A história secreta da geringonça

15-11-2019
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Sexta-feira, 2 de outubro, último dia de campanha eleitoral das legislativas de 2015. Depois do clássico almoço na Trindade, o PS faz a não menos tradicional arruada pelo Chiado. Na cervejaria, ouvem-se discursos de extrema dureza de Ferro Rodrigues e de Fernando Medina para com os partidos à sua esquerda. Talvez inspirados ainda pelas palavras de Manuel Alegre, que na véspera, em Coimbra, lamentara que “parte da esquerda gaste as suas energias a fazer do PS o seu inimigo principal” e tentara chamá-la à razão com um argumento inesperado: “Álvaro Cunhal, com quem tivemos grandes divergências ideológicas, nunca se esqueceu de que há uma fronteira entre esquerda e direita. E teve a lucidez e a coragem política de convocar um congresso extraordinário para lançar a palavra de ordem: contra a candidatura da direita, vota Soares.”

Durante o desfile pelas ruas de Lisboa, com a agitação e o barulho típico do momento, ninguém repara num discreto encontro entre figuras do PS e do PCP. O comunista, ex-autarca da Área Metropolitana de Lisboa (AML), parecendo que estava casualmente na rua, espera que o cortejo passe por ele. Mete conversa com uma ex-presidente de Câmara do PS da AML e, de seguida, com outro antigo autarca socialista, igualmente da metrópole lisboeta. O ambiente dos dois diálogos nada tem a ver com a acrimónia acabada de ouvir na Trindade. Aqui olha-se pragmaticamente para o futuro. E a mensagem do lado do PCP é clara: não há razão para precipitações. Há disponibilidade para uma negociação que possa dar ao PS uma maioria parlamentar, algo que os socialistas não deverão obter nas urnas.

Com efeito, as sondagens dão um avanço à coligação de direita, mas apenas com maioria relativa. Juntos, PS, CDU e Bloco terão mais deputados. E a contagem dos votos haveria de confirmar o cenário. No Chiado, do lado do PS, há alguma surpresa ante a oferta comunista. Mas, ceticismo socialista à parte, os dados estão lançados.

Nesse mesmo dia, o Bloco está na zona do Porto. Entre bloquistas e socialistas não há ainda qualquer indício de um acordo da esquerda. A 14 de setembro, no debate na TV com António Costa, Catarina Martins lançara um repto. Se o PS desistisse de três pontos do seu programa (congelamento de pensões, cortes na TSU e regime de despedimento conciliatório), o Bloco veria nisso “um início de conversa” para poder viabilizar um Governo alternativo ao da direita.

Ao longo de duas semanas e meia, a porta-voz do BE repete tal disponibilidade, dezenas de vezes, sem resposta alguma do PS. Nem publicamente nem em privado — garante agora uma fonte bloquista. Um silêncio que visto a esta distância se percebe melhor. Se fosse para dizer “não”, Costa teria fechado logo as portas; e se pensasse ou admitisse dizer “sim”, como veio a verificar-se, teria de ficar calado, para, entre outras coisas, poder continuar a pedir ao país uma maioria absoluta.

A perplexidade sobre uma possível negociação à esquerda atinge o auge no dia 26 de setembro, quando o Expresso intitula em manchete: “Costa chumba governo de direita minoritário”. Sob aquele título acrescenta-se que o líder do PS “confia na maioria de esquerda e na capacidade para fazer acordos”.

nuno botelho

No Bloco descrê-se de tal cenário. E duvida-se mesmo que tenha sido a direção do PS a veicular tal possibilidade. “Não havia qualquer indicação de que isso fosse verdade”, diz agora uma fonte do Bloco. “Até ao final da campanha, não houve qualquer sinal da parte do PS”, acrescenta. De repente, tudo se precipita: “Os primeiros sinais dados pelo PS foram recebidos no sábado, dia de reflexão.” Mas as “garantias não eram suficientes”, pelo que foi necessário “confirmar a sua credibilidade”.

As reservas iniciais rapidamente se desvanecem. De sábado para domingo realizam-se contactos entre figuras dos dois partidos. Ana Catarina Mendes assume que foi nesse dia de reflexão que “o cenário de entendimento foi posto em cima da mesa”. Mas desde pelo menos quarta-feira, 30 de setembro, que ele vinha ganhando vida nos pensamentos de António Costa. Nesse dia, ao saber dos resultados da última sondagem para o Expresso e a SIC, que apontam para uma vitória da PàF mas sem maioria absoluta (37,7%), o líder socialista comenta: “Não é uma boa notícia, mas também não é má.” Por outras palavras, parecia certo que a maioria parlamentar seria à esquerda, e isso era quanto (lhe) bastava naquele momento.

A 3 e 4 de outubro, nuns casos, a iniciativa dos contactos parte do lado do PS; noutros, é do Bloco. Segundo relata agora um dos envolvidos nas conversações, elas foram no máximo do conhecimento de três a quatro pessoas em cada partido. O relacionamento é feito sobretudo por telefone. Naturalmente, nele participam António Costa e Catarina Martins, mas não falam entre si. Há também encontros presenciais.

O que está em cima da mesa é mais do que um entendimento bilateral. Sendo já praticamente certo que dois (sejam quais forem) não bastam para conseguir uma maioria no Parlamento, tudo remete para um acordo a três, que inclua o PCP (que, pelas sondagens, até deveria ser a segunda força mais importante). Jerónimo terá sido contactado por António Costa, mas o líder comunista é perentório: “Não houve contactos formais ou informais com o PS”, garantiu no dia 6 de outubro, no final da reunião do Comité Central.

João Oliveira, que esteve presente em todas as reuniões de negociação, também confirma a versão oficial de que “não houve contactos antes da reunião em que António Costa foi à Soeiro Pereira Gomes” (7 de outubro). E mais: “Não houve troca de opiniões no dia das eleições”, garante o líder da bancada parlamentar. Ao Expresso, o PCP limita-se a dizer que houve “uma solicitação no dia 3 para se estabelecer um contacto que se efetivou no dia 4, dia das eleições, limitado a uma troca de informações por telefone sobre o andamento da noite eleitoral, designadamente quanto ao momento das declarações”.

Ao início da tarde do domingo das eleições, com um princípio de diálogo à esquerda já alinhavado, e sobretudo jogando com essa possibilidade, António Costa mede a temperatura no seu partido. O líder socialista, que um ano antes fora eleito secretário-geral prometendo maioria absoluta nas legislativas, liga a Francisco Assis e aos presidentes das mais influentes distritais do PS para os sondar sobre um possível entendimento com os partidos de esquerda no caso de o PS ganhar as eleições com minoria ou, ainda que perdendo-as, conseguir ter mais deputados do que o PSD. Na noite das eleições, conhecidos os resultados iniciais, o primeiro sinal público de abertura para um entendimento à esquerda é dado na sede do PCP, no Centro Vitória.

Francisco Lopes não tem dúvidas de que a anterior maioria PSD/CDS “perdeu a capacidade de formar Governo” e que a esquerda “conseguirá isolar politicamente” o anterior Executivo. A frase da noite seria dita mais tarde por Jerónimo de Sousa: “O PS só não forma Governo se não quiser.” Os comunistas lançam o isco de que “o PS tem condições para formar Governo” e avançam com a promessa de apresentar uma moção de censura a uma solução governativa liderada por PSD e CDS. Mas a prudência comunista é uma marca de ADN. Jerónimo sublinha que, “a menos que o PS viabilize” um Governo de direita, há uma “alternativa política” à vista. “A vida dirá” o que se irá passar, conclui o líder do PCP, assumindo que “a procissão ainda vai no adro”.

PCP e BE desconcertados com Costa

A poucos metros dos comunistas, do outro lado da Avenida da Liberdade, no Cinema São Jorge, o Bloco assenta arraiais. Um dos responsáveis da campanha comenta a nuance do discurso de Francisco Lopes e desce apressado as escadas, em direção ao camarim onde Catarina Martins prepara o seu discurso, ainda a tempo de garantir a sua adequação ao facto político da noite.

A líder do Bloco, que fala entre Lopes e Jerónimo, deixa “bem claro” que, “se não tiver maioria, não será pelo BE que [a direita] conseguirá formar Governo”. Minutos antes, Mariana Mortágua ainda falara de “uma possível vitória da direita”. Agora, o léxico é corrigido: “A direita perdeu votos e perdeu mandatos.” E se Cavaco empossar PSD e CDS, o BE “vai rejeitar no Parlamento essa hipótese”.

jose carlos carvalho

Não muito longe, na Rua Castilho, no Hotel Altis, António Costa reconhece a derrota. Os apoiantes que o escutam, temendo que a frase seguinte seja a do anúncio da demissão do lugar de secretário-geral do PS, gritam “não”. Eles pede-lhes paciência: “Já vão dizer que sim.” Reitera que o PS “será inteiramente fiel aos compromissos que assumiu perante os eleitores” e que, por isso, “a coligação de direita não poderá contar com ele para viabilizar a prossecução das suas políticas”. E acrescenta: “Ninguém conte connosco para sermos só uma maioria do contra, sem condições para formar um Governo credível e alternativo ao da direita.” O discurso de Costa é recebido com algum agastamento no Bloco, pela sua “ambiguidade”. Ao contrário do que os contactos de véspera e desse próprio dia fariam supor, o líder do PS mantém canais abertos tanto à esquerda como à direita. Já os comunistas sentem o tapete a fugir-lhes debaixo dos pés quando ouvem Costa afirmar que não alinhará em “maiorias do contra”. Dois dias depois das eleições, Carlos César, novo líder parlamentar do PS, reúne-se com os presidentes das federações. Conta-lhes das negociações à esquerda mas, segundo quem lá esteve, sempre num tom de que seriam manobras mais táticas do que efetivas, porque “dificilmente o PCP aceitará um acordo com o PS”. Ficaria claro, ainda assim, que não seria o PS a inviabilizar essa hipótese. Marcos Perestrello, líder da FAUL, discorda da estratégia. José Luís Carneiro, do Porto, e Capoulas Santos, de Évora, expressam reservas sobre a orientação, que admitem arriscada. Pedro Nuno Santos, líder da distrital de Aveiro, Ana Catarina Mendes, presidente da federação de Setúbal, e Luís Testa, de Portalegre, são os maiores entusiastas do que, nessa altura, ainda é apenas e só uma miragem.

Nessa mesma noite, a Comissão Política do PS aprova (com 63 votos a favor, 4 contra e 3 abstenções) o mandato para António Costa poder encetar diálogo com todas as forças políticas, à esquerda e à direita. Horas antes já Cavaco encarregara Pedro Passos Coelho de “desenvolver diligências” para formar um Governo. Passos chama a Costa “líder do maior partido da oposição” e pede ao PS a adoção de uma “cultura de diálogo”. É com este canto da sereia da direita que António Costa (acompanhado de Carlos César e Ana Catarina Mendes, Pedro Nuno Santos e Mário Centeno) entra, ao final da tarde de 7 de outubro, na sede do PCP, na Soeiro Pereira Gomes. O encontro dura cerca de uma hora e meia e, no final, o líder socialista diz que “correu bem” e sublinha que, apesar das diferenças conhecidas, há “pontos de convergência importantes”. Mas é, surpreendentemente, Jerónimo quem vai mais longe. A reunião “produtiva” vai continuar “nos próximos dias” e o líder comunista deixa uma mensagem clara: o PCP está disposto a “viabilizar um Governo do PS”. O acordo da esquerda começa a mover-se de modo notório e aos olhos de todos. Ana Catarina Mendes diria mais tarde, sobre essa reunião, que Jerónimo tinha “vontade de superar-se a si próprio”.

À distância, João Oliveira lembra que este primeiro encontro “acabou por ser o decisivo”. Para surpresa dos socialistas, os comunistas puseram as cartas todas em cima da mesa: assumiram a disponibilidade para viabilizar o Governo socialista. Em contrapartida, queriam “discutir o programa de Governo e a solução alargada e interpartidária na formação” desse mesmo Executivo. Nesta primeira reunião, o PCP não afastou a possibilidade de participar no Governo. A hipótese acabou por cair mais à frente, no caminho das negociações. O importante, na altura, era deixar um sinal claro de que o PS podia, desta vez, contar com os comunistas.

A primeira reunião entre PS e BE só chegará dias depois. O Bloco pretendia um encontro técnico em primeiro lugar; o PS, então a negociar também no tabuleiro da direita, exige uma reunião política. Inicialmente marcado para dia 8, o encontro acaba por se realizar apenas a 12 de outubro, na sede do Bloco, na Rua da Palma. É bastante mais produtivo, com frutos imediatos, do que o mantido seis dias antes, entre socialistas e comunistas.

O que Costa deixara por esclarecer durante quase um mês tem agora uma resposta clara: o PS aceita as três condições colocadas por Catarina Martins na TV. Com uma maratona negocial em perspetiva, socialistas e bloquistas adotam um princípio que os isentará da tarefa de partir muita pedra na mesa negocial: decidem que, logo à partida, constarão do acordo os assuntos em que há convergência dos respetivos programas eleitorais e os temas que votações anteriores no Parlamento demonstraram ser “chão comum”, conta um dos negociadores.

Há sintonia num terceiro aspeto: não figurará no acordo qualquer referência aos pontos sobre os quais venha a ser impossível obter um consenso (ao contrário do que a posição conjunta de PS e PCP viria semanas depois a consagrar).

Comunistas e bloquistas em mesas separadas

Socialistas e comunistas, primeiro; socialistas e bloquistas, depois — estão estabelecidas as bases de duas negociações. Para rematar o triângulo, falta perceber como evoluirá o binómio PCP-BE. Os dois partidos encontram-se no dia 16 de outubro, uma sexta-feira à tarde, no Parlamento.

À saída da reunião dá-se um caso extraordinário. Catarina Martins fala em primeiro lugar. Analisa o estado das relações do Bloco com o PS, mas não dedica uma única palavra ao encontro que acabara de ter. Ninguém lhe coloca essa questão. A seguir intervém Jerónimo de Sousa. Lê uma declaração, na qual só menciona o BE na primeira frase (referindo-se ao encontro). No resto, comenta as negociações com o PS. Também aqui as perguntas colocadas não se desviam um milímetro do tema inicial de conversa.

Há uma razão para que nem Catarina nem Jerónimo mostrem qualquer vontade de falar do que se passara minutos antes: as posições dos dois partidos são diametralmente opostas. Instado a relatar as divergências, um dos presentes na reunião diz apenas: “Houve perspetivas muito diferentes sobre a necessidade de fazer refletir no acordo um debate sobre as questões orçamentais.”

Fontes conhecedoras do processo negocial dão mais pormenores. O Bloco solicitara a reunião para aferir o grau de empenhamento efetivo do PCP na concretização de um acordo à esquerda. E para saber da possibilidade de uma conversação direta com os comunistas .

À semelhança da reunião dos presidentes de federação do PS, também no PCP se está de pé atrás em relação à efetivação de um acordo. Acreditam que ele nunca verá a luz do dia, por uma (ou várias) de três razões: uma divisão do PS; obstáculos colocados por Cavaco Silva; pressões externas, de Bruxelas às agências de rating.

Já quanto a uma negociação direta, os comunistas deixam claro que só a farão com o PS. O que só muito mais tarde seria evidente — a impossibilidade de um acordo tripartido — fica cavado no dia 16 de outubro.

Esta geometria variável entre PS, Bloco e PCP ganha letra de forma dois dias depois. Mas é uma subtileza que passa despercebida e só numa leitura posterior se torna clara. A 18 de outubro, um domingo, reúne-se a Mesa Nacional do Bloco. Na resolução política, distinguem-se dois comprimentos de onda: “O prosseguimento das negociações com o PS com vista à consagração, no programa de Governo”, por um lado, e “o prosseguimento do diálogo com o PCP sobre o processo de negociações com o PS”, por outro. Para bom entendedor...

Não é a única decisão cifrada no comunicado: ele é omisso sobre os termos da negociação com o PS. O facto mais relevante da reunião só é destapado na conferência de imprensa. Então, Catarina Martins afirma aos jornalistas que a Mesa Nacional “aprovou por unanimidade a ratificação do mandato da equipa negocial do Bloco para as negociações de um Governo que proteja empregos, salários e pensões”.

Antes, na reunião, em relação a cada ponto passível de figurar num acordo, a porta-voz do Bloco apresentara o ponto de partida da negociação e o limite até onde o BE admitia ceder. A aprovação meramente verbal foi considerada pelos bloquistas a melhor forma de preservar uma informação que se fosse divulgada iria ser mais um grão de areia no espinhoso caminho da esquerda.

A semana de todas as vertigens

Com partidas desencontradas, as duas negociações bilaterais (PS-Bloco e PS-PCP) avançam a velocidades diferentes. Há grande atenção mediática sobre cada uma das reuniões entre os vários partidos, mas ocorrem alguns encontros longe dos olhares dos jornalistas, tanto nas sedes partidárias como no Parlamento.

Na última semana antes da assinatura do acordo, a primeira de novembro, jogam-se todas as decisões. Num ambiente em que é preciso juntar as pontas, os ânimos até começam por ficar mais inflamados logo no dia 1, um domingo.

jorge ferreira

Uma entrevista de Catarina Martins ao “Diário de Notícias” incendeia os ânimos. Um pouco no PS, onde criticam um “excesso de protagonismo”, mas sobretudo no PCP. Por um lado, a líder do Bloco é vista como alguém que gosta de aparecer a dar as boas notícias — “Há acordo à esquerda, as pensões vão ser todas descongeladas”, intitula o “DN” na primeira página —, algo que irrita os parceiros da esquerda. A tampa salta mesmo aos comunistas quando Catarina afirma: “Seria demagógica se dissesse que acredito que seria possível ter [um salário mínimo de] 600 euros em 2016.”

“Demagógica” passa assim a ser a proposta do PCP, que defendia tal valor. E “demagógica” passa também a ser uma das promessas eleitorais do Bloco, que se apresentara às legislativas com a mesmíssima medida no programa.

O mal-estar entre bloquistas e comunistas, que haveria de ter novos episódios no fim de semana seguinte, não impede Catarina Martins de entrar na Soeiro Pereira Gomes, a sede do PCP, poucos dias depois, a 4 de novembro. Foi um dos vários encontros que envolveram líderes partidários que passou despercebido até hoje. A única referência fê-la o Expresso no sábado seguinte, mas ainda com poucos pormenores.

A meio da manhã, numa altura em que o bar está cheio de gente, alguns militantes e funcionários do PCP veem com surpresa a chegada da porta-voz do Bloco, acompanhada por outro membro do partido. Segundo fonte oficial do Bloco, a reunião foi pedida por Jerónimo de Sousa, e pretendia-se que decorresse com discrição. Já o PCP dá uma versão diferente em relação àquele encontro: a iniciativa partiu do BE e ocorreu no dia 5 (e não 4).

Na Soeiro, Catarina informa os comunistas sobre o estado das conversações com o PS, já concluídas em relação às medidas a inscrever no documento final. Os comunistas percebem que o Bloco vai assinar o acordo com os socialistas e que não lhes resta outra saída se não entenderem-se também com o PS. O tempo urge. O fim de semana está a chegar e para ele estão marcadas as reuniões de PCP e PS (Comité Central, no primeiro caso; Comissão Política e Conselho Nacional, no segundo), às quais as respetivas direções têm de submeter a ratificação do texto aprovado entre ambas (e, no caso do PS, também com o BE e Os Verdes).

Um filtro que a direção do Bloco já não enfrenta, pois tem um mandato da Mesa Nacional. Se os ecos da entrevista de Catarina Martins ao “DN” tiveram réplicas na reunião que manteve com Jerónimo de Sousa na sede do PCP é algo que o Expresso não conseguiu apurar. Nessa mesma noite de 4 de novembro, a líder do Bloco é entrevistada na SIC. Para os comunistas tem palavras de mel. Questionada sobre o facto de o PCP negociar só com o PS, Catarina responde: “Se há uma coisa em que eu tenho toda a confiança e certeza é que o PCP será o defensor de parar o ciclo de empobrecimento do país.” E vai mais longe, metendo comunistas e bloquistas no mesmo campo, numa alusão à soma dos votos dos dois partidos: “Um milhão de pessoas são os obreiros de uma nova solução de Governo.” Praticamente à mesma hora, pela segunda vez neste processo, António Costa vai à sede do PCP, onde de manhã estivera Catarina. O líder do PS passara uns dias de férias em Itália, deixando Carlos César na condução das negociações, e foi no estrangeiro que soube das dificuldades persistentes entre socialistas e comunistas. A ida de Costa à Soeiro, entre outras coisas para um cara a cara com Jerónimo, é uma das formas de desbloquear o impasse.

No dia 5, quinta-feira, o prazo para conseguir um acordo da esquerda aproxima-se do fim. Nas segunda e terça-feira seguintes é discutido e votado o programa do segundo Executivo de Pedro Passos Coelho. Se PS, Bloco e PCP não se entenderem antes disso, os socialistas não chumbam o Governo.

Encontro secreto... no largo do Rato

É nessa quinta-feira que António Costa e Catarina Martins se encontram mais uma vez, num encontro no Largo do Rato até agora mantido em segredo.

Com a hipótese de um acordo subscrito a três (ou a quatro, com Os Verdes) já desde há muito descartada, socialistas e bloquistas debatem a “simetria” dos textos. Para o Bloco, sobretudo, trata-se de “uma questão crucial” — a simetria iria garantir um grau de responsabilização igual para todos. Ainda que preâmbulos e anexos pudessem assumir forma distinta em cada “posição conjunta”, o elenco de medidas objeto de entendimento teria de ser o mesmo para todos.

É já depois desta reunião que se reúne a Comissão Política do Bloco, ainda na noite de 5 de novembro. Catarina informa os seus pares dos últimos desenvolvimentos do processo, entre os quais os encontros mantidos com Jerónimo, uma surpresa para quase todos, e com Costa. A Comissão Política dá luz verde às medidas já acordadas com o PS para viabilizar o Governo e, sobretudo, o OE. Ficam também assentes os termos do acordo político, mas não a aprovação formal do mesmo. A ratificação final só terá lugar depois de socialistas e comunistas acertarem as suas agulhas.

Não foi à primeira que BE e PCP aceitaram, já na reta final das negociações, a versão que o PS lhes apresentou, com uma referência aos “compromissos com as regras europeias”, formulação que os dois partidos à esquerda do PS chumbaram.

Noutro caso, no vaivém de e-mails com o elenco de medidas sectoriais passíveis de acordo, os socialistas acabam por fazer sair à luz do dia propostas que nem sequer haviam sido discutidas ou eram desejadas pela outra parte. Naturalmente, foram devolvidas à origem e expurgadas do documento final. No dia da queda do segundo Governo de Passos Coelho, o acordo está feito. Mas ninguém sabe onde, quando e por quem será assinado. A exigência partiu dos comunistas, que recusam uma cerimónia conjunta e a presença de jornalistas. “Na nossa perspetiva, a discussão foi bilateral, não fazia sentido uma assinatura coletiva”, diz João Oliveira. “Não queríamos uma encenação, não víamos vantagem nisso”, acrescenta. Face à posição do PCP, o BE faz uma exigência: ser o último a assinar, por ter a bancada mais numerosa. João Oliveira acompanha Jerónimo à Sala Europa, do PS, mas só o secretário-geral assina: e é o primeiro dos parceiros de António Costa a rubricar a posição conjunta. São 14h34 de 10 de novembro, poucas horas antes da queda do Governo de Passos.

Seguem-se, quatro minutos depois, Os Verdes, representados por Heloísa Apolónia e Manuela Cunha. Por fim, chega a vez do Bloco. Num protocolo improvisado, com convocatórias em cima da hora, Catarina Martins telefona a Pedro Filipe Soares, para que este a acompanhe. Mas o líder parlamentar está nesse momento no refeitório, num almoço de trabalho, já marcado. Não tem como sair da sala. E, como não faz questão de ser ele a assinar o acordo, avança Jorge Costa, um dos vice-presidentes da bancada. É então selada a terceira posição conjunta que vai viabilizar um Governo do PS apoiado pela restante esquerda.

Ao fim de 34 dias de negociações, o folhetim termina às 14h42 do dia 10 de novembro de 2015. É nesse momento, ainda sem conhecer o nome que a há de celebrizar (via Paulo Portas, a partir de uma crónica de Vasco Pulido Valente), que a “geringonça” ganha pernas para andar. Fez 100 dias na última quinta-feira.

(Artigo originalmente publicado na edição 2264, de 20 de fevereiro de 2016)

Sexta-feira, 2 de outubro, último dia de campanha eleitoral das legislativas de 2015. Depois do clássico almoço na Trindade, o PS faz a não menos tradicional arruada pelo Chiado. Na cervejaria, ouvem-se discursos de extrema dureza de Ferro Rodrigues e de Fernando Medina para com os partidos à sua esquerda. Talvez inspirados ainda pelas palavras de Manuel Alegre, que na véspera, em Coimbra, lamentara que “parte da esquerda gaste as suas energias a fazer do PS o seu inimigo principal” e tentara chamá-la à razão com um argumento inesperado: “Álvaro Cunhal, com quem tivemos grandes divergências ideológicas, nunca se esqueceu de que há uma fronteira entre esquerda e direita. E teve a lucidez e a coragem política de convocar um congresso extraordinário para lançar a palavra de ordem: contra a candidatura da direita, vota Soares.”

Durante o desfile pelas ruas de Lisboa, com a agitação e o barulho típico do momento, ninguém repara num discreto encontro entre figuras do PS e do PCP. O comunista, ex-autarca da Área Metropolitana de Lisboa (AML), parecendo que estava casualmente na rua, espera que o cortejo passe por ele. Mete conversa com uma ex-presidente de Câmara do PS da AML e, de seguida, com outro antigo autarca socialista, igualmente da metrópole lisboeta. O ambiente dos dois diálogos nada tem a ver com a acrimónia acabada de ouvir na Trindade. Aqui olha-se pragmaticamente para o futuro. E a mensagem do lado do PCP é clara: não há razão para precipitações. Há disponibilidade para uma negociação que possa dar ao PS uma maioria parlamentar, algo que os socialistas não deverão obter nas urnas.

Com efeito, as sondagens dão um avanço à coligação de direita, mas apenas com maioria relativa. Juntos, PS, CDU e Bloco terão mais deputados. E a contagem dos votos haveria de confirmar o cenário. No Chiado, do lado do PS, há alguma surpresa ante a oferta comunista. Mas, ceticismo socialista à parte, os dados estão lançados.

Nesse mesmo dia, o Bloco está na zona do Porto. Entre bloquistas e socialistas não há ainda qualquer indício de um acordo da esquerda. A 14 de setembro, no debate na TV com António Costa, Catarina Martins lançara um repto. Se o PS desistisse de três pontos do seu programa (congelamento de pensões, cortes na TSU e regime de despedimento conciliatório), o Bloco veria nisso “um início de conversa” para poder viabilizar um Governo alternativo ao da direita.

Ao longo de duas semanas e meia, a porta-voz do BE repete tal disponibilidade, dezenas de vezes, sem resposta alguma do PS. Nem publicamente nem em privado — garante agora uma fonte bloquista. Um silêncio que visto a esta distância se percebe melhor. Se fosse para dizer “não”, Costa teria fechado logo as portas; e se pensasse ou admitisse dizer “sim”, como veio a verificar-se, teria de ficar calado, para, entre outras coisas, poder continuar a pedir ao país uma maioria absoluta.

A perplexidade sobre uma possível negociação à esquerda atinge o auge no dia 26 de setembro, quando o Expresso intitula em manchete: “Costa chumba governo de direita minoritário”. Sob aquele título acrescenta-se que o líder do PS “confia na maioria de esquerda e na capacidade para fazer acordos”.

nuno botelho

No Bloco descrê-se de tal cenário. E duvida-se mesmo que tenha sido a direção do PS a veicular tal possibilidade. “Não havia qualquer indicação de que isso fosse verdade”, diz agora uma fonte do Bloco. “Até ao final da campanha, não houve qualquer sinal da parte do PS”, acrescenta. De repente, tudo se precipita: “Os primeiros sinais dados pelo PS foram recebidos no sábado, dia de reflexão.” Mas as “garantias não eram suficientes”, pelo que foi necessário “confirmar a sua credibilidade”.

As reservas iniciais rapidamente se desvanecem. De sábado para domingo realizam-se contactos entre figuras dos dois partidos. Ana Catarina Mendes assume que foi nesse dia de reflexão que “o cenário de entendimento foi posto em cima da mesa”. Mas desde pelo menos quarta-feira, 30 de setembro, que ele vinha ganhando vida nos pensamentos de António Costa. Nesse dia, ao saber dos resultados da última sondagem para o Expresso e a SIC, que apontam para uma vitória da PàF mas sem maioria absoluta (37,7%), o líder socialista comenta: “Não é uma boa notícia, mas também não é má.” Por outras palavras, parecia certo que a maioria parlamentar seria à esquerda, e isso era quanto (lhe) bastava naquele momento.

A 3 e 4 de outubro, nuns casos, a iniciativa dos contactos parte do lado do PS; noutros, é do Bloco. Segundo relata agora um dos envolvidos nas conversações, elas foram no máximo do conhecimento de três a quatro pessoas em cada partido. O relacionamento é feito sobretudo por telefone. Naturalmente, nele participam António Costa e Catarina Martins, mas não falam entre si. Há também encontros presenciais.

O que está em cima da mesa é mais do que um entendimento bilateral. Sendo já praticamente certo que dois (sejam quais forem) não bastam para conseguir uma maioria no Parlamento, tudo remete para um acordo a três, que inclua o PCP (que, pelas sondagens, até deveria ser a segunda força mais importante). Jerónimo terá sido contactado por António Costa, mas o líder comunista é perentório: “Não houve contactos formais ou informais com o PS”, garantiu no dia 6 de outubro, no final da reunião do Comité Central.

João Oliveira, que esteve presente em todas as reuniões de negociação, também confirma a versão oficial de que “não houve contactos antes da reunião em que António Costa foi à Soeiro Pereira Gomes” (7 de outubro). E mais: “Não houve troca de opiniões no dia das eleições”, garante o líder da bancada parlamentar. Ao Expresso, o PCP limita-se a dizer que houve “uma solicitação no dia 3 para se estabelecer um contacto que se efetivou no dia 4, dia das eleições, limitado a uma troca de informações por telefone sobre o andamento da noite eleitoral, designadamente quanto ao momento das declarações”.

Ao início da tarde do domingo das eleições, com um princípio de diálogo à esquerda já alinhavado, e sobretudo jogando com essa possibilidade, António Costa mede a temperatura no seu partido. O líder socialista, que um ano antes fora eleito secretário-geral prometendo maioria absoluta nas legislativas, liga a Francisco Assis e aos presidentes das mais influentes distritais do PS para os sondar sobre um possível entendimento com os partidos de esquerda no caso de o PS ganhar as eleições com minoria ou, ainda que perdendo-as, conseguir ter mais deputados do que o PSD. Na noite das eleições, conhecidos os resultados iniciais, o primeiro sinal público de abertura para um entendimento à esquerda é dado na sede do PCP, no Centro Vitória.

Francisco Lopes não tem dúvidas de que a anterior maioria PSD/CDS “perdeu a capacidade de formar Governo” e que a esquerda “conseguirá isolar politicamente” o anterior Executivo. A frase da noite seria dita mais tarde por Jerónimo de Sousa: “O PS só não forma Governo se não quiser.” Os comunistas lançam o isco de que “o PS tem condições para formar Governo” e avançam com a promessa de apresentar uma moção de censura a uma solução governativa liderada por PSD e CDS. Mas a prudência comunista é uma marca de ADN. Jerónimo sublinha que, “a menos que o PS viabilize” um Governo de direita, há uma “alternativa política” à vista. “A vida dirá” o que se irá passar, conclui o líder do PCP, assumindo que “a procissão ainda vai no adro”.

PCP e BE desconcertados com Costa

A poucos metros dos comunistas, do outro lado da Avenida da Liberdade, no Cinema São Jorge, o Bloco assenta arraiais. Um dos responsáveis da campanha comenta a nuance do discurso de Francisco Lopes e desce apressado as escadas, em direção ao camarim onde Catarina Martins prepara o seu discurso, ainda a tempo de garantir a sua adequação ao facto político da noite.

A líder do Bloco, que fala entre Lopes e Jerónimo, deixa “bem claro” que, “se não tiver maioria, não será pelo BE que [a direita] conseguirá formar Governo”. Minutos antes, Mariana Mortágua ainda falara de “uma possível vitória da direita”. Agora, o léxico é corrigido: “A direita perdeu votos e perdeu mandatos.” E se Cavaco empossar PSD e CDS, o BE “vai rejeitar no Parlamento essa hipótese”.

jose carlos carvalho

Não muito longe, na Rua Castilho, no Hotel Altis, António Costa reconhece a derrota. Os apoiantes que o escutam, temendo que a frase seguinte seja a do anúncio da demissão do lugar de secretário-geral do PS, gritam “não”. Eles pede-lhes paciência: “Já vão dizer que sim.” Reitera que o PS “será inteiramente fiel aos compromissos que assumiu perante os eleitores” e que, por isso, “a coligação de direita não poderá contar com ele para viabilizar a prossecução das suas políticas”. E acrescenta: “Ninguém conte connosco para sermos só uma maioria do contra, sem condições para formar um Governo credível e alternativo ao da direita.” O discurso de Costa é recebido com algum agastamento no Bloco, pela sua “ambiguidade”. Ao contrário do que os contactos de véspera e desse próprio dia fariam supor, o líder do PS mantém canais abertos tanto à esquerda como à direita. Já os comunistas sentem o tapete a fugir-lhes debaixo dos pés quando ouvem Costa afirmar que não alinhará em “maiorias do contra”. Dois dias depois das eleições, Carlos César, novo líder parlamentar do PS, reúne-se com os presidentes das federações. Conta-lhes das negociações à esquerda mas, segundo quem lá esteve, sempre num tom de que seriam manobras mais táticas do que efetivas, porque “dificilmente o PCP aceitará um acordo com o PS”. Ficaria claro, ainda assim, que não seria o PS a inviabilizar essa hipótese. Marcos Perestrello, líder da FAUL, discorda da estratégia. José Luís Carneiro, do Porto, e Capoulas Santos, de Évora, expressam reservas sobre a orientação, que admitem arriscada. Pedro Nuno Santos, líder da distrital de Aveiro, Ana Catarina Mendes, presidente da federação de Setúbal, e Luís Testa, de Portalegre, são os maiores entusiastas do que, nessa altura, ainda é apenas e só uma miragem.

Nessa mesma noite, a Comissão Política do PS aprova (com 63 votos a favor, 4 contra e 3 abstenções) o mandato para António Costa poder encetar diálogo com todas as forças políticas, à esquerda e à direita. Horas antes já Cavaco encarregara Pedro Passos Coelho de “desenvolver diligências” para formar um Governo. Passos chama a Costa “líder do maior partido da oposição” e pede ao PS a adoção de uma “cultura de diálogo”. É com este canto da sereia da direita que António Costa (acompanhado de Carlos César e Ana Catarina Mendes, Pedro Nuno Santos e Mário Centeno) entra, ao final da tarde de 7 de outubro, na sede do PCP, na Soeiro Pereira Gomes. O encontro dura cerca de uma hora e meia e, no final, o líder socialista diz que “correu bem” e sublinha que, apesar das diferenças conhecidas, há “pontos de convergência importantes”. Mas é, surpreendentemente, Jerónimo quem vai mais longe. A reunião “produtiva” vai continuar “nos próximos dias” e o líder comunista deixa uma mensagem clara: o PCP está disposto a “viabilizar um Governo do PS”. O acordo da esquerda começa a mover-se de modo notório e aos olhos de todos. Ana Catarina Mendes diria mais tarde, sobre essa reunião, que Jerónimo tinha “vontade de superar-se a si próprio”.

À distância, João Oliveira lembra que este primeiro encontro “acabou por ser o decisivo”. Para surpresa dos socialistas, os comunistas puseram as cartas todas em cima da mesa: assumiram a disponibilidade para viabilizar o Governo socialista. Em contrapartida, queriam “discutir o programa de Governo e a solução alargada e interpartidária na formação” desse mesmo Executivo. Nesta primeira reunião, o PCP não afastou a possibilidade de participar no Governo. A hipótese acabou por cair mais à frente, no caminho das negociações. O importante, na altura, era deixar um sinal claro de que o PS podia, desta vez, contar com os comunistas.

A primeira reunião entre PS e BE só chegará dias depois. O Bloco pretendia um encontro técnico em primeiro lugar; o PS, então a negociar também no tabuleiro da direita, exige uma reunião política. Inicialmente marcado para dia 8, o encontro acaba por se realizar apenas a 12 de outubro, na sede do Bloco, na Rua da Palma. É bastante mais produtivo, com frutos imediatos, do que o mantido seis dias antes, entre socialistas e comunistas.

O que Costa deixara por esclarecer durante quase um mês tem agora uma resposta clara: o PS aceita as três condições colocadas por Catarina Martins na TV. Com uma maratona negocial em perspetiva, socialistas e bloquistas adotam um princípio que os isentará da tarefa de partir muita pedra na mesa negocial: decidem que, logo à partida, constarão do acordo os assuntos em que há convergência dos respetivos programas eleitorais e os temas que votações anteriores no Parlamento demonstraram ser “chão comum”, conta um dos negociadores.

Há sintonia num terceiro aspeto: não figurará no acordo qualquer referência aos pontos sobre os quais venha a ser impossível obter um consenso (ao contrário do que a posição conjunta de PS e PCP viria semanas depois a consagrar).

Comunistas e bloquistas em mesas separadas

Socialistas e comunistas, primeiro; socialistas e bloquistas, depois — estão estabelecidas as bases de duas negociações. Para rematar o triângulo, falta perceber como evoluirá o binómio PCP-BE. Os dois partidos encontram-se no dia 16 de outubro, uma sexta-feira à tarde, no Parlamento.

À saída da reunião dá-se um caso extraordinário. Catarina Martins fala em primeiro lugar. Analisa o estado das relações do Bloco com o PS, mas não dedica uma única palavra ao encontro que acabara de ter. Ninguém lhe coloca essa questão. A seguir intervém Jerónimo de Sousa. Lê uma declaração, na qual só menciona o BE na primeira frase (referindo-se ao encontro). No resto, comenta as negociações com o PS. Também aqui as perguntas colocadas não se desviam um milímetro do tema inicial de conversa.

Há uma razão para que nem Catarina nem Jerónimo mostrem qualquer vontade de falar do que se passara minutos antes: as posições dos dois partidos são diametralmente opostas. Instado a relatar as divergências, um dos presentes na reunião diz apenas: “Houve perspetivas muito diferentes sobre a necessidade de fazer refletir no acordo um debate sobre as questões orçamentais.”

Fontes conhecedoras do processo negocial dão mais pormenores. O Bloco solicitara a reunião para aferir o grau de empenhamento efetivo do PCP na concretização de um acordo à esquerda. E para saber da possibilidade de uma conversação direta com os comunistas .

À semelhança da reunião dos presidentes de federação do PS, também no PCP se está de pé atrás em relação à efetivação de um acordo. Acreditam que ele nunca verá a luz do dia, por uma (ou várias) de três razões: uma divisão do PS; obstáculos colocados por Cavaco Silva; pressões externas, de Bruxelas às agências de rating.

Já quanto a uma negociação direta, os comunistas deixam claro que só a farão com o PS. O que só muito mais tarde seria evidente — a impossibilidade de um acordo tripartido — fica cavado no dia 16 de outubro.

Esta geometria variável entre PS, Bloco e PCP ganha letra de forma dois dias depois. Mas é uma subtileza que passa despercebida e só numa leitura posterior se torna clara. A 18 de outubro, um domingo, reúne-se a Mesa Nacional do Bloco. Na resolução política, distinguem-se dois comprimentos de onda: “O prosseguimento das negociações com o PS com vista à consagração, no programa de Governo”, por um lado, e “o prosseguimento do diálogo com o PCP sobre o processo de negociações com o PS”, por outro. Para bom entendedor...

Não é a única decisão cifrada no comunicado: ele é omisso sobre os termos da negociação com o PS. O facto mais relevante da reunião só é destapado na conferência de imprensa. Então, Catarina Martins afirma aos jornalistas que a Mesa Nacional “aprovou por unanimidade a ratificação do mandato da equipa negocial do Bloco para as negociações de um Governo que proteja empregos, salários e pensões”.

Antes, na reunião, em relação a cada ponto passível de figurar num acordo, a porta-voz do Bloco apresentara o ponto de partida da negociação e o limite até onde o BE admitia ceder. A aprovação meramente verbal foi considerada pelos bloquistas a melhor forma de preservar uma informação que se fosse divulgada iria ser mais um grão de areia no espinhoso caminho da esquerda.

A semana de todas as vertigens

Com partidas desencontradas, as duas negociações bilaterais (PS-Bloco e PS-PCP) avançam a velocidades diferentes. Há grande atenção mediática sobre cada uma das reuniões entre os vários partidos, mas ocorrem alguns encontros longe dos olhares dos jornalistas, tanto nas sedes partidárias como no Parlamento.

Na última semana antes da assinatura do acordo, a primeira de novembro, jogam-se todas as decisões. Num ambiente em que é preciso juntar as pontas, os ânimos até começam por ficar mais inflamados logo no dia 1, um domingo.

jorge ferreira

Uma entrevista de Catarina Martins ao “Diário de Notícias” incendeia os ânimos. Um pouco no PS, onde criticam um “excesso de protagonismo”, mas sobretudo no PCP. Por um lado, a líder do Bloco é vista como alguém que gosta de aparecer a dar as boas notícias — “Há acordo à esquerda, as pensões vão ser todas descongeladas”, intitula o “DN” na primeira página —, algo que irrita os parceiros da esquerda. A tampa salta mesmo aos comunistas quando Catarina afirma: “Seria demagógica se dissesse que acredito que seria possível ter [um salário mínimo de] 600 euros em 2016.”

“Demagógica” passa assim a ser a proposta do PCP, que defendia tal valor. E “demagógica” passa também a ser uma das promessas eleitorais do Bloco, que se apresentara às legislativas com a mesmíssima medida no programa.

O mal-estar entre bloquistas e comunistas, que haveria de ter novos episódios no fim de semana seguinte, não impede Catarina Martins de entrar na Soeiro Pereira Gomes, a sede do PCP, poucos dias depois, a 4 de novembro. Foi um dos vários encontros que envolveram líderes partidários que passou despercebido até hoje. A única referência fê-la o Expresso no sábado seguinte, mas ainda com poucos pormenores.

A meio da manhã, numa altura em que o bar está cheio de gente, alguns militantes e funcionários do PCP veem com surpresa a chegada da porta-voz do Bloco, acompanhada por outro membro do partido. Segundo fonte oficial do Bloco, a reunião foi pedida por Jerónimo de Sousa, e pretendia-se que decorresse com discrição. Já o PCP dá uma versão diferente em relação àquele encontro: a iniciativa partiu do BE e ocorreu no dia 5 (e não 4).

Na Soeiro, Catarina informa os comunistas sobre o estado das conversações com o PS, já concluídas em relação às medidas a inscrever no documento final. Os comunistas percebem que o Bloco vai assinar o acordo com os socialistas e que não lhes resta outra saída se não entenderem-se também com o PS. O tempo urge. O fim de semana está a chegar e para ele estão marcadas as reuniões de PCP e PS (Comité Central, no primeiro caso; Comissão Política e Conselho Nacional, no segundo), às quais as respetivas direções têm de submeter a ratificação do texto aprovado entre ambas (e, no caso do PS, também com o BE e Os Verdes).

Um filtro que a direção do Bloco já não enfrenta, pois tem um mandato da Mesa Nacional. Se os ecos da entrevista de Catarina Martins ao “DN” tiveram réplicas na reunião que manteve com Jerónimo de Sousa na sede do PCP é algo que o Expresso não conseguiu apurar. Nessa mesma noite de 4 de novembro, a líder do Bloco é entrevistada na SIC. Para os comunistas tem palavras de mel. Questionada sobre o facto de o PCP negociar só com o PS, Catarina responde: “Se há uma coisa em que eu tenho toda a confiança e certeza é que o PCP será o defensor de parar o ciclo de empobrecimento do país.” E vai mais longe, metendo comunistas e bloquistas no mesmo campo, numa alusão à soma dos votos dos dois partidos: “Um milhão de pessoas são os obreiros de uma nova solução de Governo.” Praticamente à mesma hora, pela segunda vez neste processo, António Costa vai à sede do PCP, onde de manhã estivera Catarina. O líder do PS passara uns dias de férias em Itália, deixando Carlos César na condução das negociações, e foi no estrangeiro que soube das dificuldades persistentes entre socialistas e comunistas. A ida de Costa à Soeiro, entre outras coisas para um cara a cara com Jerónimo, é uma das formas de desbloquear o impasse.

No dia 5, quinta-feira, o prazo para conseguir um acordo da esquerda aproxima-se do fim. Nas segunda e terça-feira seguintes é discutido e votado o programa do segundo Executivo de Pedro Passos Coelho. Se PS, Bloco e PCP não se entenderem antes disso, os socialistas não chumbam o Governo.

Encontro secreto... no largo do Rato

É nessa quinta-feira que António Costa e Catarina Martins se encontram mais uma vez, num encontro no Largo do Rato até agora mantido em segredo.

Com a hipótese de um acordo subscrito a três (ou a quatro, com Os Verdes) já desde há muito descartada, socialistas e bloquistas debatem a “simetria” dos textos. Para o Bloco, sobretudo, trata-se de “uma questão crucial” — a simetria iria garantir um grau de responsabilização igual para todos. Ainda que preâmbulos e anexos pudessem assumir forma distinta em cada “posição conjunta”, o elenco de medidas objeto de entendimento teria de ser o mesmo para todos.

É já depois desta reunião que se reúne a Comissão Política do Bloco, ainda na noite de 5 de novembro. Catarina informa os seus pares dos últimos desenvolvimentos do processo, entre os quais os encontros mantidos com Jerónimo, uma surpresa para quase todos, e com Costa. A Comissão Política dá luz verde às medidas já acordadas com o PS para viabilizar o Governo e, sobretudo, o OE. Ficam também assentes os termos do acordo político, mas não a aprovação formal do mesmo. A ratificação final só terá lugar depois de socialistas e comunistas acertarem as suas agulhas.

Não foi à primeira que BE e PCP aceitaram, já na reta final das negociações, a versão que o PS lhes apresentou, com uma referência aos “compromissos com as regras europeias”, formulação que os dois partidos à esquerda do PS chumbaram.

Noutro caso, no vaivém de e-mails com o elenco de medidas sectoriais passíveis de acordo, os socialistas acabam por fazer sair à luz do dia propostas que nem sequer haviam sido discutidas ou eram desejadas pela outra parte. Naturalmente, foram devolvidas à origem e expurgadas do documento final. No dia da queda do segundo Governo de Passos Coelho, o acordo está feito. Mas ninguém sabe onde, quando e por quem será assinado. A exigência partiu dos comunistas, que recusam uma cerimónia conjunta e a presença de jornalistas. “Na nossa perspetiva, a discussão foi bilateral, não fazia sentido uma assinatura coletiva”, diz João Oliveira. “Não queríamos uma encenação, não víamos vantagem nisso”, acrescenta. Face à posição do PCP, o BE faz uma exigência: ser o último a assinar, por ter a bancada mais numerosa. João Oliveira acompanha Jerónimo à Sala Europa, do PS, mas só o secretário-geral assina: e é o primeiro dos parceiros de António Costa a rubricar a posição conjunta. São 14h34 de 10 de novembro, poucas horas antes da queda do Governo de Passos.

Seguem-se, quatro minutos depois, Os Verdes, representados por Heloísa Apolónia e Manuela Cunha. Por fim, chega a vez do Bloco. Num protocolo improvisado, com convocatórias em cima da hora, Catarina Martins telefona a Pedro Filipe Soares, para que este a acompanhe. Mas o líder parlamentar está nesse momento no refeitório, num almoço de trabalho, já marcado. Não tem como sair da sala. E, como não faz questão de ser ele a assinar o acordo, avança Jorge Costa, um dos vice-presidentes da bancada. É então selada a terceira posição conjunta que vai viabilizar um Governo do PS apoiado pela restante esquerda.

Ao fim de 34 dias de negociações, o folhetim termina às 14h42 do dia 10 de novembro de 2015. É nesse momento, ainda sem conhecer o nome que a há de celebrizar (via Paulo Portas, a partir de uma crónica de Vasco Pulido Valente), que a “geringonça” ganha pernas para andar. Fez 100 dias na última quinta-feira.

(Artigo originalmente publicado na edição 2264, de 20 de fevereiro de 2016)

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