Não sou racista, até tenho um amigo...

27-06-2020
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Portugal descola-se da imagem de um país onde o racismo existe. O tema nunca ou quase nunca está presente no discurso institucional. Talvez herança de um colonialismo que sempre se quis afirmar para fora como humanista.

Em 1944, o Ministério das Colónias da República Portuguesa publicava a obra do padre António Brásio "Os Pretos em Portugal". Na introdução, pode ler-se: "Apesar de enfermar de determinados vícios gerais ao sistema, segundo o conceito e prática unânimemente aceites no tempo, a escravatura para os portugueses revestiu sempre um carácter de humanitarismo que se não encontra em qualquer outra parte do globo. Ainda hoje, decorridos quatro séculos de civilização e de cristianismo, o aglomerado super-civilizado norte-americano, a pátria celebrada de todas as liberdades, o arauto altissonante de proclamação dos direitos da consciência humana ultrajada, ainda hoje ficava muito aquém do humanismo cristão com que os portugueses trataram o preto."

Em Portugal, não se assistiu à segregação racial do exemplo norte-americano nas décadas seguintes, mas isso não impediu que muita gente sentisse que era menos do que os outros por causa da cor da pele. Ainda hoje. Em quase 42 anos de democracia, a população negra em Portugal não tem parado de crescer mas os negros praticamente não ocupam lugares de destaque ou decisão.

Na Assembleia da República, até agora só dois negros se sentaram no hemiciclo. O segundo foi Hélder Amaral. "Não é estranho que o tal país mais simpático, mais disponível para se cruzar com outras culturas e outras realidades, não tenha na sua sociedade visível, seja na televisão, seja na política, seja no meio universitário, a presença de algumas dessas pessoas?", pergunta o deputado do CDS.

Mikas Amaral arrancou com vários projetos que têm animado a noite lisboeta. Sentado na esplanada do Clube Ferroviário, com vista sobre a linha de caminho de ferro e o Tejo, ao pôr do sol, conta pedaços das histórias que tem vivido. Saiu de Moçambique para Portugal e só nessa altura percebeu que os outros reparavam nele por ser negro. E isso provocou-lhe uma revolta que desconhecia. "Não há como definir o que eu sinto no momento em que estou a sentir uma situação de racismo, não há definições porque mexe com as emoções de uma forma tão profunda que não se pode definir", diz o empresário.

"São situações que causam muita dor, muito dolorosas do ponto de vista piscológico", acrescenta Romualda Fernandes, que tem trabalhado com minorias e imigrantes é atualmente assessora da Assembleia Municipal de Lisboa. Ela própria já foi diversas vezes obrigada a enfrentar as reações dos outros por causa da cor. Reações de quem estranha que, sendo negra e mulher, possa estar por exemplo em representação do Estado português.

Um dia em que Portugal apresentava em Genebra um relatório sobre racismo no âmbito da convenção sobre a discriminação racial e étnica, "um dos peritos do Comité das Nações Unidas que nos questionava era um senhor da Guiné Conacri. O senhor olhava para mim, perguntava as coisas e quando acabámos veio ter comigo e perguntou: 'Diga-me uma coisa, a senhora é casada com um português?', entenda-se com um branco." Por acaso é casada. Com um guineense que não é branco.

É muito raro encontrar alguém negro que não tenha um episódio para contar sobre o estigma da cor da pele. Johnson Semedo cresceu num bairro onde muitos dos negros que nasceram em Portugal não se sentem portugueses. Diz que a mãe sempre lhe passou os melhores valores. Quase nunca a via quando saía cedo para o trabalho e chegava já tarde para pôr o jantar na mesa. Mas a rebeldia da juventude e as "más companhias" não o deixaram ouvir os bons conselhos da mãe. Acabou preso. Duas vezes. Hoje não quer nada parecido para nenhum dos quatro filhos. Nem isso nem deixar-se abater por ser negro.

"Eu, por exemplo, já sofri muito racismo na vida mas hoje não permito isso, porquê? Porque aprendi que o ser branco, preto, amarelo ou azul a mim é-me indiferente. A mim a diferença constrói-me e não me destrói."

Portugal descola-se da imagem de um país onde o racismo existe. O tema nunca ou quase nunca está presente no discurso institucional. Talvez herança de um colonialismo que sempre se quis afirmar para fora como humanista.

Em 1944, o Ministério das Colónias da República Portuguesa publicava a obra do padre António Brásio "Os Pretos em Portugal". Na introdução, pode ler-se: "Apesar de enfermar de determinados vícios gerais ao sistema, segundo o conceito e prática unânimemente aceites no tempo, a escravatura para os portugueses revestiu sempre um carácter de humanitarismo que se não encontra em qualquer outra parte do globo. Ainda hoje, decorridos quatro séculos de civilização e de cristianismo, o aglomerado super-civilizado norte-americano, a pátria celebrada de todas as liberdades, o arauto altissonante de proclamação dos direitos da consciência humana ultrajada, ainda hoje ficava muito aquém do humanismo cristão com que os portugueses trataram o preto."

Em Portugal, não se assistiu à segregação racial do exemplo norte-americano nas décadas seguintes, mas isso não impediu que muita gente sentisse que era menos do que os outros por causa da cor da pele. Ainda hoje. Em quase 42 anos de democracia, a população negra em Portugal não tem parado de crescer mas os negros praticamente não ocupam lugares de destaque ou decisão.

Na Assembleia da República, até agora só dois negros se sentaram no hemiciclo. O segundo foi Hélder Amaral. "Não é estranho que o tal país mais simpático, mais disponível para se cruzar com outras culturas e outras realidades, não tenha na sua sociedade visível, seja na televisão, seja na política, seja no meio universitário, a presença de algumas dessas pessoas?", pergunta o deputado do CDS.

Mikas Amaral arrancou com vários projetos que têm animado a noite lisboeta. Sentado na esplanada do Clube Ferroviário, com vista sobre a linha de caminho de ferro e o Tejo, ao pôr do sol, conta pedaços das histórias que tem vivido. Saiu de Moçambique para Portugal e só nessa altura percebeu que os outros reparavam nele por ser negro. E isso provocou-lhe uma revolta que desconhecia. "Não há como definir o que eu sinto no momento em que estou a sentir uma situação de racismo, não há definições porque mexe com as emoções de uma forma tão profunda que não se pode definir", diz o empresário.

"São situações que causam muita dor, muito dolorosas do ponto de vista piscológico", acrescenta Romualda Fernandes, que tem trabalhado com minorias e imigrantes é atualmente assessora da Assembleia Municipal de Lisboa. Ela própria já foi diversas vezes obrigada a enfrentar as reações dos outros por causa da cor. Reações de quem estranha que, sendo negra e mulher, possa estar por exemplo em representação do Estado português.

Um dia em que Portugal apresentava em Genebra um relatório sobre racismo no âmbito da convenção sobre a discriminação racial e étnica, "um dos peritos do Comité das Nações Unidas que nos questionava era um senhor da Guiné Conacri. O senhor olhava para mim, perguntava as coisas e quando acabámos veio ter comigo e perguntou: 'Diga-me uma coisa, a senhora é casada com um português?', entenda-se com um branco." Por acaso é casada. Com um guineense que não é branco.

É muito raro encontrar alguém negro que não tenha um episódio para contar sobre o estigma da cor da pele. Johnson Semedo cresceu num bairro onde muitos dos negros que nasceram em Portugal não se sentem portugueses. Diz que a mãe sempre lhe passou os melhores valores. Quase nunca a via quando saía cedo para o trabalho e chegava já tarde para pôr o jantar na mesa. Mas a rebeldia da juventude e as "más companhias" não o deixaram ouvir os bons conselhos da mãe. Acabou preso. Duas vezes. Hoje não quer nada parecido para nenhum dos quatro filhos. Nem isso nem deixar-se abater por ser negro.

"Eu, por exemplo, já sofri muito racismo na vida mas hoje não permito isso, porquê? Porque aprendi que o ser branco, preto, amarelo ou azul a mim é-me indiferente. A mim a diferença constrói-me e não me destrói."

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