a filosofia vai ao cinema: Pensar filosoficamente Alberto Caeiro no Dia Mundial da Filosofia

19-06-2020
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Como
já é tradição, o Dia Mundial da Filosofia celebrou-se na minha escola. Este
ano, escolhemos o tema "Filosofia e Literatura" e os professores do
grupo escreveram um texto de abordagem filosófica de um livro. Aqui fica para
todos vós o meu contributo.

LIVRO: Poemas Completos de Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa

Toda a paz da
Natureza sem gente

Vem sentar-se a
meu lado.

Alberto Caeiro

À primeira vista, fazer uma leitura filosófica da
obra de Alberto Caeiro parece uma missão impossível. De facto, como se comenta
filosoficamente a obra de um poeta que se classifica a si mesmo como “um temperamento sem filosofia”? Como
tornar claras as ideias de alguém cuja “alma
era de certezas poéticas, não buscando esclarecer-se”? Ou que afirma que a
sua obra “não se pode comentar, porque se
não pode pensar o que é directo, como o céu e a terra”?

Não obstante a aversão do poeta às conjecturas
filosóficas, existe um pensamento ecológico em Alberto Caeiro. Uma das teses
que perpassa toda a sua poesia é a da existência de uma nítida dicotomia entre
o “mundo natural” e o “mundo humano”. Para ele, a natureza é um lugar
caracterizado pela paz e comunhão com as coisas (Toda
a paz da Natureza sem gente / Vem sentar-se a meu lado.). Quanto ao homem contemporâneo, não só já não
pertence a esse mundo natural, como é, inclusive, um factor de perturbação da
harmonia da natureza. Entre a “simplicidade” da natureza e a “confusão” do
mundo dos homens, o poeta não hesita:

            Ah, como os mais simples dos homens

São doentes e confusos e estúpidos

Ao pé da clara simplicidade

E saúde em existir

Das árvores e das plantas!

Pelas mesmas razões, Caeiro prefere a aldeia e o
campo, rejeitando a “claustrofobia” que a cidade lhe provoca:

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para
longe de todo o ceu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram tudo e também
não podemos olhar

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é
ver.

Se encarado a partir das teorias ecológicas
contemporâneas, Caeiro revela-se um ecologista radical, já que defende a total
preservação da natureza  (Deixemos o universo exterior e os outros homens
onde a natureza os pôs).  

Também encontramos na sua obra o igualitarismo biosférico,
uma concepção absolutamente não hierarquizada da natureza segundo a qual cada
ser é valorizado na sua riqueza insubstituível (Se
sou mais que uma pedra e uma planta? Não sei. / Sou differente. Não sei o que é
mais ou menos.). Para ele, cada
ser existente na natureza vale por si mesmo, ou seja, tem um valor intrínseco e
não meramente instrumental (A espantosa
realidade das coisas / É a minha descoberta de todos os dias. / Cada coisa é o
que é, / E é difficil explicar a alguem quanto isso me alegra, / E quanto isso
me basta. / Basta existir para se ser completo.).

Podemos designar esta tese de
anti-antropocêntrica, porque defende que a Natureza não existe para o Homem, uma
vez que o Homem não vale mais que os seres da natureza. (Quando vier a primavera, / Se eu já estiver morto,
/ As flores florirão da mesma maneira / E as árvores não serão menos verdes que
na primavera passada. / A realidade não precisa de mim.). 

Alberto Caeiro faz a apologia do regresso à natureza.
Trata-se de um regresso ao admirável mundo primitivo, em que o Homem tem de
descobrir a aprendizagem do “desaprender”  (Procuro despir-me do que apprendi, / Procuro
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me
pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, /
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a
Natureza produziu.).

A “natureza” de que nos fala o poeta já quase não
existe. Quanto ao seu “projeto”: será que resiste? Fica no ar a pergunta...

Para finalizar, deixo-vos com um dos poemas de
Alberto Caeiro que mais aprecio:

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

            Se elle quizesse que eu accreditasse
nelle,

            Sem duvida que viria fallar commigo

            E entraria pela minha porta dentro

            Dizendo-me, Aqui estou!

            Mas se Deus é as flores e as arvores

            E os montes e sol e o luar,

            Então acredito nelle,

            Então acredito nelle a toda a hora,

            E a minha vida é toda uma oração e
uma missa,

            E uma comunhão com os olhos e pelos
ouvidos.

Carlos
Café

Nota: Todas as citações da obra de Alberto Caeiro
aparecem em itálico num tamanho de letra ligeiramente inferior ao do
texto.  Por razões de espaço, prescindimos
de identificar os poemas citados. As citações respeitam a grafia original. A
edição utilizada é: PESSOA, Fernando – Poemas
Completos de Alberto Caeiro: Prefácio de Ricardo Reis, Posfácio de Álvaro de
Campos. Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha; posfácio de
Luís de Sousa Rebelo. 1ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1994. 351 p. (Ler
Pessoa).

Como
já é tradição, o Dia Mundial da Filosofia celebrou-se na minha escola. Este
ano, escolhemos o tema "Filosofia e Literatura" e os professores do
grupo escreveram um texto de abordagem filosófica de um livro. Aqui fica para
todos vós o meu contributo.

LIVRO: Poemas Completos de Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa

Toda a paz da
Natureza sem gente

Vem sentar-se a
meu lado.

Alberto Caeiro

À primeira vista, fazer uma leitura filosófica da
obra de Alberto Caeiro parece uma missão impossível. De facto, como se comenta
filosoficamente a obra de um poeta que se classifica a si mesmo como “um temperamento sem filosofia”? Como
tornar claras as ideias de alguém cuja “alma
era de certezas poéticas, não buscando esclarecer-se”? Ou que afirma que a
sua obra “não se pode comentar, porque se
não pode pensar o que é directo, como o céu e a terra”?

Não obstante a aversão do poeta às conjecturas
filosóficas, existe um pensamento ecológico em Alberto Caeiro. Uma das teses
que perpassa toda a sua poesia é a da existência de uma nítida dicotomia entre
o “mundo natural” e o “mundo humano”. Para ele, a natureza é um lugar
caracterizado pela paz e comunhão com as coisas (Toda
a paz da Natureza sem gente / Vem sentar-se a meu lado.). Quanto ao homem contemporâneo, não só já não
pertence a esse mundo natural, como é, inclusive, um factor de perturbação da
harmonia da natureza. Entre a “simplicidade” da natureza e a “confusão” do
mundo dos homens, o poeta não hesita:

            Ah, como os mais simples dos homens

São doentes e confusos e estúpidos

Ao pé da clara simplicidade

E saúde em existir

Das árvores e das plantas!

Pelas mesmas razões, Caeiro prefere a aldeia e o
campo, rejeitando a “claustrofobia” que a cidade lhe provoca:

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para
longe de todo o ceu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram tudo e também
não podemos olhar

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é
ver.

Se encarado a partir das teorias ecológicas
contemporâneas, Caeiro revela-se um ecologista radical, já que defende a total
preservação da natureza  (Deixemos o universo exterior e os outros homens
onde a natureza os pôs).  

Também encontramos na sua obra o igualitarismo biosférico,
uma concepção absolutamente não hierarquizada da natureza segundo a qual cada
ser é valorizado na sua riqueza insubstituível (Se
sou mais que uma pedra e uma planta? Não sei. / Sou differente. Não sei o que é
mais ou menos.). Para ele, cada
ser existente na natureza vale por si mesmo, ou seja, tem um valor intrínseco e
não meramente instrumental (A espantosa
realidade das coisas / É a minha descoberta de todos os dias. / Cada coisa é o
que é, / E é difficil explicar a alguem quanto isso me alegra, / E quanto isso
me basta. / Basta existir para se ser completo.).

Podemos designar esta tese de
anti-antropocêntrica, porque defende que a Natureza não existe para o Homem, uma
vez que o Homem não vale mais que os seres da natureza. (Quando vier a primavera, / Se eu já estiver morto,
/ As flores florirão da mesma maneira / E as árvores não serão menos verdes que
na primavera passada. / A realidade não precisa de mim.). 

Alberto Caeiro faz a apologia do regresso à natureza.
Trata-se de um regresso ao admirável mundo primitivo, em que o Homem tem de
descobrir a aprendizagem do “desaprender”  (Procuro despir-me do que apprendi, / Procuro
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me
pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, /
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a
Natureza produziu.).

A “natureza” de que nos fala o poeta já quase não
existe. Quanto ao seu “projeto”: será que resiste? Fica no ar a pergunta...

Para finalizar, deixo-vos com um dos poemas de
Alberto Caeiro que mais aprecio:

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

            Se elle quizesse que eu accreditasse
nelle,

            Sem duvida que viria fallar commigo

            E entraria pela minha porta dentro

            Dizendo-me, Aqui estou!

            Mas se Deus é as flores e as arvores

            E os montes e sol e o luar,

            Então acredito nelle,

            Então acredito nelle a toda a hora,

            E a minha vida é toda uma oração e
uma missa,

            E uma comunhão com os olhos e pelos
ouvidos.

Carlos
Café

Nota: Todas as citações da obra de Alberto Caeiro
aparecem em itálico num tamanho de letra ligeiramente inferior ao do
texto.  Por razões de espaço, prescindimos
de identificar os poemas citados. As citações respeitam a grafia original. A
edição utilizada é: PESSOA, Fernando – Poemas
Completos de Alberto Caeiro: Prefácio de Ricardo Reis, Posfácio de Álvaro de
Campos. Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha; posfácio de
Luís de Sousa Rebelo. 1ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1994. 351 p. (Ler
Pessoa).

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