliás, um caso interessante nas perdas da coligação liderada pelo PCP. Os comunistas perderam ao todo cerca de 30,6 mil votos de 2014 para 2019 (passando de 74,8 mil votos para 44,3 mil). Depois verifica-se que o PS cresceu cerca de 15,8 mil votos e o Bloco de Esquerda outros 15,2 mil. Em síntese: fica a impressão que as perdas da CDU em Setúbal se transferiram metade-metade para o PS e para o Bloco de Esquerda.

Em Beja, o outro distrito que os comunistas perderam, a situação foi diferente: o PS tornou-se na maior força mas conseguiu-o...perdendo votos (menos 1,8 mil do que em 2014). O que aconteceu foi que a CDU perdeu ainda mais: 6,7 mil.

Aqui, a transferência do voto comunista parece ter ido maioritariamente para a abstenção, que aumentou (menos 7,6 mil votantes do que há cinco anos). O Bloco, pelo contrário, subiu a votação (de 3,37% dos votos para 8,86%, ou seja, quase mais dois mil votos, tornando-se, por uma margem mínima (20 votos), na terceira maior força do distrito, à frente do PSD.

O que parece ter acontecido é que a CDU foi incapaz de agarrar o seu eleitorado, como antes acontecia. Nas legislativas de 2011, os comunistas conseguiram 441,8 mil votos. Nas europeias seguintes (2014) tiveram 416,4 mil votos. Ou seja: pouco perderam de uma eleição para a outra, resistindo a aumentos brutais da abstenção. Já em 2009 isso tinha acontecido, quando Europeias e Legislativas se disputaram com três meses de intervalo.

Mas desta vez isso não aconteceu. O voto obtido nas últimas legislativas (445,9 mil) não foi segurado, passando agora para 227,5 mil, o que significa que os fiéis eleitores do PCP agora não o foram: ou por terem ido para a abstenção, como parece ter acontecido em Beja; ou por se terem transferido para o PS e/ou o BE (o caso de Setúbal).

"Campanhas difamatórias"

Na reação ao resultado – assumido pelo partido como "particularmente negativo para a defesa dos interesses do povo e do País no Parlamento Europeu" – foi salientado que em 2014 "o importante resultado obtido" pela CDU teria de ser "observado no quadro de uma conjuntura marcada pela aplicação do Pacto de Agressão, período em que a perceção do papel e consequências das imposições da União Europeia sobre o país se faziam sentir de forma mais nítida". Dito de outra forma: em 2014, o PCP era oposição pura e dura e tinha condições para se afirmar porque o país vivia na carne a ressaca dos anos de troika.

"[CDU foi vítima de uma] intensa e prolongada operação de desvalorização da sua intervenção e do seu trabalho, de campanhas difamatórias, de animação de preconceitos e de uma meticulosa acção para menorizar a campanha e perspectivas eleitorais".

Por outro lado, este ano deu-se uma "intensa e prolongada operação de desvalorização da sua intervenção e do seu trabalho, de campanhas difamatórias, de animação de preconceitos e de uma meticulosa ação para menorizar a campanha e perspetivas eleitorais da CDU", convivendo isso com uma "descarada promoção de outras forças políticas".

Falando com o DN, a escritora e jornalista Ana Margarida Carvalho, militante do partido e mandatária nacional da campanha europeia da CDU, recusou justificar os resultados com uma eventual penalização do PCP pelo facto de o partido estar desde finais de 2015 alinhado com o PS na 'geringonça' – por exemplo viabilizando sucessivos orçamentos do Estado.

O que importa é que a campanha foi "muito, muito boa"; e o PCP conseguiu nesta legislatura "muitas reposições" [de direitos e rendimentos]; e João Ferreira é uma cabeça de lista "invulgarmente inteligente e preparado e de raciocínio rápido, como se viu nos debates, onde foi quem teve o melhor desempenho".

Porém, vive-se num tempo "em que a mentira vale", "um tempo de pós verdade", que "não é bom para campanhas sóbrias, mas sim para palhaçadas", onde "o grotesco tem uma valia eleitoral", "tempos esquisitos e obscuros" em que "importam mais as emoções do que os factos". E aos quais, em suma, o PCP não se adapta porque "a comunicação do PCP é diferente da comunicação que passa", razão pela qual os seus argumentos não vingam.

Ecos de França

O declínio eleitoral do PCP desde o início da geringonça – que começou nas presidenciais de 2016, onde o candidato do partido, Edgar Silva, não passou dos 3,95% (183 mil votos) – faz lembrar em tudo o processo que levou ao declínio do Partido Comunista Francês.

Os comunistas e os socialistas alinharam numa coligação formal em 1972 e o que aconteceu na sequência dessa coligação foi que os comunistas começaram, irrevogavelmente, a perder força eleitoral, enquanto que o PS francês, pelo contrário, crescia. A rutura entre os dois não provocou melhorias nos 'scores' eleitorais dos comunistas, pelo contrário. Saber se o PC português está condenado ao mesmo é o que falta saber.

27/Maio/2019 Ver também:

Comunicado do Comité Central do PCP Resultados globais das eleições europeias

[*] Jornalista.

O original encontra-se em www.dn.pt/... e em

pelosocialismo.blogs.sapo.pt/anatomia-de-um-desastre-a-noite-em-que-67698

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Anatomia de um desastre: a noite em que a CDU perdeu 188 mil votos por João Pedro Henriques [*]

O resultado da CDU é um desastre a todos os níveis – e o terceiro consecutivo na era da 'geringonça', depois das presidenciais de 2016 e das autárquicas de 2017. Os comunistas culpam, em parte, os "media" 188 mil votos. Ou, mais precisamente, 188 545. Foram estes os votos que os comunistas perderam nas europeias de domingo, quando comparado o resultado com o de há cinco anos, nas mesmas eleições. Em percentagem: 45%. A CDU perdeu no território nacional, com 100% das freguesias apuradas, 45% dos votos que tinha tido nas Europeias de 2014. Passou de cerca de 416 mil votos para cerca de 227,5 mil. O que valeu aos comunistas foi que esta percentagem de perda de votos depois só resultou numa perda de um terço em eleitos: a CDU passou de três para dois: João Ferreira e Sandra Pereira.

Um desaire como há muito não se via na coligação liderada pelo PCP. Mesmo nas autárquicas de 2017, onde os comunistas perderam dez presidências de câmara – passaram de 34 para 24 –, os números absolutos de votos foram menos devastadores. De 552,7 mil votos passaram para 489 mil: uma perda de 63 mil votos (11,5%).

Distritalmente, em europeias, a CDU já não é a maior força em nenhum distrito. Em 2014 tinha-o sido em Beja e Setúbal, embora nos dois casos por margens muito curtas em relação ao PS: 270 votos de vantagem em Beja; 655 em Setúbal. Agora, os socialistas conquistaram aos comunistas esses dois distritos. O PS, aliás, só não foi a maior força na Madeira e em Vila Real, perdendo para o PSD.

Setúbal é, aliás, um caso interessante nas perdas da coligação liderada pelo PCP. Os comunistas perderam ao todo cerca de 30,6 mil votos de 2014 para 2019 (passando de 74,8 mil votos para 44,3 mil). Depois verifica-se que o PS cresceu cerca de 15,8 mil votos e o Bloco de Esquerda outros 15,2 mil. Em síntese: fica a impressão que as perdas da CDU em Setúbal se transferiram metade-metade para o PS e para o Bloco de Esquerda.

Em Beja, o outro distrito que os comunistas perderam, a situação foi diferente: o PS tornou-se na maior força mas conseguiu-o...perdendo votos (menos 1,8 mil do que em 2014). O que aconteceu foi que a CDU perdeu ainda mais: 6,7 mil.

Aqui, a transferência do voto comunista parece ter ido maioritariamente para a abstenção, que aumentou (menos 7,6 mil votantes do que há cinco anos). O Bloco, pelo contrário, subiu a votação (de 3,37% dos votos para 8,86%, ou seja, quase mais dois mil votos, tornando-se, por uma margem mínima (20 votos), na terceira maior força do distrito, à frente do PSD.

O que parece ter acontecido é que a CDU foi incapaz de agarrar o seu eleitorado, como antes acontecia. Nas legislativas de 2011, os comunistas conseguiram 441,8 mil votos. Nas europeias seguintes (2014) tiveram 416,4 mil votos. Ou seja: pouco perderam de uma eleição para a outra, resistindo a aumentos brutais da abstenção. Já em 2009 isso tinha acontecido, quando Europeias e Legislativas se disputaram com três meses de intervalo.

Mas desta vez isso não aconteceu. O voto obtido nas últimas legislativas (445,9 mil) não foi segurado, passando agora para 227,5 mil, o que significa que os fiéis eleitores do PCP agora não o foram: ou por terem ido para a abstenção, como parece ter acontecido em Beja; ou por se terem transferido para o PS e/ou o BE (o caso de Setúbal).

"Campanhas difamatórias"

Na reação ao resultado – assumido pelo partido como "particularmente negativo para a defesa dos interesses do povo e do País no Parlamento Europeu" – foi salientado que em 2014 "o importante resultado obtido" pela CDU teria de ser "observado no quadro de uma conjuntura marcada pela aplicação do Pacto de Agressão, período em que a perceção do papel e consequências das imposições da União Europeia sobre o país se faziam sentir de forma mais nítida". Dito de outra forma: em 2014, o PCP era oposição pura e dura e tinha condições para se afirmar porque o país vivia na carne a ressaca dos anos de troika.

"[CDU foi vítima de uma] intensa e prolongada operação de desvalorização da sua intervenção e do seu trabalho, de campanhas difamatórias, de animação de preconceitos e de uma meticulosa acção para menorizar a campanha e perspectivas eleitorais".

Por outro lado, este ano deu-se uma "intensa e prolongada operação de desvalorização da sua intervenção e do seu trabalho, de campanhas difamatórias, de animação de preconceitos e de uma meticulosa ação para menorizar a campanha e perspetivas eleitorais da CDU", convivendo isso com uma "descarada promoção de outras forças políticas".

Falando com o DN, a escritora e jornalista Ana Margarida Carvalho, militante do partido e mandatária nacional da campanha europeia da CDU, recusou justificar os resultados com uma eventual penalização do PCP pelo facto de o partido estar desde finais de 2015 alinhado com o PS na 'geringonça' – por exemplo viabilizando sucessivos orçamentos do Estado.

O que importa é que a campanha foi "muito, muito boa"; e o PCP conseguiu nesta legislatura "muitas reposições" [de direitos e rendimentos]; e João Ferreira é uma cabeça de lista "invulgarmente inteligente e preparado e de raciocínio rápido, como se viu nos debates, onde foi quem teve o melhor desempenho".

Porém, vive-se num tempo "em que a mentira vale", "um tempo de pós verdade", que "não é bom para campanhas sóbrias, mas sim para palhaçadas", onde "o grotesco tem uma valia eleitoral", "tempos esquisitos e obscuros" em que "importam mais as emoções do que os factos". E aos quais, em suma, o PCP não se adapta porque "a comunicação do PCP é diferente da comunicação que passa", razão pela qual os seus argumentos não vingam.

Ecos de França

O declínio eleitoral do PCP desde o início da geringonça – que começou nas presidenciais de 2016, onde o candidato do partido, Edgar Silva, não passou dos 3,95% (183 mil votos) – faz lembrar em tudo o processo que levou ao declínio do Partido Comunista Francês.

Os comunistas e os socialistas alinharam numa coligação formal em 1972 e o que aconteceu na sequência dessa coligação foi que os comunistas começaram, irrevogavelmente, a perder força eleitoral, enquanto que o PS francês, pelo contrário, crescia. A rutura entre os dois não provocou melhorias nos 'scores' eleitorais dos comunistas, pelo contrário. Saber se o PC português está condenado ao mesmo é o que falta saber.

27/Maio/2019 Ver também:

Comunicado do Comité Central do PCP Resultados globais das eleições europeias

[*] Jornalista.

O original encontra-se em www.dn.pt/... e em

pelosocialismo.blogs.sapo.pt/anatomia-de-um-desastre-a-noite-em-que-67698

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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