Avenida da Liberdade

27-11-2019
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Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.

A articulação de círculos plurinominais e uninominais e de um círculo nacional viria a assegurar a representação proporcional na conversão dos votos em mandatos.

Golpe no estado do sistema eleitoral

Há golpes para todos os gostos: golpe de asa, exclusivo de poucos; golpe de sorte, que escolhe alguns; golpe de azar, de que todos se queixam; golpe de vista, invocado para chamar aos outros ceguinhos. E também há diversos estados: o estado crítico, associado normalmente ao golpe de azar; ou o estado da nação, dependente do golpe de vista à esquerda ou à direita, consoante o poder do momento. E há ainda o estado de sítio, consequência natural de um golpe de Estado, que é normalmente atribuído a civis militarizados ou a militares incivilizados insatisfeitos com o estado da nação, e que consiste em tomarem o poder de forma a conformá-lo com o seu golpe de vista. Felizmente que esse tipo de golpe anda longe dos costumes portugueses, já que os nossos militares são bem civilizados e os civis estão bem longe de ser uns militarões. E creio mesmo que gente da mais preocupada com assuntos militares, como os membros da Comissão de Defesa do parlamento, nem sequer andaram na tropa e só virtualmente saberão o que é uma arma. Aliás, segundo as teses mais avançadas, nem o próprio 25 de Abril foi um golpe de Estado, pois revestiu-se de uma natureza eminentemente superior, a de revolução. 

Aqui chegados, ao 25 de Abril, a Constituição deu um golpe, agora de morte, na anterior lei eleitoral e estabeleceu um sistema adequado a dar representatividade democrática aos partidos, mas só a estes, considerando apenas círculos plurinominais e optando pela proporcionalidade, método de Hondt, todavia eliminando candidaturas independentes, vetando círculos uninominais e excluindo outras formulações mais ou menos usadas nas democracias parlamentares. 

Se o modelo provou o seu mérito nos primeiros anos, com o decorrer do tempo veio a mostrar que contribuiu decisivamente para dar aos diretórios partidários o controlo do pessoal político, mormente dos deputados, começando logo pela escolha dos mais fiéis em detrimento da competência e do contributo que outros pudessem dar ao país. A fidelidade pessoal passou a ser o centro da avaliação e da escolha. Por isso é que, legislatura após legislatura, não há remodelação sensível da classe política: repetem-se as mesmíssimas personagens, as ideias cristalizam, consolidam-se as rivalidades pessoais que impedem consensos necessários, impera a violência verbal. E o efeito está no afastamento dos cidadãos da política e na elevada abstenção. A perdurar este estado de coisas, a ideia de democracia sairá ferida de morte.  

Para a própria sobrevivência da democracia representativa, urge alterar o sistema eleitoral para o parlamento, criando um outro que imponha um cuidado acrescido e critérios de competência na seleção dos melhores candidatos e atribua aos eleitores um efetivo poder na escolha dos deputados. 

E é possível atingir aproximação substancial a tal objetivo através da introdução de círculos uninominais, previstos na revisão constitucional de 1997, mas nunca regulamentados. A introdução destes círculos, ao provocar uma viva concorrência direta entre os candidatos, obrigaria a uma escolha que privilegiaria a competência dos mesmos e a sua dedicação ao serviço público, em detrimento da fidelidade pessoal ou política, propiciando assim uma efetiva capacidade de escolha aos cidadãos. E a articulação de círculos plurinominais e uninominais e de um círculo nacional viria a assegurar a representação proporcional na conversão dos votos em mandatos. As vantagens seriam óbvias: o eleitor votaria no deputado que julgava mais competente e no partido com que se identificava, a proporcionalidade mantinha-se e o parlamento representaria de forma justa cidadãos, território e correntes políticas. 

Esta mudança tão simples e exequível já para as próximas legislativas seria um virtuoso golpe de Estado no sistema eleitoral ou, para os mais pacifistas, um virtuoso golpe no estado da lei eleitoral que, a permanecer tal e qual, nos levará a um verdadeiro estado de sítio em que os cidadãos, por sua própria iniciativa, se absterão de sair de casa para votar. 

A SEDES e a Associação Por Uma Democracia de Qualidade estão no combate por esta reforma, tendo entregue recentemente um memorando sobre o tema ao senhor Presidente da República, visando a sua discussão pública. Oxalá os nossos partidos tenham, já não digo um golpe de génio, difícil nas circunstâncias, mas pelo menos um golpe de asa para a acolher. E poderem sobreviver.

António PINHO CARDÃO
Economista e gestorSubscritor do Manifesto por Uma Democracia de QualidadeNOTA: artigo publicado no jornal i

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.

A articulação de círculos plurinominais e uninominais e de um círculo nacional viria a assegurar a representação proporcional na conversão dos votos em mandatos.

Golpe no estado do sistema eleitoral

Há golpes para todos os gostos: golpe de asa, exclusivo de poucos; golpe de sorte, que escolhe alguns; golpe de azar, de que todos se queixam; golpe de vista, invocado para chamar aos outros ceguinhos. E também há diversos estados: o estado crítico, associado normalmente ao golpe de azar; ou o estado da nação, dependente do golpe de vista à esquerda ou à direita, consoante o poder do momento. E há ainda o estado de sítio, consequência natural de um golpe de Estado, que é normalmente atribuído a civis militarizados ou a militares incivilizados insatisfeitos com o estado da nação, e que consiste em tomarem o poder de forma a conformá-lo com o seu golpe de vista. Felizmente que esse tipo de golpe anda longe dos costumes portugueses, já que os nossos militares são bem civilizados e os civis estão bem longe de ser uns militarões. E creio mesmo que gente da mais preocupada com assuntos militares, como os membros da Comissão de Defesa do parlamento, nem sequer andaram na tropa e só virtualmente saberão o que é uma arma. Aliás, segundo as teses mais avançadas, nem o próprio 25 de Abril foi um golpe de Estado, pois revestiu-se de uma natureza eminentemente superior, a de revolução. 

Aqui chegados, ao 25 de Abril, a Constituição deu um golpe, agora de morte, na anterior lei eleitoral e estabeleceu um sistema adequado a dar representatividade democrática aos partidos, mas só a estes, considerando apenas círculos plurinominais e optando pela proporcionalidade, método de Hondt, todavia eliminando candidaturas independentes, vetando círculos uninominais e excluindo outras formulações mais ou menos usadas nas democracias parlamentares. 

Se o modelo provou o seu mérito nos primeiros anos, com o decorrer do tempo veio a mostrar que contribuiu decisivamente para dar aos diretórios partidários o controlo do pessoal político, mormente dos deputados, começando logo pela escolha dos mais fiéis em detrimento da competência e do contributo que outros pudessem dar ao país. A fidelidade pessoal passou a ser o centro da avaliação e da escolha. Por isso é que, legislatura após legislatura, não há remodelação sensível da classe política: repetem-se as mesmíssimas personagens, as ideias cristalizam, consolidam-se as rivalidades pessoais que impedem consensos necessários, impera a violência verbal. E o efeito está no afastamento dos cidadãos da política e na elevada abstenção. A perdurar este estado de coisas, a ideia de democracia sairá ferida de morte.  

Para a própria sobrevivência da democracia representativa, urge alterar o sistema eleitoral para o parlamento, criando um outro que imponha um cuidado acrescido e critérios de competência na seleção dos melhores candidatos e atribua aos eleitores um efetivo poder na escolha dos deputados. 

E é possível atingir aproximação substancial a tal objetivo através da introdução de círculos uninominais, previstos na revisão constitucional de 1997, mas nunca regulamentados. A introdução destes círculos, ao provocar uma viva concorrência direta entre os candidatos, obrigaria a uma escolha que privilegiaria a competência dos mesmos e a sua dedicação ao serviço público, em detrimento da fidelidade pessoal ou política, propiciando assim uma efetiva capacidade de escolha aos cidadãos. E a articulação de círculos plurinominais e uninominais e de um círculo nacional viria a assegurar a representação proporcional na conversão dos votos em mandatos. As vantagens seriam óbvias: o eleitor votaria no deputado que julgava mais competente e no partido com que se identificava, a proporcionalidade mantinha-se e o parlamento representaria de forma justa cidadãos, território e correntes políticas. 

Esta mudança tão simples e exequível já para as próximas legislativas seria um virtuoso golpe de Estado no sistema eleitoral ou, para os mais pacifistas, um virtuoso golpe no estado da lei eleitoral que, a permanecer tal e qual, nos levará a um verdadeiro estado de sítio em que os cidadãos, por sua própria iniciativa, se absterão de sair de casa para votar. 

A SEDES e a Associação Por Uma Democracia de Qualidade estão no combate por esta reforma, tendo entregue recentemente um memorando sobre o tema ao senhor Presidente da República, visando a sua discussão pública. Oxalá os nossos partidos tenham, já não digo um golpe de génio, difícil nas circunstâncias, mas pelo menos um golpe de asa para a acolher. E poderem sobreviver.

António PINHO CARDÃO
Economista e gestorSubscritor do Manifesto por Uma Democracia de QualidadeNOTA: artigo publicado no jornal i

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