Na despenalização do aborto escreveu-se direito por linhas tortas

20-02-2020
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Podemos questionar se a legalização do aborto alguma vez deveria ter sido submetida a referendo, se valeu a pena esperar tantos anos, roubando a dignidade, a saúde e a vida a tantas mulheres.

Apesar de ter aderido ao Bloco de Esquerda uns anos antes, considero que comecei a minha militância política no referendo pela legalização do aborto em 2007, através dos Jovens pelo SIM e do Movimento pelo SIM. Tenho muito orgulho nessa história, naquela campanha, e de ter contribuído para aquela vitória. Nunca esquecerei a noite de 11 de fevereiro de 2007 e os rostos emocionados de tantas mulheres que, ao contrário de mim, já tinham uma vida inteira de luta pelo direito ao aborto legal e seguro.

Esta semana comemoraram-se 13 anos da despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) em Portugal, a grande conquista do direito das mulheres à sua autodeterminação, à decisão sobre os seus corpos e a sua vida. Olhando hoje para os resultados, é até embaraçoso lembrar os mitos e apocalipses prometidos naquela altura pela campanha do não. Como disse Francisco George, ex-diretor-geral da Saúde, quando fez o balanço do seu mandato, “a [lei da] IVG foi um sucesso, um grande sucesso. Ao longo destes anos analisamos os registos e percebemos que, todos os anos, há menos interrupções do que no ano anterior”.

Não vou aqui recuperar todos os argumentos da campanha pelo sim. Espero não ter de o fazer durante o resto da minha vida. Espero que a nenhuma mulher nascida depois de mim seja imposto o regresso aos tempos obscuros da “perseguição social e judicial às mulheres, de interrogatórios e exames ginecológicos forçados, de processos criminais, de condenações, de abortos clandestinos em vãos de escada e mortes de mulheres por abortos inseguros”.(1)

Ainda assim, é bom lembrar que, até 2008, o aborto clandestino era a terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal. Até 2007, a IVG era um crime punível com até três anos de prisão. Entre 1998 e 2007 foram investigados 223 crimes de aborto. Num país em que uma em cada sete mulheres afirmava já ter abortado, a hipocrisia maior era a daqueles que, como Marcelo Rebelo de Sousa, recusavam mudar a lei alegando que “é proibido mas pode-se fazer” e dessa forma condenavam milhares de mulheres à clandestinidade e aos abortos de vão de escada.

Desde 2012, mais nenhuma mulher morreu vítima de um aborto clandestino. Entre 2011 e 2018, as interrupções de gravidez por todos os motivos decresceram 24,2% e as realizadas apenas por opção da mulher até às dez semanas diminuíram 27,1%. As instituições europeias indicam que o número de interrupções de gravidez por 1000 nados-vivos em Portugal está abaixo da média europeia desde, pelo menos, 2015.

Claro que estes resultados seriam impossíveis se o Serviço Nacional de Saúde tivesse sido excluído do direito das mulheres a ter acesso ao aborto legal, seguro e gratuito, como propunha a direita. A lei da IVG encaixou como uma luva nas políticas de planeamento familiar que já estavam a ser desenvolvidas e nos avanços da contraceção. A sua complementaridade salvou muitas vidas e pôs Portugal na linha da frente na promoção da saúde e direitos das mulheres.

Há paralelos que não podem ser estabelecidos. A história da legalização do aborto faz-se de décadas de cobardias de alguns e coragem de muitos. Cobardia, desde logo, do Partido Socialista, que empurrou para um primeiro referendo, em 1998, o que poderia ter aprovado no Parlamento, o que acabaria por provocar a necessidade de um segundo referendo para corrigir o primeiro e que, mesmo assim, não seria vinculativo. A lei do aborto acabaria finalmente por ser aprovada no Parlamento com os votos de PS, BE, PCP e PE. E coragem de muitas e muitos, incluindo a dos católicos que aceitaram dar a mão para acabar com a vergonha da perseguição às mulheres.

Treze anos depois, o país olha para a lei do aborto como se ela sempre tivesse existido, e já nem os partidos que se lhe opuseram, como o CDS, conseguem defender a criminalização das mulheres. A sociedade não aceitaria.

Mas o sucesso da lei do aborto em Portugal pode e deve levar-nos a outras reflexões sobre o país que queremos. Podemos questionar se a legalização do aborto alguma vez deveria ter sido submetida a referendo. Devemos perguntar se valeu a pena esperar tantos anos, roubando a dignidade, a saúde e a vida a tantas mulheres.

Em qualquer circunstância, e apesar da vitória em 2007, mantenho o que muitos de nós sempre achámos: os referendos devem aplicar-se a matérias em que a vitória da maioria não se transforme numa ditadura moral sobre os direitos individuais, muito menos sobre direitos humanos. Há coisas que não são referendáveis. A morte assistida, como o aborto, é uma decisão que deve ser limitada apenas pela opção livre, informada, consciente e ponderada de cada um de nós. Submeter essa autodeterminação a uma moral que lhe é estranha seria o mesmo que condenar as consciências à clandestinidade. Elas não desaparecem, apenas continuam a existir em sofrimento.

Deputada do Bloco de Esquerda

(1) Intervenção da deputada do Bloco de Esquerda Sandra Cunha sobre os 13 anos da despenalização do aborto

Podemos questionar se a legalização do aborto alguma vez deveria ter sido submetida a referendo, se valeu a pena esperar tantos anos, roubando a dignidade, a saúde e a vida a tantas mulheres.

Apesar de ter aderido ao Bloco de Esquerda uns anos antes, considero que comecei a minha militância política no referendo pela legalização do aborto em 2007, através dos Jovens pelo SIM e do Movimento pelo SIM. Tenho muito orgulho nessa história, naquela campanha, e de ter contribuído para aquela vitória. Nunca esquecerei a noite de 11 de fevereiro de 2007 e os rostos emocionados de tantas mulheres que, ao contrário de mim, já tinham uma vida inteira de luta pelo direito ao aborto legal e seguro.

Esta semana comemoraram-se 13 anos da despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) em Portugal, a grande conquista do direito das mulheres à sua autodeterminação, à decisão sobre os seus corpos e a sua vida. Olhando hoje para os resultados, é até embaraçoso lembrar os mitos e apocalipses prometidos naquela altura pela campanha do não. Como disse Francisco George, ex-diretor-geral da Saúde, quando fez o balanço do seu mandato, “a [lei da] IVG foi um sucesso, um grande sucesso. Ao longo destes anos analisamos os registos e percebemos que, todos os anos, há menos interrupções do que no ano anterior”.

Não vou aqui recuperar todos os argumentos da campanha pelo sim. Espero não ter de o fazer durante o resto da minha vida. Espero que a nenhuma mulher nascida depois de mim seja imposto o regresso aos tempos obscuros da “perseguição social e judicial às mulheres, de interrogatórios e exames ginecológicos forçados, de processos criminais, de condenações, de abortos clandestinos em vãos de escada e mortes de mulheres por abortos inseguros”.(1)

Ainda assim, é bom lembrar que, até 2008, o aborto clandestino era a terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal. Até 2007, a IVG era um crime punível com até três anos de prisão. Entre 1998 e 2007 foram investigados 223 crimes de aborto. Num país em que uma em cada sete mulheres afirmava já ter abortado, a hipocrisia maior era a daqueles que, como Marcelo Rebelo de Sousa, recusavam mudar a lei alegando que “é proibido mas pode-se fazer” e dessa forma condenavam milhares de mulheres à clandestinidade e aos abortos de vão de escada.

Desde 2012, mais nenhuma mulher morreu vítima de um aborto clandestino. Entre 2011 e 2018, as interrupções de gravidez por todos os motivos decresceram 24,2% e as realizadas apenas por opção da mulher até às dez semanas diminuíram 27,1%. As instituições europeias indicam que o número de interrupções de gravidez por 1000 nados-vivos em Portugal está abaixo da média europeia desde, pelo menos, 2015.

Claro que estes resultados seriam impossíveis se o Serviço Nacional de Saúde tivesse sido excluído do direito das mulheres a ter acesso ao aborto legal, seguro e gratuito, como propunha a direita. A lei da IVG encaixou como uma luva nas políticas de planeamento familiar que já estavam a ser desenvolvidas e nos avanços da contraceção. A sua complementaridade salvou muitas vidas e pôs Portugal na linha da frente na promoção da saúde e direitos das mulheres.

Há paralelos que não podem ser estabelecidos. A história da legalização do aborto faz-se de décadas de cobardias de alguns e coragem de muitos. Cobardia, desde logo, do Partido Socialista, que empurrou para um primeiro referendo, em 1998, o que poderia ter aprovado no Parlamento, o que acabaria por provocar a necessidade de um segundo referendo para corrigir o primeiro e que, mesmo assim, não seria vinculativo. A lei do aborto acabaria finalmente por ser aprovada no Parlamento com os votos de PS, BE, PCP e PE. E coragem de muitas e muitos, incluindo a dos católicos que aceitaram dar a mão para acabar com a vergonha da perseguição às mulheres.

Treze anos depois, o país olha para a lei do aborto como se ela sempre tivesse existido, e já nem os partidos que se lhe opuseram, como o CDS, conseguem defender a criminalização das mulheres. A sociedade não aceitaria.

Mas o sucesso da lei do aborto em Portugal pode e deve levar-nos a outras reflexões sobre o país que queremos. Podemos questionar se a legalização do aborto alguma vez deveria ter sido submetida a referendo. Devemos perguntar se valeu a pena esperar tantos anos, roubando a dignidade, a saúde e a vida a tantas mulheres.

Em qualquer circunstância, e apesar da vitória em 2007, mantenho o que muitos de nós sempre achámos: os referendos devem aplicar-se a matérias em que a vitória da maioria não se transforme numa ditadura moral sobre os direitos individuais, muito menos sobre direitos humanos. Há coisas que não são referendáveis. A morte assistida, como o aborto, é uma decisão que deve ser limitada apenas pela opção livre, informada, consciente e ponderada de cada um de nós. Submeter essa autodeterminação a uma moral que lhe é estranha seria o mesmo que condenar as consciências à clandestinidade. Elas não desaparecem, apenas continuam a existir em sofrimento.

Deputada do Bloco de Esquerda

(1) Intervenção da deputada do Bloco de Esquerda Sandra Cunha sobre os 13 anos da despenalização do aborto

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