Semióticas

16-12-2019
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O
aprofundamento da intuição leva naturalmente 

o
indivíduo a um grande afastamento da realidade 

palpável,
de modo a tornar-se completo enigma até 

para
as pessoas mais chegadas. Se for artista, 

apresentará
na sua arte coisas extraordinárias, 

estranhas
ao mundo, reluzentes em todas as 

cores,
ao mesmo tempo importantes e banais, 

belas
e grotescas, sublimes e ridículas. 

–– Carl
Gustav Jung em “Tipos psicológicos”.   

 

Autor
de clássicos absolutos como "Vestido de Noiva" e "Toda
Nudez Será Castigada", Nelson Rodrigues (1912-1980), que
completaria 100 anos no dia 23 de agosto, é uma unanimidade como
maior nome do teatro moderno brasileiro e maior dos nossos cronistas
esportivos, além de ter passado à história como um dos maiores
polemistas do Brasil do século 20. Um destaque que, por certo,
desmente ou, no mínimo, abre exceções para um dos muitos bordões
consagrados pelo próprio Nelson, que gostava de repetir: “Não sou
um escritor unânime, porque toda unanimidade é burrice”.

Além
de seu lugar de destaque no panteão da dramaturgia e da crônica
esportiva, foi também consagrado como autor de frases que ganharam o
imaginário nacional e como ficcionista, especialmente com suas
histórias populares publicadas primeiro na imprensa, a exemplo das
centenas de contos reunidos sob os títulos "Confissões"
e "A Vida como Ela É", ou em romances como "Asfalto
Selvagem", “Meu Destino é Pecar” e "O
Casamento". Sobre a trajetória de Nelson Rodrigues, também
jornalista nascido em uma família de jornalistas, muito já foi
escrito – em especial por Ruy Castro, na polêmica biografia "O
Anjo Pornográfico" (Companhia das Letras). 

Ao
relatar a vida do jornalista e escritor – que nasceu em Recife, em
1912, quinto de 14 irmãos, e mudou-se com a família para o Rio de
Janeiro em 1916 – Ruy Castro revela algumas tragédias na
trajetória de Nelson e uma sucessão espantosa de ocorrências
dramáticas, com muito mais risos e lágrimas do que qualquer uma das
conhecidas histórias burlescas do autor, todas recheadas com as mais
variadas obsessões sobre sexo e morte. Nelson Rodrigues teve uma
biografia que é, no mínimo, incomum. Nasceu em uma família de
jornalistas e seu pai, Mário Rodrigues, fundou na década de 1920 o
jornal carioca "A Manhã". Seu irmão, Mário Filho, também
celebrado como um dos principais cronistas esportivos do Brasil, foi
homenageado com a criação do estádio do Maracanã.

Desde
a infância o futuro cronista e dramaturgo, como ele mesmo
disse, certa vez, viu o mundo pelo "buraco da
fechadura". Sua infância e adolescência são pontuadas
por episódios bizarros: entre eles, a morte de um dos irmãos,
Roberto, assassinado na redação do jornal. Com a Revolução de
1930, o jornal da família é embargado. Nos anos seguintes, o
jovem Nelson passa a escrever crônicas policiais e sobre futebol,
depois investe na criação de peças teatrais. Tudo, segundo ele
mesmo, tão somente para "pagar o leite das crianças".

O
próprio Nelson Rodrigues demorou anos para percebeu o valor real de
suas crônicas e peças, mas seu centenário terá, ao que tudo
indica, comemorações em pompa e circunstância, com novas montagens
nos palcos do eixo Rio-São Paulo e um programa da Funarte para
tradução da íntegra de suas 17 peças para o espanhol e o inglês.
Há também uma nova versão nos cinemas de “Bonitinha, Mas
Ordinária” com direção de Moacyr Góes e com Leandra Leal e João
Miguel no elenco, uma grande exposição itinerante sobre a
carreira do dramaturgo nas sedes do Instituto Itaú Cultural e a
reformulação do site oficial (clique aqui para visitar),
que passará a ter em destaque o tópico “Nelson por Ele Mesmo”,
com trechos de entrevistas e crônicas, a maioria ainda inédita em
livro.

No
cenário literário, entretanto, há controvérsias. Sônia
Rodrigues, filha do escritor e gestora do site oficial, prepara o
lançamento da autobiografia póstuma “Nelson Rodrigues por Ele
Mesmo” (Nova Fronteira). No livro, a voz do escritor surge em
trechos de entrevistas e relatos pessoais em que Nelson cada uma de
suas peças e apresenta suas ideias personalíssimas sobre o Brasil e
os brasileiros, enquanto investe contra o divórcio, contra a
imoralidade e o que mais o incomodava na sociedade.

Nelson
Rodrigues Filho: livro sobre a relação

com
o pai nos tempos da ditadura militar.

Abaixo,
Luís Augusto Fischer, autor de

Inteligência
com dor, livro que aborda

as
crônicas e a vertente ensaística na

extensa
produção de Nelson Rodrigues

Nelsinho,
outro filho, também prepara um livro: "Nelson Rodrigues – Pai
e filho", sobre a relação entre eles, em especial durante a
ditadura militar, quando o pai conservador viveu agoniado com o filho
esquerdista mantido na prisão pelos militares por quase oito anos.
Outros lançamentos e relançamentos, entretanto, ainda não foram
confirmados, por conta principalmente de desentendimentos entre os
herdeiros e a editora Nova Fronteira, que atualmente detém os
direitos de publicação.  

 

Nelson,
o Pensador

Nelson
teve seis filhos: Joffre (morto em 2010) e Nelsinho, de seu casamento
com Elza Bretanha; Maria Lúcia, Sonia e Paulo César, do casamento
com Yolanda; e Daniela, com Lúcia. Hoje, os herdeiros, que
já viveram uma trajetória de muitos impasses decorrentes
de brigas sérias, até conseguem se reunir, mas há divergências
sobre a cessão de direitos autorais para novas montagens, reedições
ou publicação dos textos inéditos. Mais de mil crônicas de Nelson
ainda não foram publicadas em livro. 

 

 

Entre
tantas homenagens, há também as novas facetas que vêm reforçar o
mito do dramaturgo e cronista de primeira grandeza. Uma delas foi
proposta e defendida por um especialista: segundo o escritor e
jornalista Luís Augusto Fischer, professor de literatura na UFRGS e
doutor em Nelson Rodrigues, as crônicas do autor de "Vestido de
Noiva" provam que ele foi, além de tudo, um dos grandes
pensadores do Brasil.

Em
seu mais recente livro, "Inteligência com Dor - Nelson
Rodrigues Ensaísta", lançamento da editora gaúcha
Arquipélago, Fischer analisa as crônicas do autor reunidas sob o
título "Confissões" (publicadas em livros como "O
Óbvio Ululante", "A Cabra Vadia", "O
Reacionário", "A Menina Sem Estrela" e "O
Remador de Ben-Hur", entre outros) para defender a tese: Nelson
Rodrigues não era apenas cronista, mas também um pensador e
ensaísta de primeira grandeza.

Para
Fischer, o autor de “Toda Nudez Será Castigada” marcou época no
Brasil do século 20 como uma espécie de Michel de Montaigne (1533-1592), em referência ao escritor francês considerado o fundador do gênero ensaio e filósofo das instituições e dos costumes sociais. Autor da antologia em tom de ironia "Dicionário de Porto-Alegrês", dos ensaios
"Literatura Brasileira – Modos de Usar" e "Machado e
Borges", além da premiada novela "Quatro Negros",
Fischer se debruçou sobre as crônicas de Nelson Rodrigues com a
intenção de estudá-las dentro da tradição do ensaio. Sua tese,
controversa para alguns, foi defendida no doutorado da UFRGS e agora
ganhou nova versão para o formato livro.

Montaigne
do Brasil

O
pai da ideia do estudo, revela Fischer, foi o jornalista, roteirista
e professor de cinema Aníbal Damasceno Ferreira. "Ele sempre
dizia que Nelson é o Montaigne do Brasil e também escreveu um
artigo importante defendendo esta proposição. O artigo foi publicado em
1986 aí em Belo Horizonte, no Suplemento Literário do Minas
Gerais", destaca. Fischer investe a fundo na ideia – e localiza
nos textos em questão características marcantes dos melhores
ensaístas, além de "acertar os relógios da crítica"
diante de qualidades das crônicas-ensaios de Nelson Rodrigues como a
intencionalidade quase profética de convicções e a incorporação
da linguagem mais coloquial à literatura brasileira.

Luís
Augusto Fischer argumenta que os textos de Nelson Rodrigues,
lidos hoje, têm sua permanência assegurada por sua agudeza,
densidade, coragem e maestria no trato com a linguagem. A tese de
Fischer é corajosa, criativa e fundamentada em expressivo aparato
teórico. Mas não há como negar que ela também soa contraditória
no seu argumento principal – basta lembrar que as crônicas de
Nelson, revalorizadas depois que Ruy Castro organizou os textos em
vários volumes, constituem a face menos celebrada do autor.

Foi
através das crônicas, por exemplo, que Nelson Rodrigues escreveu
contra a organização das minorias pelos direitos civis e contra a
esquerda, em plena Ditadura Militar. Por essas e outras, acabou
ficando marcado pelo título de reacionário. Ainda assim, mesmo que
a personalidade de Nelson sempre se destaque pela polêmica e cercada
pelas muitas contradições, é difícil ficar indiferente diante do
estudo que Fischer apresenta.

Para
o autor de “Inteligência com Dor”, que teve primeira edição em
2009, o ensaio de Nelson Rodrigues, como também o ensaio em geral,
pode ser compreendido como um canto de cisne: majestoso, altivo e
desesperado. "Ele foi sim um reacionário, por vezes obtuso,
medonho ou até risível, mas também era rigoroso e cruel consigo
mesmo", argumenta Fischer, destacando que Nelson encerra
um projeto construtivista moderno na literatura brasileira.

"Ele
vem completar algo que teve início com os parnasianos, que
prosseguiu com João do Rio, que alcançou os modernistas e que teve
seu desfecho com os tropicalistas, contemporâneos das melhores
crônicas de Nelson. O mais importante mesmo é reconhecer,
diante do conjunto expressivo de suas crônicas, a obra maiúscula
que Nelson produziu", conclui Fischer. "Ele
definitivamente introduziu um patamar novo do ensaio no
Brasil, e também fora daqui, por certo, quando sua obra for
traduzida. É o trabalho de um mestre, um escritor de
absoluto primeiro plano nas letras de língua portuguesa, ao lado dos
maiores", completa.

Sapiência
em cena

Enquanto
Luís Augusto Fischer localiza em Nelson Rodrigues o pensador e
ensaísta, o veterano Jacó Guinsburg, mestre do teatro no Brasil,
também destaca que a obra de Nelson é singular, especialmente suas
tragédias cariocas, elevando o autor, no último século, à
condição de maior contribuição brasileira ao teatro universal.
“Nelson é singular e construiu um lugar personalíssimo na
dramaturgia que se faz no Brasil”, aponta em entrevista por
telefone o crítico, ensaísta e mentor da Editora Perspectiva. 

Vida
e obra: no alto, o casal de noivos

Nelson
Rodrigues e Elza Bretanha

 em
1940, e cenas da primeira montagem

de "Vestido
de Noiva", apresentada em

1943,
no Teatro Municipal do Rio de

Janeiro,
com o grupo Os Comediantes

contando
com cenografia e figurinos

de
Tomás Santa Rosa, sob direção

de Zbigniew
Ziembinski (foto abaixo,

em
1966, durante os ensaios da peça

"O
Santo Inquérito", de Dias Gomes), 

diretor,
ator e comediante polonês

que
fugiu da Segunda Guerra e veio

em
1941 para o Brasil, onde provocou

revoluções
no teatro, no cinema e na TV.

Também
abaixo, Jacó Guinsburg, tradutor,

jornalista,
professor, crítico de teatro

e
fundador da Editora Perspectiva

Extremamente
lúcido e bem-humorado, aos 92 anos, Jacó Guinsburg, que foi
homenageado na última edição do Prêmio Shell, pela contribuição
ao pensamento crítico do teatro no Brasil, esteve recentemente em
Belo Horizonte como convidado especial do Ecum – Centro
Internacional de Pesquisa sobre a Formação em Artes Cênicas. Além
do elogio à permanência de Nelson Rodrigues em cena, Guinsburg
também destacou alguns dos requisitos que considera essenciais para a qualidade e a
atualidade do teatro.

"O
primeiro requisito para qualquer dedicação ao teatro tem que ser,
em primeiro lugar, gostar de teatro", adverte. "Teatro é
ação e reação. É a menos permanente das artes e a mais intensa,
porque depende da relação presencial. O teatro é a arte do aqui e
do agora, representado a partir do corpo do ator", completa o
sábio veterano que nasceu na Bessarábia (hoje território da
Moldávia, no Leste Europeu) e emigrou para o Brasil com os pais em
1924, aos 3 anos de idade.

Nas
décadas seguintes, Guinsburg ganharia destaque como o principal
teórico do teatro brasileiro, além de tradutor e editor de mais de
uma centena de tratados de teoria e história das artes e do teatro
em particular. Autor de dezenas de grandes clássicos sobre as artes
cênicas, como "Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou",
"Semiologia do Teatro", "Dicionário do Teatro
Brasileiro" e obras sobre Diderot, Lessing e Nietzsche, entre
outros, Guinsburg também é sempre destacado como fundador e editor
da Perspectiva, uma das mais respeitadas editoras do Brasil, voltada
para obras de vanguarda e teoria. 

.

Grandes momentos de Nelson Rodrigues
no cinema: acima, cenas de A Falecida,
filme de 1965 com Fernanda Montenegro
e Paulo Gracindo e com roteiro e direção
de Leon Hirszman. Abaixo, Toda Nudez
Será Castigada, filme de 1973 com
Darlene Glória e Paulo Porto e com
roteiro e direção de Arnaldo Jabor

 

Recordes
de adaptações

Jacó
Guinsburg recorda na entrevista que sua maior aproximação com a
arte dramática e seu ensino começou em 1964, na Escola de Arte
Dramática (EAD), onde ministrou a cadeira de crítica teatral e,
posteriormente, em 1967, no então recém-criado Departamento de
Teatro, mais tarde de Artes Cênicas, da Escola de Comunicações e
Artes da USP. Sob este novo prisma, passou a concentrar seus estudos
em teoria e estética teatral e nos grandes clássicos do teatro
russo, judeu e iídiche, além da dedicação ao chamado teatro do
absurdo.

"Fico
extremamente honrado e feliz com a homenagem do Ecum, que apresentou
uma curadoria impecável sobre o panorama do teatro russo", destaca Guinsburg, que reconhece qualidades no "caminho trôpego"
que o teatro brasileiro cultiva desde tempos remotos. "A grande
contribuição do teatro do Brasil para o mundo são alguns momentos
que refletiram genialidade e ousadia e que têm alguns registros importantes de
reconhecimento no exterior”, explica.

Nelson Rodrigues no cinema: acima,

A Dama do Lotação (1978), adaptação

de um texto de Nelson Rodrigues com

roteiro e direção de Neville de Almeida,

com Sonia Braga como protagonista,

tornou-se um dos maiores campeões de

bilheteria do cinema brasileiro. Abaixo,

Nelson Rodrigues flagrado em um passeio

no calçadão da praia de Copacabana, em

1979; na ativa, na década de 1970; e o

túmulo do escritor no Cemitério São

João Batista, no Rio de Janeiro

A
extensa obra de Nelson Rodrigues também conta com um número recorde
de adaptações para o cinema e a TV, algumas com sucesso raro e
imbatível de público e crítica. Mas é na cena do teatro que ela
se revela como uma revolução na crônica de costumes e na série
inédita de avanços que incorpora à carpintaria das artes cênicas,
conforme destaca Guinsburg. Entre os grandes momentos de ousadia do
teatro brasileiro, ele enumera a obra completa de Nelson Rodrigues,
seguindo os mesmos critérios do crítico Sábato Magaldi, que
agrupou as 17 peças do autor em três categorias: peças
psicológicas, peças míticas e tragédias cariocas.

Não
há como negar, reconhece Guinsburg, que Nelson Rodrigues mudou
radicalmente a trajetória do teatro no Brasil e criou referências
que ganharam destaque também no plano internacional, como no caso da
montagem ímpar e revolucionária para “Vestido de Noiva”, com
direção de Zibgniew Ziembinski (1908–1978), cenários e figurinos originais
de Tomás Santa Rosa (1909–1956) e elenco do grupo Os Comediantes, que estreou entre aplausos e
vaias em 28 de dezembro de 1943 e inaugurou em grande estilo o teatro
moderno brasileiro. “Nelson Rodrigues é um caso muito especial”,
completa Guinsburg. “Mas o teatro é sempre singular e nem sempre a
melhor qualidade tem a repercussão que merece. Igual a tudo na vida,
afinal de contas..."

por José
Antônio Orlando.

Como
citar:

ORLANDO,
José Antônio. Unanimidade para Nelson Rodrigues. In: ______. Blog
Semióticas,
18
de
agosto
de
2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/08/unanimidade-para-nelson-rodrigues.html
acessado em .../.../…).

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O
aprofundamento da intuição leva naturalmente 

o
indivíduo a um grande afastamento da realidade 

palpável,
de modo a tornar-se completo enigma até 

para
as pessoas mais chegadas. Se for artista, 

apresentará
na sua arte coisas extraordinárias, 

estranhas
ao mundo, reluzentes em todas as 

cores,
ao mesmo tempo importantes e banais, 

belas
e grotescas, sublimes e ridículas. 

–– Carl
Gustav Jung em “Tipos psicológicos”.   

 

Autor
de clássicos absolutos como "Vestido de Noiva" e "Toda
Nudez Será Castigada", Nelson Rodrigues (1912-1980), que
completaria 100 anos no dia 23 de agosto, é uma unanimidade como
maior nome do teatro moderno brasileiro e maior dos nossos cronistas
esportivos, além de ter passado à história como um dos maiores
polemistas do Brasil do século 20. Um destaque que, por certo,
desmente ou, no mínimo, abre exceções para um dos muitos bordões
consagrados pelo próprio Nelson, que gostava de repetir: “Não sou
um escritor unânime, porque toda unanimidade é burrice”.

Além
de seu lugar de destaque no panteão da dramaturgia e da crônica
esportiva, foi também consagrado como autor de frases que ganharam o
imaginário nacional e como ficcionista, especialmente com suas
histórias populares publicadas primeiro na imprensa, a exemplo das
centenas de contos reunidos sob os títulos "Confissões"
e "A Vida como Ela É", ou em romances como "Asfalto
Selvagem", “Meu Destino é Pecar” e "O
Casamento". Sobre a trajetória de Nelson Rodrigues, também
jornalista nascido em uma família de jornalistas, muito já foi
escrito – em especial por Ruy Castro, na polêmica biografia "O
Anjo Pornográfico" (Companhia das Letras). 

Ao
relatar a vida do jornalista e escritor – que nasceu em Recife, em
1912, quinto de 14 irmãos, e mudou-se com a família para o Rio de
Janeiro em 1916 – Ruy Castro revela algumas tragédias na
trajetória de Nelson e uma sucessão espantosa de ocorrências
dramáticas, com muito mais risos e lágrimas do que qualquer uma das
conhecidas histórias burlescas do autor, todas recheadas com as mais
variadas obsessões sobre sexo e morte. Nelson Rodrigues teve uma
biografia que é, no mínimo, incomum. Nasceu em uma família de
jornalistas e seu pai, Mário Rodrigues, fundou na década de 1920 o
jornal carioca "A Manhã". Seu irmão, Mário Filho, também
celebrado como um dos principais cronistas esportivos do Brasil, foi
homenageado com a criação do estádio do Maracanã.

Desde
a infância o futuro cronista e dramaturgo, como ele mesmo
disse, certa vez, viu o mundo pelo "buraco da
fechadura". Sua infância e adolescência são pontuadas
por episódios bizarros: entre eles, a morte de um dos irmãos,
Roberto, assassinado na redação do jornal. Com a Revolução de
1930, o jornal da família é embargado. Nos anos seguintes, o
jovem Nelson passa a escrever crônicas policiais e sobre futebol,
depois investe na criação de peças teatrais. Tudo, segundo ele
mesmo, tão somente para "pagar o leite das crianças".

O
próprio Nelson Rodrigues demorou anos para percebeu o valor real de
suas crônicas e peças, mas seu centenário terá, ao que tudo
indica, comemorações em pompa e circunstância, com novas montagens
nos palcos do eixo Rio-São Paulo e um programa da Funarte para
tradução da íntegra de suas 17 peças para o espanhol e o inglês.
Há também uma nova versão nos cinemas de “Bonitinha, Mas
Ordinária” com direção de Moacyr Góes e com Leandra Leal e João
Miguel no elenco, uma grande exposição itinerante sobre a
carreira do dramaturgo nas sedes do Instituto Itaú Cultural e a
reformulação do site oficial (clique aqui para visitar),
que passará a ter em destaque o tópico “Nelson por Ele Mesmo”,
com trechos de entrevistas e crônicas, a maioria ainda inédita em
livro.

No
cenário literário, entretanto, há controvérsias. Sônia
Rodrigues, filha do escritor e gestora do site oficial, prepara o
lançamento da autobiografia póstuma “Nelson Rodrigues por Ele
Mesmo” (Nova Fronteira). No livro, a voz do escritor surge em
trechos de entrevistas e relatos pessoais em que Nelson cada uma de
suas peças e apresenta suas ideias personalíssimas sobre o Brasil e
os brasileiros, enquanto investe contra o divórcio, contra a
imoralidade e o que mais o incomodava na sociedade.

Nelson
Rodrigues Filho: livro sobre a relação

com
o pai nos tempos da ditadura militar.

Abaixo,
Luís Augusto Fischer, autor de

Inteligência
com dor, livro que aborda

as
crônicas e a vertente ensaística na

extensa
produção de Nelson Rodrigues

Nelsinho,
outro filho, também prepara um livro: "Nelson Rodrigues – Pai
e filho", sobre a relação entre eles, em especial durante a
ditadura militar, quando o pai conservador viveu agoniado com o filho
esquerdista mantido na prisão pelos militares por quase oito anos.
Outros lançamentos e relançamentos, entretanto, ainda não foram
confirmados, por conta principalmente de desentendimentos entre os
herdeiros e a editora Nova Fronteira, que atualmente detém os
direitos de publicação.  

 

Nelson,
o Pensador

Nelson
teve seis filhos: Joffre (morto em 2010) e Nelsinho, de seu casamento
com Elza Bretanha; Maria Lúcia, Sonia e Paulo César, do casamento
com Yolanda; e Daniela, com Lúcia. Hoje, os herdeiros, que
já viveram uma trajetória de muitos impasses decorrentes
de brigas sérias, até conseguem se reunir, mas há divergências
sobre a cessão de direitos autorais para novas montagens, reedições
ou publicação dos textos inéditos. Mais de mil crônicas de Nelson
ainda não foram publicadas em livro. 

 

 

Entre
tantas homenagens, há também as novas facetas que vêm reforçar o
mito do dramaturgo e cronista de primeira grandeza. Uma delas foi
proposta e defendida por um especialista: segundo o escritor e
jornalista Luís Augusto Fischer, professor de literatura na UFRGS e
doutor em Nelson Rodrigues, as crônicas do autor de "Vestido de
Noiva" provam que ele foi, além de tudo, um dos grandes
pensadores do Brasil.

Em
seu mais recente livro, "Inteligência com Dor - Nelson
Rodrigues Ensaísta", lançamento da editora gaúcha
Arquipélago, Fischer analisa as crônicas do autor reunidas sob o
título "Confissões" (publicadas em livros como "O
Óbvio Ululante", "A Cabra Vadia", "O
Reacionário", "A Menina Sem Estrela" e "O
Remador de Ben-Hur", entre outros) para defender a tese: Nelson
Rodrigues não era apenas cronista, mas também um pensador e
ensaísta de primeira grandeza.

Para
Fischer, o autor de “Toda Nudez Será Castigada” marcou época no
Brasil do século 20 como uma espécie de Michel de Montaigne (1533-1592), em referência ao escritor francês considerado o fundador do gênero ensaio e filósofo das instituições e dos costumes sociais. Autor da antologia em tom de ironia "Dicionário de Porto-Alegrês", dos ensaios
"Literatura Brasileira – Modos de Usar" e "Machado e
Borges", além da premiada novela "Quatro Negros",
Fischer se debruçou sobre as crônicas de Nelson Rodrigues com a
intenção de estudá-las dentro da tradição do ensaio. Sua tese,
controversa para alguns, foi defendida no doutorado da UFRGS e agora
ganhou nova versão para o formato livro.

Montaigne
do Brasil

O
pai da ideia do estudo, revela Fischer, foi o jornalista, roteirista
e professor de cinema Aníbal Damasceno Ferreira. "Ele sempre
dizia que Nelson é o Montaigne do Brasil e também escreveu um
artigo importante defendendo esta proposição. O artigo foi publicado em
1986 aí em Belo Horizonte, no Suplemento Literário do Minas
Gerais", destaca. Fischer investe a fundo na ideia – e localiza
nos textos em questão características marcantes dos melhores
ensaístas, além de "acertar os relógios da crítica"
diante de qualidades das crônicas-ensaios de Nelson Rodrigues como a
intencionalidade quase profética de convicções e a incorporação
da linguagem mais coloquial à literatura brasileira.

Luís
Augusto Fischer argumenta que os textos de Nelson Rodrigues,
lidos hoje, têm sua permanência assegurada por sua agudeza,
densidade, coragem e maestria no trato com a linguagem. A tese de
Fischer é corajosa, criativa e fundamentada em expressivo aparato
teórico. Mas não há como negar que ela também soa contraditória
no seu argumento principal – basta lembrar que as crônicas de
Nelson, revalorizadas depois que Ruy Castro organizou os textos em
vários volumes, constituem a face menos celebrada do autor.

Foi
através das crônicas, por exemplo, que Nelson Rodrigues escreveu
contra a organização das minorias pelos direitos civis e contra a
esquerda, em plena Ditadura Militar. Por essas e outras, acabou
ficando marcado pelo título de reacionário. Ainda assim, mesmo que
a personalidade de Nelson sempre se destaque pela polêmica e cercada
pelas muitas contradições, é difícil ficar indiferente diante do
estudo que Fischer apresenta.

Para
o autor de “Inteligência com Dor”, que teve primeira edição em
2009, o ensaio de Nelson Rodrigues, como também o ensaio em geral,
pode ser compreendido como um canto de cisne: majestoso, altivo e
desesperado. "Ele foi sim um reacionário, por vezes obtuso,
medonho ou até risível, mas também era rigoroso e cruel consigo
mesmo", argumenta Fischer, destacando que Nelson encerra
um projeto construtivista moderno na literatura brasileira.

"Ele
vem completar algo que teve início com os parnasianos, que
prosseguiu com João do Rio, que alcançou os modernistas e que teve
seu desfecho com os tropicalistas, contemporâneos das melhores
crônicas de Nelson. O mais importante mesmo é reconhecer,
diante do conjunto expressivo de suas crônicas, a obra maiúscula
que Nelson produziu", conclui Fischer. "Ele
definitivamente introduziu um patamar novo do ensaio no
Brasil, e também fora daqui, por certo, quando sua obra for
traduzida. É o trabalho de um mestre, um escritor de
absoluto primeiro plano nas letras de língua portuguesa, ao lado dos
maiores", completa.

Sapiência
em cena

Enquanto
Luís Augusto Fischer localiza em Nelson Rodrigues o pensador e
ensaísta, o veterano Jacó Guinsburg, mestre do teatro no Brasil,
também destaca que a obra de Nelson é singular, especialmente suas
tragédias cariocas, elevando o autor, no último século, à
condição de maior contribuição brasileira ao teatro universal.
“Nelson é singular e construiu um lugar personalíssimo na
dramaturgia que se faz no Brasil”, aponta em entrevista por
telefone o crítico, ensaísta e mentor da Editora Perspectiva. 

Vida
e obra: no alto, o casal de noivos

Nelson
Rodrigues e Elza Bretanha

 em
1940, e cenas da primeira montagem

de "Vestido
de Noiva", apresentada em

1943,
no Teatro Municipal do Rio de

Janeiro,
com o grupo Os Comediantes

contando
com cenografia e figurinos

de
Tomás Santa Rosa, sob direção

de Zbigniew
Ziembinski (foto abaixo,

em
1966, durante os ensaios da peça

"O
Santo Inquérito", de Dias Gomes), 

diretor,
ator e comediante polonês

que
fugiu da Segunda Guerra e veio

em
1941 para o Brasil, onde provocou

revoluções
no teatro, no cinema e na TV.

Também
abaixo, Jacó Guinsburg, tradutor,

jornalista,
professor, crítico de teatro

e
fundador da Editora Perspectiva

Extremamente
lúcido e bem-humorado, aos 92 anos, Jacó Guinsburg, que foi
homenageado na última edição do Prêmio Shell, pela contribuição
ao pensamento crítico do teatro no Brasil, esteve recentemente em
Belo Horizonte como convidado especial do Ecum – Centro
Internacional de Pesquisa sobre a Formação em Artes Cênicas. Além
do elogio à permanência de Nelson Rodrigues em cena, Guinsburg
também destacou alguns dos requisitos que considera essenciais para a qualidade e a
atualidade do teatro.

"O
primeiro requisito para qualquer dedicação ao teatro tem que ser,
em primeiro lugar, gostar de teatro", adverte. "Teatro é
ação e reação. É a menos permanente das artes e a mais intensa,
porque depende da relação presencial. O teatro é a arte do aqui e
do agora, representado a partir do corpo do ator", completa o
sábio veterano que nasceu na Bessarábia (hoje território da
Moldávia, no Leste Europeu) e emigrou para o Brasil com os pais em
1924, aos 3 anos de idade.

Nas
décadas seguintes, Guinsburg ganharia destaque como o principal
teórico do teatro brasileiro, além de tradutor e editor de mais de
uma centena de tratados de teoria e história das artes e do teatro
em particular. Autor de dezenas de grandes clássicos sobre as artes
cênicas, como "Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou",
"Semiologia do Teatro", "Dicionário do Teatro
Brasileiro" e obras sobre Diderot, Lessing e Nietzsche, entre
outros, Guinsburg também é sempre destacado como fundador e editor
da Perspectiva, uma das mais respeitadas editoras do Brasil, voltada
para obras de vanguarda e teoria. 

.

Grandes momentos de Nelson Rodrigues
no cinema: acima, cenas de A Falecida,
filme de 1965 com Fernanda Montenegro
e Paulo Gracindo e com roteiro e direção
de Leon Hirszman. Abaixo, Toda Nudez
Será Castigada, filme de 1973 com
Darlene Glória e Paulo Porto e com
roteiro e direção de Arnaldo Jabor

 

Recordes
de adaptações

Jacó
Guinsburg recorda na entrevista que sua maior aproximação com a
arte dramática e seu ensino começou em 1964, na Escola de Arte
Dramática (EAD), onde ministrou a cadeira de crítica teatral e,
posteriormente, em 1967, no então recém-criado Departamento de
Teatro, mais tarde de Artes Cênicas, da Escola de Comunicações e
Artes da USP. Sob este novo prisma, passou a concentrar seus estudos
em teoria e estética teatral e nos grandes clássicos do teatro
russo, judeu e iídiche, além da dedicação ao chamado teatro do
absurdo.

"Fico
extremamente honrado e feliz com a homenagem do Ecum, que apresentou
uma curadoria impecável sobre o panorama do teatro russo", destaca Guinsburg, que reconhece qualidades no "caminho trôpego"
que o teatro brasileiro cultiva desde tempos remotos. "A grande
contribuição do teatro do Brasil para o mundo são alguns momentos
que refletiram genialidade e ousadia e que têm alguns registros importantes de
reconhecimento no exterior”, explica.

Nelson Rodrigues no cinema: acima,

A Dama do Lotação (1978), adaptação

de um texto de Nelson Rodrigues com

roteiro e direção de Neville de Almeida,

com Sonia Braga como protagonista,

tornou-se um dos maiores campeões de

bilheteria do cinema brasileiro. Abaixo,

Nelson Rodrigues flagrado em um passeio

no calçadão da praia de Copacabana, em

1979; na ativa, na década de 1970; e o

túmulo do escritor no Cemitério São

João Batista, no Rio de Janeiro

A
extensa obra de Nelson Rodrigues também conta com um número recorde
de adaptações para o cinema e a TV, algumas com sucesso raro e
imbatível de público e crítica. Mas é na cena do teatro que ela
se revela como uma revolução na crônica de costumes e na série
inédita de avanços que incorpora à carpintaria das artes cênicas,
conforme destaca Guinsburg. Entre os grandes momentos de ousadia do
teatro brasileiro, ele enumera a obra completa de Nelson Rodrigues,
seguindo os mesmos critérios do crítico Sábato Magaldi, que
agrupou as 17 peças do autor em três categorias: peças
psicológicas, peças míticas e tragédias cariocas.

Não
há como negar, reconhece Guinsburg, que Nelson Rodrigues mudou
radicalmente a trajetória do teatro no Brasil e criou referências
que ganharam destaque também no plano internacional, como no caso da
montagem ímpar e revolucionária para “Vestido de Noiva”, com
direção de Zibgniew Ziembinski (1908–1978), cenários e figurinos originais
de Tomás Santa Rosa (1909–1956) e elenco do grupo Os Comediantes, que estreou entre aplausos e
vaias em 28 de dezembro de 1943 e inaugurou em grande estilo o teatro
moderno brasileiro. “Nelson Rodrigues é um caso muito especial”,
completa Guinsburg. “Mas o teatro é sempre singular e nem sempre a
melhor qualidade tem a repercussão que merece. Igual a tudo na vida,
afinal de contas..."

por José
Antônio Orlando.

Como
citar:

ORLANDO,
José Antônio. Unanimidade para Nelson Rodrigues. In: ______. Blog
Semióticas,
18
de
agosto
de
2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/08/unanimidade-para-nelson-rodrigues.html
acessado em .../.../…).

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