A Destreza das Dúvidas: Do meu almoço em Portugal

13-03-2020
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Bom, não me apetece falar do referendo no RU. Por agora. Para algo completamente diferente, hoje fui ao Consulado português em Londres, pela primeira vez. Há cerca de dois meses e meio, pela internet, consegui uma marcação para hoje, ao meio dia. Não havia nada para antes. Por falta de pessoal, o Consulado há muito que não recebe ninguém que simplesmente lá apareça sem marcação. 

Bom, dois meses e meio volvidos, lá cruzo eu metade da cidade para ir para a sempre tão aprazível zona de Oxford Circus. Após derrubar dezasseis turistas, dois ciclistas e absorver uma bela golfada de ar na artéria que, nos dois primeiros dias do ano, esgotou o limite de poluição do ano inteiro, lá cheguei ao Consulado. Que é, verdadeiramente, como quem chega a Portugal. Tem todas as várias camadas de portugalidade, tão caras ao emigrante - serviço público é assim as manter e oferecer ao emigrante saudosista. Ao lado da porta de entrada está uma placa dourada, pomposa, onde se gravou o escudo da República e o horário de funcionamento, que viria entretando a ser riscado, a marcador preto, e devidamente corrigido com um horário novo, com letras ligeiramente descaídas, a derramar para a tinta branca da parede. Entrando, numa espécie de antecâmara, o utente é confrontado com o mais sofisticado aparato de segurança. São vários os detetores de metais, daqueles portáteis, que estão sossegadamente arrumados em cima de uma mesinha, novinhos em folha. Não são usados. O segurança confere o nome numas folhas escritas à mão, e dá-nos uma senha com um número. E informa-me que o meu amigo, inglês, que trabalha ali perto e veio comigo porque eu já antecipava que ia apanhar seca, não pode entrar. E assim o amigo teve a oportunidade de, como disse Pessoa, estranhar a condição de português, mas sem se entranhar, que não deixaram. Ficou à porta. Sorte a dele.

Lá dentro, o doce e suado mundo português de um dia de junho, quente, sem janelas abertas ou ar condicionado. Contei cerca de duzentas pessoas, à espera, em cadeiras daquelas de tampo de fórmica que se via nas tascas. Olhei o ecrã e percebi que, apesar de ter feito marcação para o meio dia, ao meio dia e cinco estava com 40 números à minha frente, para a categoria Cartão de Cidadão. Perguntei se aquilo era coisa para demorar. O melhor era ir lá fora ter com o meu amigo e de vez em quando vir conferir o número no ecrã. Certo. Passado 15 minutos, já só faltavam 35 números. Passado meia hora, 30. Ao fim de uma hora, ia em 20 números. Resolvi ir com o meu amigo comprar uma sandes. Quando voltei, uma hora e meia depois, só faltavam 10 números. Perguntei se aquilo era normal a alguém por lá estava, que me respondeu um pouco bruscamente, porque estava ocupado a escrevinhar qualquer coisa. Era uma reclamação. O coitado tinha um número ainda superior ao meu, e já tinha desistido. Resolvi ligar para o meu chefe a informar que ia chegar atrasado. Ele pediu apenas para confirmar que eu ia voltar ao trabalho, e que não tinha pedido asilo em retaliação pela saída do RU da UE. E, já agora, que estava ali assim à espera, se eu não podia discretamente indagar como é que ele, o meu chefe, podia adquirir nacionalidade portuguesa para se pirar daqui. Desculpem, acabei por falar do referendo, não foi? É para distrair. Está muita gente, muito calor, e já não estou a ver bem. Parece-me ver ali ao fundo um sinal de proibido usar telemóvel. Ao lado está uma rapariga a falar alto a uma coisa preta que me parece, à vista desarmada, um telemóvel. Eis as camadas da portugalidade: regras estúpidas; ninguém as cumpre; ninguém se preocupa que ninguém as cumpra. E agora? Espero? 

Perguntei no guichet se a abordagem acertada, numa próxima vez que lá fosse, era tirar um dia de férias para poder esperar à vontade. A senhora, simpatiquíssima, a desdobrar-se em pedidos de desculpa, e a dizer que ia ligar lá para cima (não sei bem o que fica lá acima, mas imagino que a Redenção) para tentar explicar a minha situação injusta. Eis outra camada da portugalidade. É impossível não amar o meu país. Nada. Não havia nada a fazer. Mas o que é que o senhor precisa? Ah, não é um novo Cartão? Então espere lá, se é só morada, preencha aqui este formulário, entregue-me, que eu trato disso. Lá vou eu preencher o formulário, à antiga, coisa para pedir nome da mãe por extenso, freguesia de nascimento e estado civil. Pronto, aqui tem. Entretanto já tinham passado cerca de duas horas. Ah, trouxe consigo o PIN? Qual PIN? O PIN que é essencial para efetuar a mudança de morada. Então, mas no site não dizia nada. Pois, mas sem ele nada feito. 

O "slot" mais próximo disponível para marcações é em Setembro. Calha bem, estarei de férias. Lá irei passar um dia a Portugal. Quite fitting. Claro que não faz nenhum sentido que, no país com a terceira comunidade emigrante portuguesa mais populosa, que envia cerca de 250 milhões de euros por ano em remessas, se ande a gastar dinheiro inútil a contratar mais 10 ou 20 funcionários para que se possa prestar um serviço minimamente decente. Isso se calhar ainda implicaria ter de arrendar um edifício maior para acomodar o acréscimo de funcionários, e sei lá, ter de assim mudar para um bairro que não fosse, como é o caso, o mais caro da Europa. Mas isto são ideias estúpidas, de quem acha que se pode andar a esbanjar dinheiro público à maluca. 

Bom, não me apetece falar do referendo no RU. Por agora. Para algo completamente diferente, hoje fui ao Consulado português em Londres, pela primeira vez. Há cerca de dois meses e meio, pela internet, consegui uma marcação para hoje, ao meio dia. Não havia nada para antes. Por falta de pessoal, o Consulado há muito que não recebe ninguém que simplesmente lá apareça sem marcação. 

Bom, dois meses e meio volvidos, lá cruzo eu metade da cidade para ir para a sempre tão aprazível zona de Oxford Circus. Após derrubar dezasseis turistas, dois ciclistas e absorver uma bela golfada de ar na artéria que, nos dois primeiros dias do ano, esgotou o limite de poluição do ano inteiro, lá cheguei ao Consulado. Que é, verdadeiramente, como quem chega a Portugal. Tem todas as várias camadas de portugalidade, tão caras ao emigrante - serviço público é assim as manter e oferecer ao emigrante saudosista. Ao lado da porta de entrada está uma placa dourada, pomposa, onde se gravou o escudo da República e o horário de funcionamento, que viria entretando a ser riscado, a marcador preto, e devidamente corrigido com um horário novo, com letras ligeiramente descaídas, a derramar para a tinta branca da parede. Entrando, numa espécie de antecâmara, o utente é confrontado com o mais sofisticado aparato de segurança. São vários os detetores de metais, daqueles portáteis, que estão sossegadamente arrumados em cima de uma mesinha, novinhos em folha. Não são usados. O segurança confere o nome numas folhas escritas à mão, e dá-nos uma senha com um número. E informa-me que o meu amigo, inglês, que trabalha ali perto e veio comigo porque eu já antecipava que ia apanhar seca, não pode entrar. E assim o amigo teve a oportunidade de, como disse Pessoa, estranhar a condição de português, mas sem se entranhar, que não deixaram. Ficou à porta. Sorte a dele.

Lá dentro, o doce e suado mundo português de um dia de junho, quente, sem janelas abertas ou ar condicionado. Contei cerca de duzentas pessoas, à espera, em cadeiras daquelas de tampo de fórmica que se via nas tascas. Olhei o ecrã e percebi que, apesar de ter feito marcação para o meio dia, ao meio dia e cinco estava com 40 números à minha frente, para a categoria Cartão de Cidadão. Perguntei se aquilo era coisa para demorar. O melhor era ir lá fora ter com o meu amigo e de vez em quando vir conferir o número no ecrã. Certo. Passado 15 minutos, já só faltavam 35 números. Passado meia hora, 30. Ao fim de uma hora, ia em 20 números. Resolvi ir com o meu amigo comprar uma sandes. Quando voltei, uma hora e meia depois, só faltavam 10 números. Perguntei se aquilo era normal a alguém por lá estava, que me respondeu um pouco bruscamente, porque estava ocupado a escrevinhar qualquer coisa. Era uma reclamação. O coitado tinha um número ainda superior ao meu, e já tinha desistido. Resolvi ligar para o meu chefe a informar que ia chegar atrasado. Ele pediu apenas para confirmar que eu ia voltar ao trabalho, e que não tinha pedido asilo em retaliação pela saída do RU da UE. E, já agora, que estava ali assim à espera, se eu não podia discretamente indagar como é que ele, o meu chefe, podia adquirir nacionalidade portuguesa para se pirar daqui. Desculpem, acabei por falar do referendo, não foi? É para distrair. Está muita gente, muito calor, e já não estou a ver bem. Parece-me ver ali ao fundo um sinal de proibido usar telemóvel. Ao lado está uma rapariga a falar alto a uma coisa preta que me parece, à vista desarmada, um telemóvel. Eis as camadas da portugalidade: regras estúpidas; ninguém as cumpre; ninguém se preocupa que ninguém as cumpra. E agora? Espero? 

Perguntei no guichet se a abordagem acertada, numa próxima vez que lá fosse, era tirar um dia de férias para poder esperar à vontade. A senhora, simpatiquíssima, a desdobrar-se em pedidos de desculpa, e a dizer que ia ligar lá para cima (não sei bem o que fica lá acima, mas imagino que a Redenção) para tentar explicar a minha situação injusta. Eis outra camada da portugalidade. É impossível não amar o meu país. Nada. Não havia nada a fazer. Mas o que é que o senhor precisa? Ah, não é um novo Cartão? Então espere lá, se é só morada, preencha aqui este formulário, entregue-me, que eu trato disso. Lá vou eu preencher o formulário, à antiga, coisa para pedir nome da mãe por extenso, freguesia de nascimento e estado civil. Pronto, aqui tem. Entretanto já tinham passado cerca de duas horas. Ah, trouxe consigo o PIN? Qual PIN? O PIN que é essencial para efetuar a mudança de morada. Então, mas no site não dizia nada. Pois, mas sem ele nada feito. 

O "slot" mais próximo disponível para marcações é em Setembro. Calha bem, estarei de férias. Lá irei passar um dia a Portugal. Quite fitting. Claro que não faz nenhum sentido que, no país com a terceira comunidade emigrante portuguesa mais populosa, que envia cerca de 250 milhões de euros por ano em remessas, se ande a gastar dinheiro inútil a contratar mais 10 ou 20 funcionários para que se possa prestar um serviço minimamente decente. Isso se calhar ainda implicaria ter de arrendar um edifício maior para acomodar o acréscimo de funcionários, e sei lá, ter de assim mudar para um bairro que não fosse, como é o caso, o mais caro da Europa. Mas isto são ideias estúpidas, de quem acha que se pode andar a esbanjar dinheiro público à maluca. 

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