Câmara Corporativa: «A política portuguesa corre o risco de se tornar num gigantesco calvinbol»

24-03-2020
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• Pedro Adão e Silva, A POLÍTICA CALVINBOL [hoje no Expresso]:«O leitor familiarizado com o universo de Calvin e Hobbes conhecerá o Calvinbol. Uma modalidade praticada por uma criança e o seu tigre de peluche, que assenta num princípio: as regras vão sendo alteradas à medida que o jogo decorre. Aliás, há uma única regra permanente — nenhuma regra pode ser usada duas vezes e todas as alterações têm de ser aceites por todos os jogadores. Esta opção quanto a regulamentos tem consequências, o calvinbol distingue-se de todos os outros desportos por cada jogo ser irrepetível, com possibilidades infinitas, já que nenhuma jogada se repete. A instabilidade formal é uma garantia contra o aborrecimento. Com regras imprevisíveis, os comportamentos serão sempre instáveis. Curiosamente, uma rápida investigação sobre a modalidade criada por Bill Watterson revela-nos outros aspetos interessantes. Desde logo, quanto à génese do desporto. Embora a doutrina não seja clara, aparentemente o calvinbol surgiu quando um conjunto de praticantes (isto é, Calvin e Hobbes) estava farto dos desportos organizados. Aliás, o momento fundador terá sido o dia em que Calvin se viu excluído de um jogo de basebol. Talvez tenha sido uma fuga em frente, mas uma coisa é certa, em torno da modalidade há hoje uma ambição de grande alcance — "mais cedo ou mais tarde, todos os desportos se transformarão em calvinbol". O leitor mais familiarizado com a política portuguesa dos últimos tempos já deverá ter percebido onde quero chegar. Infelizmente, sem a sofisticação intelectual e o cinismo exuberante do Calvin, a política portuguesa corre o risco de se tornar num gigantesco calvinbol. Não passa uma semana sem que tenhamos alguns exemplos de como os princípios básicos da modalidade se insinuam sorrateiramente na vida política. O Governo não se cansa de inovar, tentando todas as semanas reescrever as regras do jogo democrático-constitucional. Umas vezes propondo alterar a forma de recrutamento dos juízes do Constitucional, outras mudando o seu escrutínio, ainda outras modificando a própria Constituição e até sugerindo a extinção do Tribunal Constitucional. Salta aos olhos de toda a gente que este catavento regulamentar serve para criar uma cortina de fumo para contornar as derrotas. Tal como o Calvin faz. Mas também uma direção do PS ainda em exercício que se entrincheirou num bunker estatutário do qual ameaça não sair. Face a uma derrota política anunciada, alteram-se as regras do jogo, inovando — não vá alguém enfadar-se com o modo administrativo de fazer as coisas — e torna-se o presente imprevisível e o futuro incerto. Tal como o Calvin faz. Desculpem-me o anticalvinismo momentâneo. Há, hoje, um desejo partilhado por muitos portugueses: ter um quotidiano previsível. Se a política continuar nesta imparável deriva para o calvinbol, de uma coisa podem ter a certeza, os portugueses mudarão a política.»


• Pedro Adão e Silva, A POLÍTICA CALVINBOL [hoje no Expresso]:«O leitor familiarizado com o universo de Calvin e Hobbes conhecerá o Calvinbol. Uma modalidade praticada por uma criança e o seu tigre de peluche, que assenta num princípio: as regras vão sendo alteradas à medida que o jogo decorre. Aliás, há uma única regra permanente — nenhuma regra pode ser usada duas vezes e todas as alterações têm de ser aceites por todos os jogadores. Esta opção quanto a regulamentos tem consequências, o calvinbol distingue-se de todos os outros desportos por cada jogo ser irrepetível, com possibilidades infinitas, já que nenhuma jogada se repete. A instabilidade formal é uma garantia contra o aborrecimento. Com regras imprevisíveis, os comportamentos serão sempre instáveis. Curiosamente, uma rápida investigação sobre a modalidade criada por Bill Watterson revela-nos outros aspetos interessantes. Desde logo, quanto à génese do desporto. Embora a doutrina não seja clara, aparentemente o calvinbol surgiu quando um conjunto de praticantes (isto é, Calvin e Hobbes) estava farto dos desportos organizados. Aliás, o momento fundador terá sido o dia em que Calvin se viu excluído de um jogo de basebol. Talvez tenha sido uma fuga em frente, mas uma coisa é certa, em torno da modalidade há hoje uma ambição de grande alcance — "mais cedo ou mais tarde, todos os desportos se transformarão em calvinbol". O leitor mais familiarizado com a política portuguesa dos últimos tempos já deverá ter percebido onde quero chegar. Infelizmente, sem a sofisticação intelectual e o cinismo exuberante do Calvin, a política portuguesa corre o risco de se tornar num gigantesco calvinbol. Não passa uma semana sem que tenhamos alguns exemplos de como os princípios básicos da modalidade se insinuam sorrateiramente na vida política. O Governo não se cansa de inovar, tentando todas as semanas reescrever as regras do jogo democrático-constitucional. Umas vezes propondo alterar a forma de recrutamento dos juízes do Constitucional, outras mudando o seu escrutínio, ainda outras modificando a própria Constituição e até sugerindo a extinção do Tribunal Constitucional. Salta aos olhos de toda a gente que este catavento regulamentar serve para criar uma cortina de fumo para contornar as derrotas. Tal como o Calvin faz. Mas também uma direção do PS ainda em exercício que se entrincheirou num bunker estatutário do qual ameaça não sair. Face a uma derrota política anunciada, alteram-se as regras do jogo, inovando — não vá alguém enfadar-se com o modo administrativo de fazer as coisas — e torna-se o presente imprevisível e o futuro incerto. Tal como o Calvin faz. Desculpem-me o anticalvinismo momentâneo. Há, hoje, um desejo partilhado por muitos portugueses: ter um quotidiano previsível. Se a política continuar nesta imparável deriva para o calvinbol, de uma coisa podem ter a certeza, os portugueses mudarão a política.»

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