Muxicongo: A essência das religiões em Mircea Eliade

03-10-2020
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“O que caracteriza as
sociedades tradicionais, é a oposição que elas subentendem entre o seu
território habitado – e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca…”

Mircea Eliade

Mircea Eliade,
historiador das religiões e escritor romeno [N. Bucareste, 1907 – m. Chicago,
1986], autor do livro «O Sagrado e o Profano: a essência das religiões», obra
que se tornou fundamental para o estudo do comportamento geral do homem e
imprescindível para a antropologia filosófica, a fenomenologia e a psicologia,
ocupa-se, nos seus estudos, sobre o fenómeno capital “que é o da forma como o
homem religioso se esforça por manter o máximo de tempo possível num Universo
sagrado e, por conseguinte, como é que se apresenta a sua experiência total de
vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do
homem que vive, ou deseja viver num mundo dessacralizado” (cit. sinopse da contracapa). Por isso, mais
do que os seus romances, dos quais destacamos A Noite Bengali (1933); O
Bosque Proibido (1963); O Velho e o
Oficial (1968), seriam os ensaios – como Tratado de História das Religiões: o Mito do Eterno Retorno (1949);
Aspectos do Mito (1963); e, História das Crenças e das Ideias Religiosas
(1976-1983), em três volumes – que o viriam a tornar mundialmente famoso.

Tomando como
referência o livro de Rudolf Otto «Das
Heilige» (1917), Mircea Eliade, em vez de procurar estudar as ideias de
Deus e de religião, aplica-se na análise das modalidades da experiência religiosa, de forma que –
tal como Rudolf Otto –, negligenciando o lado racional e especulativo da
religião, consiga esclarecer o conteúdo e os caracteres específicos dessa mesma
experiência. Mircea Eliade, afirma a dado momento que Rudolf Otto, ao
negligenciar o lado racional e especulativo da religião, encontrando-se
sobretudo no seu lado irracional, conseguiu esclarecer, precisamente, o
conteúdo e os caracteres específicos da supracitada experiência religiosa. A leitura de Lutero levou a que Rudolf Otto
viesse a compreender o que era para um crente o «Deus vivo»: “Não era o Deus
dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma ideia, uma noção
abstracta, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestada na «cólera»
divina”. Não é por acaso que Ludwig Feuerbach (1804-1872), face à sua inicial
educação através da teologia protestante, na sua obra de referência – A essência do cristianismo –, quando se
referia aos predicados que não são representações
nem imagens que o homem faz de Deus, mas verdades, coisas, realidades, ou
seja, determinações que exprimem a existência de Deus, imprimiria à religião
essencialmente a emoção, sendo que esta é necessariamente de essência divina.
Para ele, mesmo a cólera é aceite como divina, desde que na base da mesma se
encontre um fim religioso. Isso mesmo se pode constatar em determinadas
passagens das Sagradas Escrituras: Assim,
pois, como o joio é colhido e queimado no fogo, assim será no fim do mundo: O
Filho do Homem enviará os Seus anjos que hão-de tirar do Seu reino todos os
escandalosos e todos quantos praticam a iniquidade, e lançá-los-ão na fornalha
ardente; ali haverá choro e ranger de dentes (Mt. 13, 40-42).

Mircea Eliade
alerta-nos para o facto de Rudolf Otto se esforçar por clarificar os caracteres
específicos dessa cólera aceite como divina, a que ele chama de experiência
terrífica e irracional, cujo reflexo se encontra, precisamente, no “sentimento de pavor diante do sagrado,
diante deste mysterium tremendum,
diante desta majestas que exala uma
superioridade esmagadora do poder; encontra o temor religioso diante do mysterium
fascinans, onde se expande a perfeita plenitude do ser”. Todas estas
experiências são designadas por Rudolf Otto como numinosas, porque provocadas pela “revelação de um aspecto do poder
divino”. Por outras palavras, e parafraseando o Professor Manuel Gama, hoje
catedrático na Universidade do Minho, “o numinoso
é o totalmente outro que se apresenta
ao homem como máxima realidade e supremo valor que exige dele uma resposta a
nível pessoal”. Na experiência religiosa o carácter pessoal do numinoso
revela-se não pela atitude religiosa, mas pelo determinismo dessa mesma
atitude. Daí, Mircea Eliade afirmar que o numinoso
não se assemelha a nada de humano ou cósmico, sendo que o homem tem um
sentimento profundo da sua própria nulidade,
que o mesmo será dizer «não ser mais do que uma criatura» e de que é exemplo a
forma como Abraão se dirigiu ao seu Senhor: Pois
que me atrevi a falar ao Senhor, eu que sou apenas cinza e pó (Gn. 18, 27).

Para este
historiador das religiões e escritor romeno, inspirando-se em Rudolf Otto, o
sagrado manifesta-se sempre como uma realidade diferente das realidades naturais, embora a linguagem exprima –
segundo ele, ingenuamente – o tremendo,
o misterioso ou mesmo o fascinante, mediante termos tomados de
empréstimo ao domínio natural ou à vida profana do homem. Contudo, e ainda
segundo o mesmo escritor romeno, esta terminologia analógica é devida
justamente à incapacidade humana de exprimir aquilo a que ele denomina de ganz andere: “a linguagem apenas pode
sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos
tirados desta mesma experiência natural”.

Mircea Eliade
propõe-se assim “apresentar o fenómeno do sagrado em toda a sua complexidade, e
não apenas no que ele comporta de irracional”.
Para ele, o importante é o sagrado na sua
totalidade e não a relação entre os elementos não-racional e racional da
religião. Para que haja conhecimento do sagrado, o mesmo tem que se manifestar.

É desta forma
que Mircea Eliade nos indica o acto da manifestação do sagrado, propondo-nos o
termo hierofania. Para o mesmo
escritor, este termo, por não implicar qualquer precisão suplementar: “exprime
apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de
sagrado se nos mostra”. E todas as histórias das religiões, de uma forma ou de
outra, tendo em conta as manifestações das realidades sagradas, estão recheadas
de um número considerável de hierofanias,
ou seja, manifestações do sagrado tornando uma simples forma profana, em
sagrada, que podem vir de diversas origens, desde pedras até imagens, profetas
e espaços. Por exemplo, uma determinada árvore para um indivíduo pode ser
sagrada, já que algum facto levou essa pessoa a determinar a sua opinião, mas
para outros a árvore poderá ser uma simples forma profana.

Tal como
acontece com Rudolf Otto, Mircea Eliade, em vez de procurar estudar as ideias de Deus e de religião, aplica-se na análise das modalidades da experiência
religiosa, de forma que, negligenciando o lado racional e especulativo da
religião, consiga esclarecer o conteúdo e os caracteres específicos dessa mesma
experiência. E essa é uma excelente contribuição para o esclarecimento e
discussão de alguns problemas fundamentais para a compreensão de conceitos
básicos da cultura.

“O que caracteriza as
sociedades tradicionais, é a oposição que elas subentendem entre o seu
território habitado – e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca…”

Mircea Eliade

Mircea Eliade,
historiador das religiões e escritor romeno [N. Bucareste, 1907 – m. Chicago,
1986], autor do livro «O Sagrado e o Profano: a essência das religiões», obra
que se tornou fundamental para o estudo do comportamento geral do homem e
imprescindível para a antropologia filosófica, a fenomenologia e a psicologia,
ocupa-se, nos seus estudos, sobre o fenómeno capital “que é o da forma como o
homem religioso se esforça por manter o máximo de tempo possível num Universo
sagrado e, por conseguinte, como é que se apresenta a sua experiência total de
vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do
homem que vive, ou deseja viver num mundo dessacralizado” (cit. sinopse da contracapa). Por isso, mais
do que os seus romances, dos quais destacamos A Noite Bengali (1933); O
Bosque Proibido (1963); O Velho e o
Oficial (1968), seriam os ensaios – como Tratado de História das Religiões: o Mito do Eterno Retorno (1949);
Aspectos do Mito (1963); e, História das Crenças e das Ideias Religiosas
(1976-1983), em três volumes – que o viriam a tornar mundialmente famoso.

Tomando como
referência o livro de Rudolf Otto «Das
Heilige» (1917), Mircea Eliade, em vez de procurar estudar as ideias de
Deus e de religião, aplica-se na análise das modalidades da experiência religiosa, de forma que –
tal como Rudolf Otto –, negligenciando o lado racional e especulativo da
religião, consiga esclarecer o conteúdo e os caracteres específicos dessa mesma
experiência. Mircea Eliade, afirma a dado momento que Rudolf Otto, ao
negligenciar o lado racional e especulativo da religião, encontrando-se
sobretudo no seu lado irracional, conseguiu esclarecer, precisamente, o
conteúdo e os caracteres específicos da supracitada experiência religiosa. A leitura de Lutero levou a que Rudolf Otto
viesse a compreender o que era para um crente o «Deus vivo»: “Não era o Deus
dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma ideia, uma noção
abstracta, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestada na «cólera»
divina”. Não é por acaso que Ludwig Feuerbach (1804-1872), face à sua inicial
educação através da teologia protestante, na sua obra de referência – A essência do cristianismo –, quando se
referia aos predicados que não são representações
nem imagens que o homem faz de Deus, mas verdades, coisas, realidades, ou
seja, determinações que exprimem a existência de Deus, imprimiria à religião
essencialmente a emoção, sendo que esta é necessariamente de essência divina.
Para ele, mesmo a cólera é aceite como divina, desde que na base da mesma se
encontre um fim religioso. Isso mesmo se pode constatar em determinadas
passagens das Sagradas Escrituras: Assim,
pois, como o joio é colhido e queimado no fogo, assim será no fim do mundo: O
Filho do Homem enviará os Seus anjos que hão-de tirar do Seu reino todos os
escandalosos e todos quantos praticam a iniquidade, e lançá-los-ão na fornalha
ardente; ali haverá choro e ranger de dentes (Mt. 13, 40-42).

Mircea Eliade
alerta-nos para o facto de Rudolf Otto se esforçar por clarificar os caracteres
específicos dessa cólera aceite como divina, a que ele chama de experiência
terrífica e irracional, cujo reflexo se encontra, precisamente, no “sentimento de pavor diante do sagrado,
diante deste mysterium tremendum,
diante desta majestas que exala uma
superioridade esmagadora do poder; encontra o temor religioso diante do mysterium
fascinans, onde se expande a perfeita plenitude do ser”. Todas estas
experiências são designadas por Rudolf Otto como numinosas, porque provocadas pela “revelação de um aspecto do poder
divino”. Por outras palavras, e parafraseando o Professor Manuel Gama, hoje
catedrático na Universidade do Minho, “o numinoso
é o totalmente outro que se apresenta
ao homem como máxima realidade e supremo valor que exige dele uma resposta a
nível pessoal”. Na experiência religiosa o carácter pessoal do numinoso
revela-se não pela atitude religiosa, mas pelo determinismo dessa mesma
atitude. Daí, Mircea Eliade afirmar que o numinoso
não se assemelha a nada de humano ou cósmico, sendo que o homem tem um
sentimento profundo da sua própria nulidade,
que o mesmo será dizer «não ser mais do que uma criatura» e de que é exemplo a
forma como Abraão se dirigiu ao seu Senhor: Pois
que me atrevi a falar ao Senhor, eu que sou apenas cinza e pó (Gn. 18, 27).

Para este
historiador das religiões e escritor romeno, inspirando-se em Rudolf Otto, o
sagrado manifesta-se sempre como uma realidade diferente das realidades naturais, embora a linguagem exprima –
segundo ele, ingenuamente – o tremendo,
o misterioso ou mesmo o fascinante, mediante termos tomados de
empréstimo ao domínio natural ou à vida profana do homem. Contudo, e ainda
segundo o mesmo escritor romeno, esta terminologia analógica é devida
justamente à incapacidade humana de exprimir aquilo a que ele denomina de ganz andere: “a linguagem apenas pode
sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos
tirados desta mesma experiência natural”.

Mircea Eliade
propõe-se assim “apresentar o fenómeno do sagrado em toda a sua complexidade, e
não apenas no que ele comporta de irracional”.
Para ele, o importante é o sagrado na sua
totalidade e não a relação entre os elementos não-racional e racional da
religião. Para que haja conhecimento do sagrado, o mesmo tem que se manifestar.

É desta forma
que Mircea Eliade nos indica o acto da manifestação do sagrado, propondo-nos o
termo hierofania. Para o mesmo
escritor, este termo, por não implicar qualquer precisão suplementar: “exprime
apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de
sagrado se nos mostra”. E todas as histórias das religiões, de uma forma ou de
outra, tendo em conta as manifestações das realidades sagradas, estão recheadas
de um número considerável de hierofanias,
ou seja, manifestações do sagrado tornando uma simples forma profana, em
sagrada, que podem vir de diversas origens, desde pedras até imagens, profetas
e espaços. Por exemplo, uma determinada árvore para um indivíduo pode ser
sagrada, já que algum facto levou essa pessoa a determinar a sua opinião, mas
para outros a árvore poderá ser uma simples forma profana.

Tal como
acontece com Rudolf Otto, Mircea Eliade, em vez de procurar estudar as ideias de Deus e de religião, aplica-se na análise das modalidades da experiência
religiosa, de forma que, negligenciando o lado racional e especulativo da
religião, consiga esclarecer o conteúdo e os caracteres específicos dessa mesma
experiência. E essa é uma excelente contribuição para o esclarecimento e
discussão de alguns problemas fundamentais para a compreensão de conceitos
básicos da cultura.

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