A vez da Maria

04-01-2020
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(Ismael Nery)

Olharam-se de relance e prosseguiram o seu caminho em passo menos célere. Estacaram, ambas. 

Quando retrocederam, os olhos brilhavam no reconhecimento das adolescentes de outrora.

Clara?

Maria?

Um abraço imenso com mais de quarenta anos de premeio quase as deixava sem fôlego. 

Depois. Depois, foi uma catadupa de palavras, com risos e lágrimas à mistura, que não era para menos, caramba. Tantos anos! Tanta vida! 

Em comum, tinham o frio da camarata, os joelhos azulados dos bancos corridos da capela, os livros de banda desenhada e as fotonovelas dissimuladas pelos livros escolares na sala de estudo, os ralhetes das freiras pelas conversas nas aulas de religião e moral (valeram-lhes um Suf.- a destoar do Muito Bom de todas as outras) e o castigo quando as apanharam em flagrante a espreitarem pela janela, em poses de crescidas, para os rapazes do externato. Ah! Mas também houvera os fins de semana na casa uma da outra, metidas na mesma cama, na treta, até de madrugada; os segredos partilhados das paixões assolapadas, embora platónicas; os cigarros roubados em casa e fumados no meio dos arbustos, a que se seguia uma boa esfregadela de dentes com casca de laranja, não fosse o cheiro denunciá-las; as roupas trocadas; os batôns e os lápis dos olhos comprados em comum e, acima de tudo, o calor de uma amizade imensa, cortada abruptamente pela morte do pai de Clara, que a levara a abandonar o colégio e a partir para a Austrália com a mãe.

(Ismael Nery)

Olharam-se de relance e prosseguiram o seu caminho em passo menos célere. Estacaram, ambas. 

Quando retrocederam, os olhos brilhavam no reconhecimento das adolescentes de outrora.

Clara?

Maria?

Um abraço imenso com mais de quarenta anos de premeio quase as deixava sem fôlego. 

Depois. Depois, foi uma catadupa de palavras, com risos e lágrimas à mistura, que não era para menos, caramba. Tantos anos! Tanta vida! 

Em comum, tinham o frio da camarata, os joelhos azulados dos bancos corridos da capela, os livros de banda desenhada e as fotonovelas dissimuladas pelos livros escolares na sala de estudo, os ralhetes das freiras pelas conversas nas aulas de religião e moral (valeram-lhes um Suf.- a destoar do Muito Bom de todas as outras) e o castigo quando as apanharam em flagrante a espreitarem pela janela, em poses de crescidas, para os rapazes do externato. Ah! Mas também houvera os fins de semana na casa uma da outra, metidas na mesma cama, na treta, até de madrugada; os segredos partilhados das paixões assolapadas, embora platónicas; os cigarros roubados em casa e fumados no meio dos arbustos, a que se seguia uma boa esfregadela de dentes com casca de laranja, não fosse o cheiro denunciá-las; as roupas trocadas; os batôns e os lápis dos olhos comprados em comum e, acima de tudo, o calor de uma amizade imensa, cortada abruptamente pela morte do pai de Clara, que a levara a abandonar o colégio e a partir para a Austrália com a mãe.

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