Muxicongo: «Figuras populares de Ponte de Lima» de Luís Dantas, uma pérola da literatura limiana

28-09-2020
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“Estamos
perante um conjunto de importância primordial para a nossa memória colectiva –
um quinhão de biografias que nos apresentam personagens únicos, com os seus
amores e desamores, as suas paixões e a forma peculiar de existir e agarrar a
vida”.

Daniel Campelo

Em jeito de prenda de
Natal, complementada com um cartão de boas festas (onde em nome da verdadeira
amizade, algumas deferências, não merecidas, se nos foram dirigidas), recebemos
do grande poeta da imagem limiano Amândio de Sousa Vieira, o livro de Luís
Dantas, «Figuras Populares de Ponte de Lima», editado em 2009, pelo Município
de Ponte de Lima, mas só agora trazido ao nosso conhecimento.

A última vez que
escrevemos a respeito de Luís Dantas foi em Outubro de 2008, numa das nossas crónicas
semanais que “detínhamos” no jornal “Falcão do Minho” (com o título
“Imperativos da Memória”), a propósito do seu magnífico livro «Os Limianos na
Grande Guerra», onde sem dissimulações ou subterfúgios expressaríamos o maior
respeito por este extraordinário historiador, poeta e escritor, que,
infelizmente, nos deixou órfãos em 20 de Maio de 2011. Ainda a propósito –
desculpem-nos o pleonasmo – da nossa visão crítica, no que concerne à dimensão
intelectual do Luís Dantas, e como forma de separar águas (quantas chafurdices
por aí se publicam), escrevemos: “Já por várias vezes escrevemos que não é
historiador quem quer ou quem, circunstancialmente, o afirma. Não basta
escrever para nos afirmarmos historiadores. Esta afirmação não carece de
justificação, dado que se consultarmos as visitas à Torre do Tombo ou aos
arquivos distritais, facilmente detectaremos a fraca assiduidade desses
autodenominados eruditos, forjadores da história em decalques sucessivos. Até
já se escusam à bibliografia, como se essa atitude fizesse denotar alguma
modéstia ou presunçoso eruditismo. Repetem-se uns aos outros como crisálidas da
palavra e da verdade histórica”. E acrescentaríamos: “O mesmo não acontece com
Luís Dantas, esse limiano licenciado em História, professor em Lisboa, poeta e
autor de várias obras, com colaboração dispersa em vários jornais e revista da
especialidade. (…) Tal como os trabalhos anteriores, este é mais um ensaio que
em muito veio enriquecer o panorama histórico de Ponte de Lima. Por se tratarem de
trabalhos inéditos, fazem a diferença. Para se ser historiador – o pensar e
agir cientificamente orientado – tal como escreveria Patrick Gardiner, é preciso
orientar a atenção em questões a respeito da condição e da estrutura da mente
humana. É nesse sentido que vemos e sentimos Luís Dantas trabalhar”. Passados
quatro anos, e mesmo com o seu desaparecimento físico, mantemos a mesma
convicção.

Falando agora de
«Figuras Populares de Ponte Lima», e quando era suposto, em face do que o
título nos sugere, ter entre mãos uma simples descrição de figuras sem a mínima
importância – por de populares se tratarem –, eis que assistimos à produção de
uma verdadeira pérola literária, onde o verdadeiro (desculpem-nos a redundância)
sentido estético da palavra escrita se nos apresenta, face à sua beleza, como
uma tela aguarelada… poeticamente aguarelada. Nesta maravilhosa obra, Luís
Dantas acaba por reforçar o estatuto maior de um poeta e escritor, magnamente burilado
na arte de bem escrever. Estamos em dizer que, face ao sistema ou conjunto de
sinais que permitem a expressão ou comunicação, sem desprimor para a apreciação
afectiva – sempre tomada pelo gosto pessoal – de outros escritores limianos e
de suas obras, «Figuras Populares de Ponte de Lima» é uma obra inultrapassável,
porque nos remete para uma prática colectiva, onde a linguagem não é concebida
como um fenómeno privado. Daí Luís Dantas, logo no início desta sua preciosa
obra, citar Jacques Le Goff: “… e a história (é) dos homens, de todos os
homens, não unicamente dos reis e dos grandes”. De facto, e fazendo nossas as
palavras do prefaciador, o nosso particular amigo João Alpuim Botelho, “o que
torna este livro verdadeiramente especial é a capacidade de encontrar estas
pessoas [populares], no meio da multidão anónima (cada vez mais globalizada e
idêntica) e de perceber que os seus comportamentos, apontados como ridículos e
considerados paródicos, representam um tempo e um modo de vida que desaparece”.
Através da pena de Luís Dantas, sem ridicularizar os personagens (antes pelo
contrário, revigora-lhes a memória) até o linguajar popular ganha expressão colegial,
pois sempre ouvimos dizer que é a linguagem no seu todo, na sua função
essencial, a realização do pensamento da própria humanidade. Não é por acaso
que hoje muitas das expressões populares fazem parte dos dicionários.

Perpassam pelas páginas
deste precioso livro figuras como Lourenço, “o Preto”, trazido para Ponte de
Lima pela mão de um general que tinha acabado a sua campanha em África, “E nas
festas? Ah! Senhor, nas festas, a música da sua flauta rebrilhava. Nas Feiras
Novas, era cartaz”; Pinta Ratos, “tinha o chapéu de coco descaído para a nuca e
o olhar assombrado”; Zé Pilauta, o último almocreve da vila, “todas as manhãs,
fizesse chuva ou sol, vinha de São João da Ribeira, com passagem obrigatória
pela mercearia do Gasparinho do Arrabalde, até ao Largo”; João da Luciana;
Caetano Ferrajola; João da Bomba, com “arremedos do poeta Bocaje”; O Fazenda,
“ensinou muitos lavradores a ler pelo jornal diário”; O João da Barca, mestre
na arte de ferrar; A República, qual Aurora “ia-se embora pelo caminho de além
da Ponte a mastigar pequenas raivas”; Joaquinzinho; O Sucateiro, “dizia-se que
apareceu na vila vindo não se sabe bem de onde”; O Mário; O Guerrinha, “na
trabuzana da vida, os versos de zombarias e escárnios foram a sua perdição.
Saíam-lhe da alma, como uma chilreada”; O Zé Povo, “tido por muitos como um dos
primeiros provadores de vinhos e aguardentes do lugar”; Zé Caraitas, mestre de
barbearia; São Roque; Pai Quim, “só via o rio Lima”; Manel Cauteleiro; João da
Mena; João Nabiça; Zé Ferreiro, “percorreu pequenas e grandes distâncias,
trepou aos cumes das serras, esgaravatou nas minas de volfrâmio, viveu vastas
aventuras com pegureiros, galegos e contrabandistas, venerou os santos em
festas e romarias”; O Cachadinha, “lembro-me [também nós] dele beber uma, duas
tigelas e botar flores nos cabelos das raparigas com quadras de redondilha
maior”; O Se Luís, “era um mouro, mas tinhas as suas folgas”; Zé Brandão, “o
estudante mais boémio do Externato”; O Néu Franquinha, morador no bairro das
Pereiras; e, finalmente, as Lavradeiras do Rio Lima, citando a Bicocas e a Maria
da Inês.

Só percorrendo as páginas desta maravilhosa pérola literária, poderemos
constatar a falta que nos faz a pena e a memória de Luís Dantas. O Município de
Ponte de Lima, ao editar «Figuras Populares de Ponte de Lima» prestou um
extraordinário serviço à Cultura da região. Bem-haja por isso!

“Estamos
perante um conjunto de importância primordial para a nossa memória colectiva –
um quinhão de biografias que nos apresentam personagens únicos, com os seus
amores e desamores, as suas paixões e a forma peculiar de existir e agarrar a
vida”.

Daniel Campelo

Em jeito de prenda de
Natal, complementada com um cartão de boas festas (onde em nome da verdadeira
amizade, algumas deferências, não merecidas, se nos foram dirigidas), recebemos
do grande poeta da imagem limiano Amândio de Sousa Vieira, o livro de Luís
Dantas, «Figuras Populares de Ponte de Lima», editado em 2009, pelo Município
de Ponte de Lima, mas só agora trazido ao nosso conhecimento.

A última vez que
escrevemos a respeito de Luís Dantas foi em Outubro de 2008, numa das nossas crónicas
semanais que “detínhamos” no jornal “Falcão do Minho” (com o título
“Imperativos da Memória”), a propósito do seu magnífico livro «Os Limianos na
Grande Guerra», onde sem dissimulações ou subterfúgios expressaríamos o maior
respeito por este extraordinário historiador, poeta e escritor, que,
infelizmente, nos deixou órfãos em 20 de Maio de 2011. Ainda a propósito –
desculpem-nos o pleonasmo – da nossa visão crítica, no que concerne à dimensão
intelectual do Luís Dantas, e como forma de separar águas (quantas chafurdices
por aí se publicam), escrevemos: “Já por várias vezes escrevemos que não é
historiador quem quer ou quem, circunstancialmente, o afirma. Não basta
escrever para nos afirmarmos historiadores. Esta afirmação não carece de
justificação, dado que se consultarmos as visitas à Torre do Tombo ou aos
arquivos distritais, facilmente detectaremos a fraca assiduidade desses
autodenominados eruditos, forjadores da história em decalques sucessivos. Até
já se escusam à bibliografia, como se essa atitude fizesse denotar alguma
modéstia ou presunçoso eruditismo. Repetem-se uns aos outros como crisálidas da
palavra e da verdade histórica”. E acrescentaríamos: “O mesmo não acontece com
Luís Dantas, esse limiano licenciado em História, professor em Lisboa, poeta e
autor de várias obras, com colaboração dispersa em vários jornais e revista da
especialidade. (…) Tal como os trabalhos anteriores, este é mais um ensaio que
em muito veio enriquecer o panorama histórico de Ponte de Lima. Por se tratarem de
trabalhos inéditos, fazem a diferença. Para se ser historiador – o pensar e
agir cientificamente orientado – tal como escreveria Patrick Gardiner, é preciso
orientar a atenção em questões a respeito da condição e da estrutura da mente
humana. É nesse sentido que vemos e sentimos Luís Dantas trabalhar”. Passados
quatro anos, e mesmo com o seu desaparecimento físico, mantemos a mesma
convicção.

Falando agora de
«Figuras Populares de Ponte Lima», e quando era suposto, em face do que o
título nos sugere, ter entre mãos uma simples descrição de figuras sem a mínima
importância – por de populares se tratarem –, eis que assistimos à produção de
uma verdadeira pérola literária, onde o verdadeiro (desculpem-nos a redundância)
sentido estético da palavra escrita se nos apresenta, face à sua beleza, como
uma tela aguarelada… poeticamente aguarelada. Nesta maravilhosa obra, Luís
Dantas acaba por reforçar o estatuto maior de um poeta e escritor, magnamente burilado
na arte de bem escrever. Estamos em dizer que, face ao sistema ou conjunto de
sinais que permitem a expressão ou comunicação, sem desprimor para a apreciação
afectiva – sempre tomada pelo gosto pessoal – de outros escritores limianos e
de suas obras, «Figuras Populares de Ponte de Lima» é uma obra inultrapassável,
porque nos remete para uma prática colectiva, onde a linguagem não é concebida
como um fenómeno privado. Daí Luís Dantas, logo no início desta sua preciosa
obra, citar Jacques Le Goff: “… e a história (é) dos homens, de todos os
homens, não unicamente dos reis e dos grandes”. De facto, e fazendo nossas as
palavras do prefaciador, o nosso particular amigo João Alpuim Botelho, “o que
torna este livro verdadeiramente especial é a capacidade de encontrar estas
pessoas [populares], no meio da multidão anónima (cada vez mais globalizada e
idêntica) e de perceber que os seus comportamentos, apontados como ridículos e
considerados paródicos, representam um tempo e um modo de vida que desaparece”.
Através da pena de Luís Dantas, sem ridicularizar os personagens (antes pelo
contrário, revigora-lhes a memória) até o linguajar popular ganha expressão colegial,
pois sempre ouvimos dizer que é a linguagem no seu todo, na sua função
essencial, a realização do pensamento da própria humanidade. Não é por acaso
que hoje muitas das expressões populares fazem parte dos dicionários.

Perpassam pelas páginas
deste precioso livro figuras como Lourenço, “o Preto”, trazido para Ponte de
Lima pela mão de um general que tinha acabado a sua campanha em África, “E nas
festas? Ah! Senhor, nas festas, a música da sua flauta rebrilhava. Nas Feiras
Novas, era cartaz”; Pinta Ratos, “tinha o chapéu de coco descaído para a nuca e
o olhar assombrado”; Zé Pilauta, o último almocreve da vila, “todas as manhãs,
fizesse chuva ou sol, vinha de São João da Ribeira, com passagem obrigatória
pela mercearia do Gasparinho do Arrabalde, até ao Largo”; João da Luciana;
Caetano Ferrajola; João da Bomba, com “arremedos do poeta Bocaje”; O Fazenda,
“ensinou muitos lavradores a ler pelo jornal diário”; O João da Barca, mestre
na arte de ferrar; A República, qual Aurora “ia-se embora pelo caminho de além
da Ponte a mastigar pequenas raivas”; Joaquinzinho; O Sucateiro, “dizia-se que
apareceu na vila vindo não se sabe bem de onde”; O Mário; O Guerrinha, “na
trabuzana da vida, os versos de zombarias e escárnios foram a sua perdição.
Saíam-lhe da alma, como uma chilreada”; O Zé Povo, “tido por muitos como um dos
primeiros provadores de vinhos e aguardentes do lugar”; Zé Caraitas, mestre de
barbearia; São Roque; Pai Quim, “só via o rio Lima”; Manel Cauteleiro; João da
Mena; João Nabiça; Zé Ferreiro, “percorreu pequenas e grandes distâncias,
trepou aos cumes das serras, esgaravatou nas minas de volfrâmio, viveu vastas
aventuras com pegureiros, galegos e contrabandistas, venerou os santos em
festas e romarias”; O Cachadinha, “lembro-me [também nós] dele beber uma, duas
tigelas e botar flores nos cabelos das raparigas com quadras de redondilha
maior”; O Se Luís, “era um mouro, mas tinhas as suas folgas”; Zé Brandão, “o
estudante mais boémio do Externato”; O Néu Franquinha, morador no bairro das
Pereiras; e, finalmente, as Lavradeiras do Rio Lima, citando a Bicocas e a Maria
da Inês.

Só percorrendo as páginas desta maravilhosa pérola literária, poderemos
constatar a falta que nos faz a pena e a memória de Luís Dantas. O Município de
Ponte de Lima, ao editar «Figuras Populares de Ponte de Lima» prestou um
extraordinário serviço à Cultura da região. Bem-haja por isso!

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