Contos da Rosa

24-03-2020
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Entrei no ônibus intermunicipal que me levaria a uma
cidade interiorana. Sentei e me preparei para uma viagem de muitas horas. Era
um dia de inverno tipicamente gaúcho e fazia um frio de gelar os ossos. No
entanto, a temperatura interna estava agradável.

Tirei da bolsa um livro de suspense, para me fazer
companhia e também para enganar o tempo, fazendo o trajeto ficar mais curto.

Os passageiros foram se acomodando e ninguém apareceu
para sentar na poltrona ao meu lado. Tanto melhor, faria minha leitura
sossegada, sem distrações.

Eu já sorria satisfeita por ver que viajaria sozinha sem
ninguém na poltrona ao lado, quando escutei sons arrastados no corredor. Fiquei
torcendo para que a pessoa passasse reto pelo meu lugar, mas o retardatário
sentou-se ao meu lado. Suspirei. Educadamente olhei para cumprimentar e senti
na hora um inexplicável arrepio. Uma mulher. Uma jovem senhora, dona de um
semblante sombrio e ao mesmo tempo sereno. Ela retribuiu meu cumprimento com
uma inclinação de cabeça e o esforço de uma tentativa de sorriso. Reparei em
suas mãos vazias. Achei estranho ela não ter nenhuma bolsa, nem mesmo uma mala
pequena. Talvez já tivesse colocado tudo no bagageiro, concluí. Existem pessoas
esquisitas no mundo, pensei na hora. Eu também tinha as minhas
esquisitices.  

— O lugar 27 é meu — disse ela com firmeza, apontando
para a poltrona da janela onde eu me encontrava.

Seu tom de voz e seu modo seguro de falar me fizeram
levantar e ceder-lhe o lugar. Eu tinha certeza que o assento era meu. Bastava
pegar meu comprovante e mostrar-lhe. Mas resolvi não criar caso. Assim, sem
dizer nada, levantei e deixei que ela sentasse na janela.

Enquanto recolocava meu cinto de segurança, reparei que a
mulher tinha uma pele muito clara, como se nunca tivesse ficado ao sol. Usava
brincos e colar de pérolas. Trajava uma roupa escura e tinha um semblante
triste. Um rosto difícil de esquecer, sem dúvida.

Peguei meu livro, recostei-me bem e preparei-me para uma
viagem sem maiores surpresas. A jovem senhora fechou os olhos e dormiu todo o
trajeto até o local onde faríamos uma parada de meia hora, como se estivesse
muito cansada. Depois disso, novamente em curso, ela começou a conversar
comigo. No início não demonstrei muito interesse em ouvi-la, mas alguma coisa
nela fez com que eu desistisse da leitura e ficasse atenta a tudo o que me
dizia. Fez um relato de sua vida, detalhando muitas tristezas e sofrimentos,
conseguindo a cada palavra minha total atenção.

Ela me disse que fugira de casa com seu grande amor, há
dez anos, numa viagem num ônibus como aquele, levando muita dor no coração por
ter deixado sua família. Seus pais não aceitavam seu romance por ele ser bem
mais jovem que ela. Então, nada mais lhe restara fazer, a não ser ir embora.
Sua vida não seria fácil, porém, tomara uma decisão sem volta. Partiu sem levar
bagagem, somente com a roupa do corpo.

De vez em quando eu olhava para a mulher em sinal de
solidariedade. Mas nada falei.

— Não sinto as minhas mãos — ela disse — esfregando os
dedos longos uns nos outros.

A mulher devia ser friorenta, pois estava até quentinho
dentro do ônibus.

Abri a boca para dizer-lhe isso e comentar algo a
respeito, quando finalmente chegamos.

Levantei e puxei minha mochila do compartimento superior
de bagagem. E, então, algo espantoso aconteceu. A mulher desaparecera! Não
estava mais na poltrona! Sumira! Senti um calafrio na espinha, sem entender
como aquilo seria possível. Eu tinha ficado em pé, na frente da poltrona, para
pegar a mochila, não havia como ela ter saído sem esbarrar em mim. Impossível!
Olhei para os lados, observando as pessoas se levantando e pegando seus
objetos, sem compreender como a mulher tinha saído de forma tão repentina. 

Impactada, mas ainda achando que a mulher estivesse
dentro do ônibus, desci e fiquei esperando todos saírem para me despedir da
jovem senhora. Mas ela não desceu.

Aquilo era esquisito demais. Ela não poderia ter descido
sem eu ter visto. Uma sensação incômoda tomou conta de mim.

Perguntei a duas pessoas de poltronas próximas se tinham
visto a mulher sentada ao meu lado e fiquei ainda mais cismada ao me olharem
como se eu perguntasse algo insano. Disseram que não tinham visto ninguém
comigo, pois eu viajara sozinha.

Como assim, sozinha? E a senhora sentada ao meu lado
durante toda a viagem? Fiquei atônita e fui perguntando aos passageiros que
ainda estavam por ali se tinham visto e ninguém sabia dizer nada. Nem mesmo o
motorista lembrava de uma passageira ter chegado atrasada. Falei de suas
características físicas e... nada. Não tinha visto. 

Deixei a rodoviária sem entender nada, pensando em tudo o
que ela me contara. Dei-me conta que sequer sabia seu nome. Nunca acreditei em
fantasmas, almas que assombram ou coisa do tipo, mas para meu próprio bem-estar
eu precisava descobrir quem era aquela pessoa que viajara ao meu lado e depois
desaparecera.

Fui pesquisar na internet e para meu espanto descobri que
ocorrera um grave acidente de ônibus, há dez anos, vitimando todos os
passageiros ao cair de uma ponte, sendo a morte de dois deles a mais trágica,
pois seus corpos foram partidos ao meio e suas mãos decepadas do corpo,
encontradas distante do local, entrelaçadas. Havia uma foto da mulher e do
homem ... e ela era a mesma pessoa que viajara comigo.

Tremendo por dentro, decidi que nunca mais viajaria na
poltrona 27.                    

Entrei no ônibus intermunicipal que me levaria a uma
cidade interiorana. Sentei e me preparei para uma viagem de muitas horas. Era
um dia de inverno tipicamente gaúcho e fazia um frio de gelar os ossos. No
entanto, a temperatura interna estava agradável.

Tirei da bolsa um livro de suspense, para me fazer
companhia e também para enganar o tempo, fazendo o trajeto ficar mais curto.

Os passageiros foram se acomodando e ninguém apareceu
para sentar na poltrona ao meu lado. Tanto melhor, faria minha leitura
sossegada, sem distrações.

Eu já sorria satisfeita por ver que viajaria sozinha sem
ninguém na poltrona ao lado, quando escutei sons arrastados no corredor. Fiquei
torcendo para que a pessoa passasse reto pelo meu lugar, mas o retardatário
sentou-se ao meu lado. Suspirei. Educadamente olhei para cumprimentar e senti
na hora um inexplicável arrepio. Uma mulher. Uma jovem senhora, dona de um
semblante sombrio e ao mesmo tempo sereno. Ela retribuiu meu cumprimento com
uma inclinação de cabeça e o esforço de uma tentativa de sorriso. Reparei em
suas mãos vazias. Achei estranho ela não ter nenhuma bolsa, nem mesmo uma mala
pequena. Talvez já tivesse colocado tudo no bagageiro, concluí. Existem pessoas
esquisitas no mundo, pensei na hora. Eu também tinha as minhas
esquisitices.  

— O lugar 27 é meu — disse ela com firmeza, apontando
para a poltrona da janela onde eu me encontrava.

Seu tom de voz e seu modo seguro de falar me fizeram
levantar e ceder-lhe o lugar. Eu tinha certeza que o assento era meu. Bastava
pegar meu comprovante e mostrar-lhe. Mas resolvi não criar caso. Assim, sem
dizer nada, levantei e deixei que ela sentasse na janela.

Enquanto recolocava meu cinto de segurança, reparei que a
mulher tinha uma pele muito clara, como se nunca tivesse ficado ao sol. Usava
brincos e colar de pérolas. Trajava uma roupa escura e tinha um semblante
triste. Um rosto difícil de esquecer, sem dúvida.

Peguei meu livro, recostei-me bem e preparei-me para uma
viagem sem maiores surpresas. A jovem senhora fechou os olhos e dormiu todo o
trajeto até o local onde faríamos uma parada de meia hora, como se estivesse
muito cansada. Depois disso, novamente em curso, ela começou a conversar
comigo. No início não demonstrei muito interesse em ouvi-la, mas alguma coisa
nela fez com que eu desistisse da leitura e ficasse atenta a tudo o que me
dizia. Fez um relato de sua vida, detalhando muitas tristezas e sofrimentos,
conseguindo a cada palavra minha total atenção.

Ela me disse que fugira de casa com seu grande amor, há
dez anos, numa viagem num ônibus como aquele, levando muita dor no coração por
ter deixado sua família. Seus pais não aceitavam seu romance por ele ser bem
mais jovem que ela. Então, nada mais lhe restara fazer, a não ser ir embora.
Sua vida não seria fácil, porém, tomara uma decisão sem volta. Partiu sem levar
bagagem, somente com a roupa do corpo.

De vez em quando eu olhava para a mulher em sinal de
solidariedade. Mas nada falei.

— Não sinto as minhas mãos — ela disse — esfregando os
dedos longos uns nos outros.

A mulher devia ser friorenta, pois estava até quentinho
dentro do ônibus.

Abri a boca para dizer-lhe isso e comentar algo a
respeito, quando finalmente chegamos.

Levantei e puxei minha mochila do compartimento superior
de bagagem. E, então, algo espantoso aconteceu. A mulher desaparecera! Não
estava mais na poltrona! Sumira! Senti um calafrio na espinha, sem entender
como aquilo seria possível. Eu tinha ficado em pé, na frente da poltrona, para
pegar a mochila, não havia como ela ter saído sem esbarrar em mim. Impossível!
Olhei para os lados, observando as pessoas se levantando e pegando seus
objetos, sem compreender como a mulher tinha saído de forma tão repentina. 

Impactada, mas ainda achando que a mulher estivesse
dentro do ônibus, desci e fiquei esperando todos saírem para me despedir da
jovem senhora. Mas ela não desceu.

Aquilo era esquisito demais. Ela não poderia ter descido
sem eu ter visto. Uma sensação incômoda tomou conta de mim.

Perguntei a duas pessoas de poltronas próximas se tinham
visto a mulher sentada ao meu lado e fiquei ainda mais cismada ao me olharem
como se eu perguntasse algo insano. Disseram que não tinham visto ninguém
comigo, pois eu viajara sozinha.

Como assim, sozinha? E a senhora sentada ao meu lado
durante toda a viagem? Fiquei atônita e fui perguntando aos passageiros que
ainda estavam por ali se tinham visto e ninguém sabia dizer nada. Nem mesmo o
motorista lembrava de uma passageira ter chegado atrasada. Falei de suas
características físicas e... nada. Não tinha visto. 

Deixei a rodoviária sem entender nada, pensando em tudo o
que ela me contara. Dei-me conta que sequer sabia seu nome. Nunca acreditei em
fantasmas, almas que assombram ou coisa do tipo, mas para meu próprio bem-estar
eu precisava descobrir quem era aquela pessoa que viajara ao meu lado e depois
desaparecera.

Fui pesquisar na internet e para meu espanto descobri que
ocorrera um grave acidente de ônibus, há dez anos, vitimando todos os
passageiros ao cair de uma ponte, sendo a morte de dois deles a mais trágica,
pois seus corpos foram partidos ao meio e suas mãos decepadas do corpo,
encontradas distante do local, entrelaçadas. Havia uma foto da mulher e do
homem ... e ela era a mesma pessoa que viajara comigo.

Tremendo por dentro, decidi que nunca mais viajaria na
poltrona 27.                    

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