O inevitável passo atrás

28-06-2020
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O inevitável passo atrás

As condições socioeconómicas dos portugueses pesam tanto ou mais no passo atrás no desconfinamento do que certos comportamentos excessivos de alguns indivíduos ou grupos.

1. A sede desconfinadora da população, alguns exemplos negativos dados por dirigentes e organizações políticas, a falta de preparação da fase de abertura progressiva por parte do Governo, a passividade das forças ditas da ordem e, sobretudo, as condições socioeconómicas de milhões de portugueses estão na origem daquilo que se temia: a necessidade de dar um passo atrás e de voltar a impor restrições para travar o recrudescimento dramático da pandemia. É melhor assim e lidar com a verdade do que andarmos a iludir-nos e a tentar maquilhar a realidade em relação ao resto do mundo. O que estava a suceder escondia uma situação que se pressentia desde que, em maio, se aliviaram as limitações. Foi um excesso de entusiasmo que envolve e responsabiliza o Governo, as autarquias e as autoridades sanitárias e de saúde. Em suma, facilitou-se. Agora corre-se atrás do prejuízo. Colhemos o que semeámos ao relaxar excessivamente depois de uma formidável atitude defensiva coletiva, assumida pela população antes de um Governo desnorteado. Houve quem avisasse que com o fator de contaminação com que estávamos (0,97), o risco era ainda muito grande. É importante corrigir comportamentos rapidamente, esperando que ainda se vá a tempo. Mas importa também ter consciência de que, em primeira linha, existe uma relação direta entre o desenvolvimento da doença e as condições de vida e de habitação da maior parte da população portuguesa, sobretudo nos grandes centros urbanos e nos lares. Não somos, de facto, o reino da Dinamarca. Cá, um salário médio é de 800 euros/mês. Lá anda pelos 4700. Ora, isso explica muita coisa.

2. A pandemia revelou aos portugueses a figura de Ricardo Baptista Leite, um deputado e vice-presidente da bancada do PSD até há pouco só conhecido no mundo político e médico. Regularmente e sem alarde, Baptista Leite tem aparecido e falado sobre a doença de forma serena, conhecedora e firme, não hesitando em discordar de certas medidas oficiais e em subscrever outras – isto sem se furtar a esclarecer os média quanto ao evoluir da doença e à forma como entende dever enfrentar-se este mal planetário. Médico de formação e cidadão de convicções arreigadas (é firme e racional opositor da eutanásia), tem 40 anos e possui fortes ligações ao Canadá, onde nasceu, sendo um reconhecido especialista em saúde pública, o que é fundamental no contexto da covid-19. Essa circunstância, aliada à sobriedade e convicção, tornou a sua voz a mais respeitada de todos os deputados (e foram muitos) que intervieram sobre a doença. Foi Baptista Leite que dramaticamente se levantou no Parlamento e apelou a salvar vidas e à adoção de medidas urgentes de confinamento. “Portugal não pode ser, objetivamente, outra Itália”, “Portugal está em estado de guerra…”, “Cancelem tudo e fiquem em casa por aqueles que tanto fizeram por nós” são frases suas num apelo humanitário que fez há três meses e que os portugueses ouviram e respeitaram. Se há hoje um discurso de referência quanto à pandemia é o de Ricardo Baptista Leite, que mantém uma participação cívica permanente nos média e nas redes sociais. Ele tem sido uma bússola e uma voz que está sempre mais perto da realidade e daquilo que é o melhor para o bem comum. Baptista Leite é a prova de que é fundamental existirem na política figuras com vida profissional própria, e não meras peças decorativas, sem autonomia de vida. Se mais houvesse como ele, bem melhor estaria Portugal.

3. Em contradição com uma história de lutas, conquistas, implantação e descobertas, os portugueses de hoje são um povo de gente moderada e tranquila que, normalmente, não quer criar problemas e, sobretudo, não quer ser incomodada por impulsos reformistas e radicalismos de esquerda ou de direita. Somos latinos, mas não somos espanhóis, franceses ou, muito menos, italianos.

Talvez nestes tempos se possa falar com propriedade de brandos costumes, o que não era o caso nos séculos anteriores, em que a nossa vida interna e externa não era feita de pacifismo.

Desde os anos 80 do século passado, quando a democracia civil se estabilizou, o quadro político português não mudou muito, ao contrário do que alguns proclamam. Nos sucessivos atos eleitorais, PS e PSD obtiveram quase sempre resultados que os atiraram para valores mínimos de conjunto da ordem dos 60%. Apesar de todas as modificações à esquerda, com o Bloco e o PAN a comerem eleitorado ao PS e ao PCP, e à direita, com a implosão do CDS e a subida do Chega, as sondagens recentes indicam que PS e PSD deverão continuar a ocupar todo o centro político.

O esfrangalhar do que está à direita do PSD tem, porém, um efeito concreto na afirmação de uma alternativa potencial ao Governo Costa pois, ao contrário do PS, que não se importa de se aliar à esquerda para governar, o PSD nunca fará um acordo com a direita populista de André Ventura, muito embora os sociais-democratas saibam que no seu eleitorado natural (assim como no dos comunistas) há pontos de concordância com o Chega.

Certos analistas e politólogos preconizam que aparecerá fatalmente a necessidade clara de um Governo ou de um acordo de bloco central. É possível, desde logo por causa da crise pós-covid-19. Se for o caso, não poderemos estranhar que os moderados se desviem para a esquerda ou para a direita em termos de voto. Seria uma posição de protesto, mais do que de convicção, como aconteceu com o PRD, que apareceu e desapareceu. Entre nós há uma tendência de moderação instalada em termos de legislativas, a par de uma indiferença que contribui para níveis de abstenção perigosos e viciadores da democracia. O verdadeiro perigo está em projetos inorgânicos, unipessoais e caciquistas, tanto a nível nacional (presidenciais) como autárquico. Se eles se afirmarem, então, sim, o centrão político correrá riscos, até porque o estado em que tem deixado o país não é propriamente glorioso.

Escreve à quarta-feira

O inevitável passo atrás

As condições socioeconómicas dos portugueses pesam tanto ou mais no passo atrás no desconfinamento do que certos comportamentos excessivos de alguns indivíduos ou grupos.

1. A sede desconfinadora da população, alguns exemplos negativos dados por dirigentes e organizações políticas, a falta de preparação da fase de abertura progressiva por parte do Governo, a passividade das forças ditas da ordem e, sobretudo, as condições socioeconómicas de milhões de portugueses estão na origem daquilo que se temia: a necessidade de dar um passo atrás e de voltar a impor restrições para travar o recrudescimento dramático da pandemia. É melhor assim e lidar com a verdade do que andarmos a iludir-nos e a tentar maquilhar a realidade em relação ao resto do mundo. O que estava a suceder escondia uma situação que se pressentia desde que, em maio, se aliviaram as limitações. Foi um excesso de entusiasmo que envolve e responsabiliza o Governo, as autarquias e as autoridades sanitárias e de saúde. Em suma, facilitou-se. Agora corre-se atrás do prejuízo. Colhemos o que semeámos ao relaxar excessivamente depois de uma formidável atitude defensiva coletiva, assumida pela população antes de um Governo desnorteado. Houve quem avisasse que com o fator de contaminação com que estávamos (0,97), o risco era ainda muito grande. É importante corrigir comportamentos rapidamente, esperando que ainda se vá a tempo. Mas importa também ter consciência de que, em primeira linha, existe uma relação direta entre o desenvolvimento da doença e as condições de vida e de habitação da maior parte da população portuguesa, sobretudo nos grandes centros urbanos e nos lares. Não somos, de facto, o reino da Dinamarca. Cá, um salário médio é de 800 euros/mês. Lá anda pelos 4700. Ora, isso explica muita coisa.

2. A pandemia revelou aos portugueses a figura de Ricardo Baptista Leite, um deputado e vice-presidente da bancada do PSD até há pouco só conhecido no mundo político e médico. Regularmente e sem alarde, Baptista Leite tem aparecido e falado sobre a doença de forma serena, conhecedora e firme, não hesitando em discordar de certas medidas oficiais e em subscrever outras – isto sem se furtar a esclarecer os média quanto ao evoluir da doença e à forma como entende dever enfrentar-se este mal planetário. Médico de formação e cidadão de convicções arreigadas (é firme e racional opositor da eutanásia), tem 40 anos e possui fortes ligações ao Canadá, onde nasceu, sendo um reconhecido especialista em saúde pública, o que é fundamental no contexto da covid-19. Essa circunstância, aliada à sobriedade e convicção, tornou a sua voz a mais respeitada de todos os deputados (e foram muitos) que intervieram sobre a doença. Foi Baptista Leite que dramaticamente se levantou no Parlamento e apelou a salvar vidas e à adoção de medidas urgentes de confinamento. “Portugal não pode ser, objetivamente, outra Itália”, “Portugal está em estado de guerra…”, “Cancelem tudo e fiquem em casa por aqueles que tanto fizeram por nós” são frases suas num apelo humanitário que fez há três meses e que os portugueses ouviram e respeitaram. Se há hoje um discurso de referência quanto à pandemia é o de Ricardo Baptista Leite, que mantém uma participação cívica permanente nos média e nas redes sociais. Ele tem sido uma bússola e uma voz que está sempre mais perto da realidade e daquilo que é o melhor para o bem comum. Baptista Leite é a prova de que é fundamental existirem na política figuras com vida profissional própria, e não meras peças decorativas, sem autonomia de vida. Se mais houvesse como ele, bem melhor estaria Portugal.

3. Em contradição com uma história de lutas, conquistas, implantação e descobertas, os portugueses de hoje são um povo de gente moderada e tranquila que, normalmente, não quer criar problemas e, sobretudo, não quer ser incomodada por impulsos reformistas e radicalismos de esquerda ou de direita. Somos latinos, mas não somos espanhóis, franceses ou, muito menos, italianos.

Talvez nestes tempos se possa falar com propriedade de brandos costumes, o que não era o caso nos séculos anteriores, em que a nossa vida interna e externa não era feita de pacifismo.

Desde os anos 80 do século passado, quando a democracia civil se estabilizou, o quadro político português não mudou muito, ao contrário do que alguns proclamam. Nos sucessivos atos eleitorais, PS e PSD obtiveram quase sempre resultados que os atiraram para valores mínimos de conjunto da ordem dos 60%. Apesar de todas as modificações à esquerda, com o Bloco e o PAN a comerem eleitorado ao PS e ao PCP, e à direita, com a implosão do CDS e a subida do Chega, as sondagens recentes indicam que PS e PSD deverão continuar a ocupar todo o centro político.

O esfrangalhar do que está à direita do PSD tem, porém, um efeito concreto na afirmação de uma alternativa potencial ao Governo Costa pois, ao contrário do PS, que não se importa de se aliar à esquerda para governar, o PSD nunca fará um acordo com a direita populista de André Ventura, muito embora os sociais-democratas saibam que no seu eleitorado natural (assim como no dos comunistas) há pontos de concordância com o Chega.

Certos analistas e politólogos preconizam que aparecerá fatalmente a necessidade clara de um Governo ou de um acordo de bloco central. É possível, desde logo por causa da crise pós-covid-19. Se for o caso, não poderemos estranhar que os moderados se desviem para a esquerda ou para a direita em termos de voto. Seria uma posição de protesto, mais do que de convicção, como aconteceu com o PRD, que apareceu e desapareceu. Entre nós há uma tendência de moderação instalada em termos de legislativas, a par de uma indiferença que contribui para níveis de abstenção perigosos e viciadores da democracia. O verdadeiro perigo está em projetos inorgânicos, unipessoais e caciquistas, tanto a nível nacional (presidenciais) como autárquico. Se eles se afirmarem, então, sim, o centrão político correrá riscos, até porque o estado em que tem deixado o país não é propriamente glorioso.

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