Muxicongo: “Do cavalo e da jovem rapariga” e o selvagem da desonra!

23-06-2020
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“De
entre os Códridas já não se elegiam reis, por se considerar que se tinham
tornado efeminados e brandos. Hipómenes, um dos Códridas, quis afastar esta
acusação. Tendo surpreendido um amante com a sua filha Leimônê, matou-o
amarrando-o ao carro com sua filha, e a esta encerrou-a com um cavalo até que
morreu”

Aristóteles

(Fragmento da Constituição
dos Atenienses)

Ao tempo das nossas
incursões académicas, foi-nos proposto um exercício, onde nos confrontamos com
dois pequenos excertos dos textos de Ésquines (Contra Timarco) e de Aristóteles (Fragmento da Constituição dos Atenienses), e por acharmos que, tal como
afirmaria Richard E. Palmer, em hermenêutica o processo de interpretação “vai
de um conteúdo e de um significado manifestos para um significado latente ou
escondido”, aventamos a hipótese de o objecto de interpretação, neste caso
concreto os dois pequenos textos, poder ser constituído por símbolos mitológicos,
sociais ou literários.

Inicialmente,
espelhando uma certa desarticulação de raciocínio, só porque fomos iludidos
pelo cenário, desprezamos o conteúdo ou o tema nevrálgico de tais “construções
literárias”. Na altura, tomaríamos a interpretação certa, envoltos na máxima
grega «Antes a Morte que a Desonra»,
sendo que o castigo corporal era encarado, na antiga Grécia, como modelar. Os
condimentos que nos poderiam conduzir a tal interpretação estavam lá, mesmo
quando o fizemos – ou procuramos fazer – à luz da história, sem esquecermos o
tempo e o espaço. Mas, sem querer, apenas estávamos a dissimular uma construção
interpretativa de “pescadinha de rabo na boca”. Apesar de termos tomado em
linha de conta o sentido figurado ou metafórico, levados pelos conceitos do
exemplo moral, numa Grécia da sabedoria, da beleza e da justiça, dado que as
mulheres estavam sujeitas a restrições – eram bastante dominadas pelos maridos,
pais ou irmãos e raramente participavam na política ou em qualquer outra forma
da vida social –, só posteriormente nos apercebemos do nosso erro de
raciocínio.

Enquanto nos
enredávamos na teia “Do cavalo e da jovem rapariga”, sentíamos – ou ficaríamos
com a sensação de – que, como uma centelha, a verdadeira “jurisprudência” do
zeloso e guardião pai, da virgindade da jovem rapariga, ocultava algo bem mais
grave do que a simples disciplina exemplar do castigo corporal, pela agravada
desonra perpetrada por sua casta filha. Os termos, quer num quer noutro texto, levar-nos-iam
a pensar, ainda que erradamente, na exemplaridade moral, tendo em conta que na
Grécia Antiga a violência fazia parte da sua cultura e, quiçá, do seu
subconsciente. A acidentalidade do espaço geográfico; a luta pela hegemonia; as
querelas locais – de que é exemplo o duelo entre Ésquines e Demóstenes –; a
expressão e sobrevivência dos próprios deuses, ainda que simbolizados pelas
forças da Natureza, ostentavam também os sentimentos bons ou maus dos seres
humanos – para os Gregos, todos os homens se transformavam em deuses logo após
a morte –, revestindo-se em histórias mitológicas, ora poéticas e graciosas,
ora absurdas e pueris, ora imorais e grosseiras; e a própria “Tragédia Grega”,
levar-nos-ia a equacionar a própria violência como factor preponderante para a
interpretação dos textos. Mas, então, qual seria a interpretação certa a dar
aos pequenos textos que nos falam do «cavalo e da jovem rapariga»?      

Que interpretação
certa? Reformulando a nossa visão, e depois de termos lido o excelente trabalho
científico dos Professores Ana Lúcia Curado e José Manuel Curado, quase que não
arriscaríamos em procurar uma outra interpretação. Contudo, ao lermos a dado
momento do referido texto que “o facto de existir esse conhecimento do folclore
mágico das plantas não significa que pessoas sofisticadas e urbanas como
Ésquines e Aristóteles o conhecessem” despertou em nós um desafio de
procurarmos interpretar os referidos textos, contextualizando-os ao objecto –
e/ou objectivo – para que haviam sido criados. Longe de nós em tentarmos
diminuir (ou anular) a interpretação de tão ilustres catedráticos, já que,
incontestavelmente, esse mesmo estudo assenta no profundo domínio do grego e da
Hermenêutica, sendo que, além disso, a sua fundamentação não deixa qualquer
margem para dúvidas.

Ao procurarem dizer-nos
que Ésquines e Aristóteles projectaram sobre os diminutos elementos da história
(a rapariga e a planta de nome estranho) “esquemas de inteligibilidade que
reflectem os seus interesses intelectuais”, por forma a construírem uma
história fortemente moralizadora, os mesmos professores permitir-nos-iam – com
algum devaneio intelectual da nossa parte (por certo que nos perdoarão!) –,
recorrer à interpretação alegórica, já que o texto de Ésquines assenta no
julgamento de Timarco, onde são postas em causa as qualidades morais
incompatíveis com as funções de cidadão e, circunstancialmente, o prostituído
não pode exercer nenhum cargo público, nenhuma magistratura (Ésquines: Contra Timarco: I 19). De facto, Timarco
foi levado a julgamento por falar na assembleia depois de ter tido semelhante
conduta. Carlos Espejo Muriel, da Universidade de Granada, no seu trabalho «Pederastico Griego» fala-nos de exemplos
que Ésquines nos oferece e aborda esta temática num capítulo intitulado «A negação da homossexualidade na Grécia».
Numa das conclusões chega mesmo a afirmar: La
pederastia es un fenómeno antiguo que nada tiene que ver con la homosexualidad,
no en cambio esta última que responde a un concepto moderno, que tantas veces
se ha utilizado para negar precisamente el deseo homosexual en la antiguedad,
deseo que por otro lado queda expuesto al comprobarse la realidade de los gays
en Grecia. E agora, que julgamentos e interpretações se fazem, ao tempo de
outras imoralidades?

Pelo facto de –
conscientemente – nos assumirmos como filhos da Grécia e de Roma, sempre que
nos cruzamos com uma jovem rapariga e/ou um cavalo, procuramos reinterpretar a
nossa própria existência. No tempo presente, enquanto os cavalos selvagens
pastam livremente na Serra d’Arga ou no Gerês, a conduta política e sexual, a
virgindade e a desonra deixaram de ser equacionadas, dado que a sobrevivência –
a da politicamente correcta – dos “deuses” permanece, mas de uma forma
selvagem… O selvagem da desonra!

Ao longo da “vida” sempre procuramos ser cautelosos, mormente quando
accionamos o exercício permanente de interpretação. E essa será sempre a nossa
postura. Daí, o poderem dormir descansados! 

“De
entre os Códridas já não se elegiam reis, por se considerar que se tinham
tornado efeminados e brandos. Hipómenes, um dos Códridas, quis afastar esta
acusação. Tendo surpreendido um amante com a sua filha Leimônê, matou-o
amarrando-o ao carro com sua filha, e a esta encerrou-a com um cavalo até que
morreu”

Aristóteles

(Fragmento da Constituição
dos Atenienses)

Ao tempo das nossas
incursões académicas, foi-nos proposto um exercício, onde nos confrontamos com
dois pequenos excertos dos textos de Ésquines (Contra Timarco) e de Aristóteles (Fragmento da Constituição dos Atenienses), e por acharmos que, tal como
afirmaria Richard E. Palmer, em hermenêutica o processo de interpretação “vai
de um conteúdo e de um significado manifestos para um significado latente ou
escondido”, aventamos a hipótese de o objecto de interpretação, neste caso
concreto os dois pequenos textos, poder ser constituído por símbolos mitológicos,
sociais ou literários.

Inicialmente,
espelhando uma certa desarticulação de raciocínio, só porque fomos iludidos
pelo cenário, desprezamos o conteúdo ou o tema nevrálgico de tais “construções
literárias”. Na altura, tomaríamos a interpretação certa, envoltos na máxima
grega «Antes a Morte que a Desonra»,
sendo que o castigo corporal era encarado, na antiga Grécia, como modelar. Os
condimentos que nos poderiam conduzir a tal interpretação estavam lá, mesmo
quando o fizemos – ou procuramos fazer – à luz da história, sem esquecermos o
tempo e o espaço. Mas, sem querer, apenas estávamos a dissimular uma construção
interpretativa de “pescadinha de rabo na boca”. Apesar de termos tomado em
linha de conta o sentido figurado ou metafórico, levados pelos conceitos do
exemplo moral, numa Grécia da sabedoria, da beleza e da justiça, dado que as
mulheres estavam sujeitas a restrições – eram bastante dominadas pelos maridos,
pais ou irmãos e raramente participavam na política ou em qualquer outra forma
da vida social –, só posteriormente nos apercebemos do nosso erro de
raciocínio.

Enquanto nos
enredávamos na teia “Do cavalo e da jovem rapariga”, sentíamos – ou ficaríamos
com a sensação de – que, como uma centelha, a verdadeira “jurisprudência” do
zeloso e guardião pai, da virgindade da jovem rapariga, ocultava algo bem mais
grave do que a simples disciplina exemplar do castigo corporal, pela agravada
desonra perpetrada por sua casta filha. Os termos, quer num quer noutro texto, levar-nos-iam
a pensar, ainda que erradamente, na exemplaridade moral, tendo em conta que na
Grécia Antiga a violência fazia parte da sua cultura e, quiçá, do seu
subconsciente. A acidentalidade do espaço geográfico; a luta pela hegemonia; as
querelas locais – de que é exemplo o duelo entre Ésquines e Demóstenes –; a
expressão e sobrevivência dos próprios deuses, ainda que simbolizados pelas
forças da Natureza, ostentavam também os sentimentos bons ou maus dos seres
humanos – para os Gregos, todos os homens se transformavam em deuses logo após
a morte –, revestindo-se em histórias mitológicas, ora poéticas e graciosas,
ora absurdas e pueris, ora imorais e grosseiras; e a própria “Tragédia Grega”,
levar-nos-ia a equacionar a própria violência como factor preponderante para a
interpretação dos textos. Mas, então, qual seria a interpretação certa a dar
aos pequenos textos que nos falam do «cavalo e da jovem rapariga»?      

Que interpretação
certa? Reformulando a nossa visão, e depois de termos lido o excelente trabalho
científico dos Professores Ana Lúcia Curado e José Manuel Curado, quase que não
arriscaríamos em procurar uma outra interpretação. Contudo, ao lermos a dado
momento do referido texto que “o facto de existir esse conhecimento do folclore
mágico das plantas não significa que pessoas sofisticadas e urbanas como
Ésquines e Aristóteles o conhecessem” despertou em nós um desafio de
procurarmos interpretar os referidos textos, contextualizando-os ao objecto –
e/ou objectivo – para que haviam sido criados. Longe de nós em tentarmos
diminuir (ou anular) a interpretação de tão ilustres catedráticos, já que,
incontestavelmente, esse mesmo estudo assenta no profundo domínio do grego e da
Hermenêutica, sendo que, além disso, a sua fundamentação não deixa qualquer
margem para dúvidas.

Ao procurarem dizer-nos
que Ésquines e Aristóteles projectaram sobre os diminutos elementos da história
(a rapariga e a planta de nome estranho) “esquemas de inteligibilidade que
reflectem os seus interesses intelectuais”, por forma a construírem uma
história fortemente moralizadora, os mesmos professores permitir-nos-iam – com
algum devaneio intelectual da nossa parte (por certo que nos perdoarão!) –,
recorrer à interpretação alegórica, já que o texto de Ésquines assenta no
julgamento de Timarco, onde são postas em causa as qualidades morais
incompatíveis com as funções de cidadão e, circunstancialmente, o prostituído
não pode exercer nenhum cargo público, nenhuma magistratura (Ésquines: Contra Timarco: I 19). De facto, Timarco
foi levado a julgamento por falar na assembleia depois de ter tido semelhante
conduta. Carlos Espejo Muriel, da Universidade de Granada, no seu trabalho «Pederastico Griego» fala-nos de exemplos
que Ésquines nos oferece e aborda esta temática num capítulo intitulado «A negação da homossexualidade na Grécia».
Numa das conclusões chega mesmo a afirmar: La
pederastia es un fenómeno antiguo que nada tiene que ver con la homosexualidad,
no en cambio esta última que responde a un concepto moderno, que tantas veces
se ha utilizado para negar precisamente el deseo homosexual en la antiguedad,
deseo que por otro lado queda expuesto al comprobarse la realidade de los gays
en Grecia. E agora, que julgamentos e interpretações se fazem, ao tempo de
outras imoralidades?

Pelo facto de –
conscientemente – nos assumirmos como filhos da Grécia e de Roma, sempre que
nos cruzamos com uma jovem rapariga e/ou um cavalo, procuramos reinterpretar a
nossa própria existência. No tempo presente, enquanto os cavalos selvagens
pastam livremente na Serra d’Arga ou no Gerês, a conduta política e sexual, a
virgindade e a desonra deixaram de ser equacionadas, dado que a sobrevivência –
a da politicamente correcta – dos “deuses” permanece, mas de uma forma
selvagem… O selvagem da desonra!

Ao longo da “vida” sempre procuramos ser cautelosos, mormente quando
accionamos o exercício permanente de interpretação. E essa será sempre a nossa
postura. Daí, o poderem dormir descansados! 

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